A tragédia no Mediterrâneo é uma mancha para a Europa
Em meio ao avanço da extrema-direita, a UE fez da xenofobia a base de sua política externa
O resumo do texto, em três pontos:
O número de mortes na travessia do Mediterrâneo vem crescendo e deve ser o maior em seis anos
A política europeia consiste em fechar fronteiras, barrar a saída de migrantes nos portos de origem e criminalizar a ajuda humanitária
A ‘crise’ de refugiados facilitou a ascensão da extrema-direita, que cada vez mais influencia o cenário político
Em junho, as mortes de migrantes registradas no Mar Mediterrâneo neste 2023 chegaram a 1.875. Este número representa 78% do verificado em 2022, o que deve fazer deste ano o com mais óbitos na travessia desde pelo menos 2017.
Esses números, reunidos pelo Projeto Migrantes Desaparecidos, da Organização Internacional para a Migração (IOM), são parciais, uma fração do que realmente acontece, pois a coleta de dados é extremamente difícil e uma boa parte dos naufrágios não deixa rastros ou sobreviventes.
Desde 2014, o número total de mortes registradas na travessia é de 27.633 pessoas, incluindo 1.125 crianças. Todas essas mortes, e as muitas outras não computadas, são de pessoas que deixaram para trás situações tão desesperadoras que era preferível arriscar a vida (a própria e dos filhos) do que retornar.
A ascensão da extrema-direita e a normalização da xenofobia
Os migrantes que morreram no Mediterrâneo tinham como destino a Europa. A partir de 2014, em meio à deterioração da situação da Síria, vimos uma aceleração da migração nesta rota, fenômeno que ganhou o nome de “crise de refugiados” no noticiário.
A situação só se tornou uma ‘crise’, porém, porque as lideranças europeias fizeram a escolha de barrar a entrada dos migrantes que fugiam de conflitos, muitos deles produzidos com a participação dessas mesmas elites políticas e econômicas europeias.
A pesquisa de Cas Mudde, um dos principais estudiosos sobre a extrema-direita no Norte Global, aponta que, ao lado do 11 de Setembro e da recessão do sistema neoliberal de 2007-2008, a ‘crise’ dos refugiados de 2014 e 2015 foi um dos eventos que serviu para galvanizar a quarta, e atual, onda da extrema-direita na Europa.
Esses partidos trouxeram à tona as piores facetas do continente. Elites europeias inventaram o conceito de raça e, com ele, o racismo. Estabelecidas na Europa e fora dela, utilizaram tais ideias para exterminar os indígenas americanos, escravizar milhões de africanos e afirmar sua identidade branca e cristã, em larga medida em oposição a um Oriente Médio majoritariamente não-branco e muçulmano.
Sintetizada no encontro entre o massacre e a burocracia – como escreveu o filósofo camaronês Achille Mbembe – esta racionalidade ocidental, base do colonialismo, encontrou seu auge nos crimes do nazi-fascismo. Apesar da derrota na Segunda Guerra Mundial, esta ideologia trafega o mundo sociopolítico europeu desde a guerra, nas ondas que Mudde descreve.
A quarta onda é caracterizada pela entrada de ideias extremistas no mainstream político, o que deu aos partidos adeptos desta ideologia muitos votos e grande influência sobre as políticas públicas. Isso fez com que partidos de centro e de esquerda se rendessem à xenofobia como forma de fazer política e de governar seus países, sendo a Dinamarca o mais claro exemplo.
O jardim dos brancos precisa ser protegido
Como consequência, essa mesma lógica serve para pautar a política externa da União Europeia. A chegada em massa de imigrantes não-brancos e não-cristãos ao continente reforçou o apego europeu a sua identidade branca e cristã e a necessidade de demarcar uma separação, uma fronteira, entre essas identidades.
Como escreveu Gregory J. Goalwin, a resposta europeia à chegada dos refugiados “pode ser vista como o mais recente esforço para robustecer tais fronteiras, nascido de uma política que coloca forte ênfase nas preocupações étnico-religiosas”. Em outras palavras, a política externa da UE para a questão da migração se tornou uma derivação dos preconceitos históricos e atuais que sublinham a identidade europeia.
Mas como podemos justificar este diagnóstico de que UE tem uma política externa para refugiados pautada pela xenofobia?
Um bom início são as palavras do chefe das relações exteriores da UE, Josep Borrell. Integrante do PSOE, o partido socialista da Espanha, ele está longe de ser um extremista de direita. Mas o trecho abaixo é o resumo feito por ele, em outubro de 2022, sobre o que os jovens diplomatas da UE deveriam pensar:
Sim, a Europa é um jardim. Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade econômica e coesão social que a humanidade conseguiu construir - as três coisas juntas. (...) O resto do mundo (...) não é exatamente um jardim. A maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros devem cuidar disso, mas não protegerão o jardim construindo muros. (…) Os jardineiros têm que ir para a selva. (...) Caso contrário, o resto do mundo nos invadirá, por diversos caminhos e meios.
Uma outra forma de defender o diagnóstico é observar a política da UE. Borrell se desculpou pela analogia do jardim e da selva, mas a atuação de Bruxelas pode ser caracterizada exatamente pela descrição feita por ele.
