Quanto valem as vidas árabes?
A discrepância entre o impacto gerado pelo ataque à ONG World Central Kitchen e o gerado pelas atrocidades anteriores cometidas por Israel é reveladora sobre os preconceitos ocidentais
Os últimos seis meses escancararam, mais uma vez, um aspecto lamentavelmente clássico dos conflitos no “Terceiro Mundo” (em particular do Oriente Médio, objeto de análise desta newsletter): o fato de as vidas não-brancas, em especificamente as árabes, importarem muito pouco para o establishment ocidental. Desde o bombardeio contra o comboio da ONG World Central Kitchen, em 1º de abril, a situação ficou ainda mais evidente.
Nos quase seis meses desde o fatídico 7/10, Israel matou quase 34 mil palestinos, sendo 70% deles mulheres e crianças. A ofensiva deixou 76 mil feridos e 1,7 milhão de deslocados internos. Em um conflito classificado como uma “guerra contra as crianças”, além das 14,5 mil mortas, 17 mil ficaram órfãs e cerca de mil sofreram amputações (o maior contingente pediátrico nesta situação já registrado).
Muitos desses números são, provavelmente, maiores. A maioria desses registros é referente a pessoas que chegaram aos hospitais. Há pelo menos 8 mil desaparecidos, provavelmente sob os escombros. Enquanto você lê este texto, relatos críveis de valas comuns com centenas de corpos estão circulando.
Israel destruiu pelo menos 70% das residências da Faixa de Gaza, em bombardeios indiscriminados movidos por inteligência artificial. Devastou, também, a infraestrutura agrícola, encerrando a capacidade da região de produzir alimentos, e cerceou a entrada de suprimentos, levando 1,1 milhão de pessoas à beira da inanição. Pelo menos 21 dos 36 hospitais da Faixa de Gaza se tornaram inoperantes.
No fim de fevereiro, Israel chacinou mais de 100 pessoas que tentavam obter farinha para salvar a si próprias e seus familiares da fome. Esses e muitos outros episódios consistem crimes de guerra e também indicam, segundo a Corte Internacional de Justiça, uma possibilidade plausível de genocídio.
Ainda assim, foi a morte de sete funcionários da ONG do chef-celebridade José Andrés, seis deles ocidentais, e a indignação geral posterior a ela, que mudou de patamar a pressão do governo de Joe Biden e do Congresso dos EUA sobre Israel.
Diante disso, desde o dia 1º, o governo israelense aliviou algumas das restrições impostas. O resultado disso ainda é, segundo a ONU, equivalente a uma “gota em balde” diante das necessidades, mas o fato de apenas a morte dos ocidentais ter gerado uma mudança deveria fazer todos refletirem.
Infelizmente, com os ataques mútuos entre Israel e Irã, a fome na Faixa de Gaza voltou a ter atenção quase insignificante para a imprensa e a classe política ocidentais (assim como ocorre no Brasil).
Jamal Khashoggi e José Andrés
A mobilização em torno do caso da WCK lembrou o episódio do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, perpetrado por agentes do governo da Arábia Saudita em outubro de 2018, no consulado do país em Istambul, na Turquia.
Quando surgiram as notícias de que Khashoggi fora morto e esquartejado, o caso gerou um clamor imediato e de grande monta, envolvendo autoridades e veículos de imprensa ocidentais. O alvo eram as práticas draconianas do príncipe-herdeiro Mohammad bin Salman. Khashoggi foi homenageado, enquanto MBS, como é conhecido o príncipe saudita, foi criticado. Nada a contestar.
O que chamou atenção, porém, foi o fato gerador de críticas à atuação do regime saudita. Quando Khashoggi foi morto, a Arábia Saudita e seus aliados estavam, já há três anos e meio, devastando o Iêmen, o mais pobre dos países árabes, com armas fornecidas pelos EUA, pelo Reino Unido e outros países ocidentais.
Oficialmente, 10 mil civis haviam sido mortos por conta da ofensiva saudita até ali, mas outras estimativas indicavam que o número era seis vezes maior. Assim como Israel faz agora, a Arábia Saudita organizou um cerco ao Iêmen que criou uma crise de fome. Em agosto de 2015, o chefe da Cruz Vermelha disse que “o Iêmen depois de cinco meses se parece com a Síria depois de cinco anos”.
Mesmo assim, foi a morte de Khashoggi que fez o establishment ocidental se indignar com as práticas sauditas. Por quê? Porque, quando foi morto, Khashoggi não era apenas um jornalista saudita, mas um jornalista saudita integrado a este mesmo establishment. Era colunista do jornal The Washington Post e convidado frequente de debates sobre o país – em alguns deles, inclusive, Khashoggi denunciava as práticas do regime saudita no Iêmen, mas também tinha dificuldades de mobilizar qualquer tipo de comoção a favor da população civil iemenita.
No caso da WCK, os paralelos são inevitáveis. Dias após o ataque israelense ao comboio, Scott Paul, da ONG Oxfam, foi direto em uma entrevista coletiva: “Vamos ser muito claros. Isto é trágico, mas não é uma anomalia. A morte de trabalhadores humanitários em Gaza foi sistêmica.”
Apenas entre o 7/10 e o fim de dezembro, 136 funcionários da ONU foram mortos por Israel. Junto com eles, ao menos 103 jornalistas foram assassinados. Ambos são integrantes de grupos tidos como protegidos em conflitos. Mas por qual motivo não houve indignação generalizada? Por óbvio, porque a imensa maioria das vítimas nesses grupos eram pessoas não-brancas - no caso, árabes. Suas vidas são tidas como dispensáveis. Eles são tratados como figurantes em filmes de ação de Hollywood.
Merecidamente, os funcionários da WCK foram homenageados pela comunidade internacional. Conhecemos seus rostos, ficamos sabendo seus nomes, fomos apresentados a suas trajetórias. Sua missão foi devidamente louvada.
Mas tudo isso ocorreu porque eles carregavam passaportes da Austrália, dos EUA, da Polônia e do Reino Unido. E porque estavam sob a guarida de José Andrés, um chef espanhol radicado nos EUA, dono de restaurantes em inúmeras cidades norte-americanas e premiado tanto por sua atuação profissional quanto pelo trabalho humanitário que realiza.
O mesmo ocorreria se fossem funcionários marroquinos de uma ONG da Jordânia? Ou integrantes paquistaneses de uma ONG da Turquia? É evidente que não. Eles morreriam anonimamente, como os palestinos.
Podemos imaginar, por outro lado, o peso político e midiático que teriam a morte de 14,5 mil crianças americanas, a amputação de mil crianças francesas ou a chacina de 100 britânicos esfomeados.
Ainda deve estar fresco nas memórias de muitos como jornalistas ocidentais ficaram perplexos com a invasão russa em 2022, ao ver ucranianos – “civilizados” e que “se parecem” com eles – morrendo em meio a uma guerra. Do mesmo modo, quem poderia esquecer da enorme onda de hostilidade aos imigrantes do “Terceiro Mundo” na Europa desde 2015, uma das molas propulsoras da extrema-direita transnacional?
O senso de superioridade sobre o qual se assentou o domínio ocidental do mundo moderno desumanizou e desumaniza diversos povos. No caso dos muçulmanos e, mais especificamente, dos árabes, este é um fenômeno inescapável. Seja na hoje esquecida guerra civil da Síria, no caso do Iêmen ou da Palestina, rotineiramente somos lembrados de sua trágica existência.