Dinheiro por migrantes
Em linhas gerais, a opção das elites políticas europeias é tratar a migração como uma questão de segurança, “externalizando” suas fronteiras. Como? Por meio de acordos apelidados de “dinheiro por migrantes”, em que a UE ou países europeus pagam para que governos não-europeus impeçam a saída de migrantes rumo ao “jardim”.
O mais famoso deles foi travado em 2016, com a Turquia. Em troca de dois pagamentos de € 3 bilhões, o governo em Ankara prometeu fortalecer suas fronteiras e receber de volta “imigrantes ilegais” que conseguiram chegar até a Europa.
Além deste, está em vigor um outro acordo, com a Líbia, liderado pela Itália, que desde o início dos anos 2000 financia atividades como a construção de centros de detenção e treinamento para as polícias locais impedirem a saída dos migrantes em direção à Europa.
Mais recentemente, este acordo, apoiado pela UE, passou a prever treinamento para a Marinha e a Guarda-Costeira da Líbia. Ocorre que o país está engolfado em uma guerra civil desde que governos europeus e os Estados Unidos derrubaram o antigo ditador e abandonaram o país à própria sorte.
Por conta da natureza fragmentada do poder na Líbia, as funções de segurança nas fronteiras são “realizadas por milícias, contrabandistas e grupos armados que gravitam em torno das estruturas oficiais do Estado”. Com dinheiro e equipamentos europeus, essas forças capturam os migrantes em alto-mar e os colocam em centros de detenção, também financiados pela Europa e controlados por milícias, onde são sistematicamente submetidos a violência e inúmeros abusos.
Em recente visita a Túnis, a chefe da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen (de centro-direita, nem de longe uma extremista), ofereceu um pacote de mais de € 1 bilhão ao governo local em um acordo que serviria de “modelo” para outros a serem firmados com o Egito e a Argélia.
A oferta da UE à Tunísia chamou atenção pois coloca por terra qualquer argumentação sobre a conexão entre direitos humanos e a política externa do bloco.
Os acenos legitimam o presidente Kais Saied, que consolidou seu poder perseguindo opositores políticos, jornalistas e integrantes do Judiciário ao mesmo tempo em que conseguiu aprovar uma Constituição de espírito autoritário e promover a eleição de um legislativo impotente.
Um triângulo de extremistas no Mediterrâneo
A atuação de Saied é demonstração da complexidade do desafio imposto pela extrema-direita ao mundo e da necessidade de entender suas implicações no Sul Global. Na Europa, este extremismo é abertamente antimuçulmano e anti-árabe, mas Saied, que é muçulmano e árabe, utiliza estratégias semelhantes a de seus colegas europeus.
Em fevereiro, ele fez um discurso abertamente racista contra negros, afirmando que a chegada de migrantes da África subsaariana à Tunísia era parte de uma conspiração para diluir a identidade árabe-islâmica do país - argumento semelhante ao de extremistas europeus que temem a diluição da identidade branca-cristã.
A fala deu início a uma onda de violência racial na Tunísia, agravando a situação de comunidades já fragilizadas que aguardam uma oportunidade de tentar a arriscada travessia do Mediterrâneo.
Do outro lado do mar, a extrema-direita também viceja. A Itália, país europeu que mais recebe imigrantes por meio desta rota, é atualmente governada pela radical Giorgia Meloni. Em meio ao crescimento do número de travessias, seu governo aprovou um projeto de estado de emergência que permitiu às autoridades locais tornar mais rígidas as regras sobre quem tem direito a asilo e a acelerar a deportação daqueles que chegam em barcos.
Na Grécia, outra porta de entrada para a Europa, as práticas violentas contra os migrantes têm ainda mais evidência.
Em maio, uma investigação feita em parceria pelo jornal The New York Times e por ativistas revelou um escândalo: um grupo de 12 migrantes africanos que já estavam em território grego, incluindo crianças e um bebê, foi devolvido ao mar para que acabasse encontrado pela guarda-costeira da Turquia.
Em junho, de acordo com investigação da BBC, a guarda-costeira da Grécia deliberadamente deixou à deriva, por sete horas, um barco de pesca egípcio que levava mais de 700 pessoas. A embarcação naufragou, matando pelo menos 596 pessoas de uma só vez.
Esses episódios ocorreram durante a mais recente campanha eleitoral da Grécia, em que o tema da imigração não foi o principal, mas o debate sobre ele teve resultado didático: a extrema-direita cresceu, o primeiro-ministro de centro-direita prometeu ampliar a barreira de 35 quilômetros que fecha a fronteira com a Turquia e a esquerda abriu mão da defesa dos imigrantes.
O quadro sobre a política europeia para a migração é completado pela criminalização da ajuda humanitária aos refugiados. Em novembro de 2022, a primeira ação do extremista Matteo Piantedosi, ministro do Interior da Itália, foi barrar um navio da ONG SOS Mediterranee, que havia resgatado 230 pessoas no mar.
Na Grécia, essa situação é simbolizada pela perseguição à ativista síria Sarah Mardini. Ela e sua irmã são as personagens principais do filme As Nadadoras, que mostra como ambas atravessaram parte do Mediterrâneo a nado, para salvar os migrantes com quem faziam a travessia.
Enquanto sua irmã se tornou uma nadadora olímpica, Sarah rumou na Grécia e passou a atuar no salvamento de migrantes. Por conta disso, enfrenta há anos um processo judicial. Em janeiro, o caso foi rejeitado por um tribunal grego, mas a promotoria entrou com um recurso.