F.Or.M. (22/3/24) - Como Israel criou e fomenta a crise de fome na Faixa de Gaza
A destruição da infraestrutura agrícola, as restrições à entrada de alimentos e o rompimento da lei e da ordem explicam o cenário catastrófico
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
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A fome está instalada na Faixa de Gaza
Os mapas abaixo são as principais ilustrações de um relatório divulgado na segunda-feira 18 pela Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar, a IPC, uma iniciativa composta por organizações governamentais, ONGs e agências da ONU.
A escala IPC foi criada para determinar a gravidade e a extensão das situações de insegurança alimentar e de desnutrição nos países, seguindo padrões internacionalmente reconhecidos. A íntegra e o resumo do relatório estão online.
A imagem à direita é a mais importante. Ela mostra que, das cinco divisões administrativas da Faixa de Gaza, duas – Norte de Gaza e Gaza – estão no nível 5, o mais grave, intitulado como “catástrofe”.
Este nível se estabelece quando, mesmo utilizando “todas as suas estratégias de sobrevivência”, as pessoas “quase não têm alimentos e não conseguem satisfazer as suas necessidades básicas” de nutrição, o que deixa evidentes “a fome, a morte, a miséria e os níveis extremamente críticos de desnutrição aguda”.
As outras três áreas – Rafah, Khan Younis e Deir al-Balah – estão no nível 4, o de “emergência”, em que as “pessoas enfrentam uma escassez extrema de alimentos, a desnutrição aguda e os níveis de doenças são excessivamente elevados e o risco de morte relacionada com a fome está aumentando rapidamente.”
Sobre o mapa, há uma janela temporal: 16 de março a 15 de julho. Isso significa que este cenário já está instalado ou que pode se instalar, no mais tardar, em julho.
Segundo o relatório, 1,1 milhão de pessoas estão no estágio de catástrofe, 854 mil em emergência e outras 265 mil no estágio 3, de crise. Isso totaliza 2,23 milhões pessoas, toda a população da Faixa de Gaza. É a primeira vez que a população inteira de uma região está nesta situação, reconheceu o governo dos EUA na terça-feira 19.
Este cenário não é exatamente uma novidade para o leitor deste boletim. Como o noticiário vem mostrando há meses, a população da Faixa de Gaza, em especial na região norte, adotou como “estratégia de sobrevivência” uma alimentação que envolve ração animal, grama, feno, folhas de árvores e carne de gatos e cachorros.
O resultado também é evidente, como mostra o material exibido aqui semana a semana. Na sexta-feira 16, a AFP informou que Dominic Allen, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), disse, após visitar Gaza que os “médicos não veem mais bebês de tamanho normal.”
Na terça-feira 19, a Reuters publicou uma reportagem que, uma vez mais, mostra crianças em estágio grave de desnutrição tanto no norte quanto no sul da Faixa de Gaza.
A culpa pela crise de fome é de Israel
Na minha avaliação, não há qualquer tipo de dúvida razoável a respeito da responsabilidade israelense pela situação. Nesta semana, inclusive, algumas lideranças fizeram afirmações neste sentido.
Javier Borrell, chefe de política-externa da União Europeia, reafirmou que “a fome é usada como arma de guerra” e que “Israel está provocando fome.” Ayman Al-Safadi, ministro do Exterior da Jordânia, disse que Israel está “matando crianças de fome e tomando como reféns mais de dois milhões de palestinos.”
Volker Turk, alto-comissário da ONU para Direitos Humanos, foi mais didático. “A extensão das contínuas restrições de Israel à entrada de ajuda em Gaza, juntamente com a forma como continua a conduzir as hostilidades, pode equivaler ao uso da fome como método de guerra, o que é um crime de guerra”.
Turk acrescentou ainda que “Israel, como potência ocupante, tem a obrigação de garantir o fornecimento de alimentos e cuidados médicos à população, proporcionais às suas necessidades e de facilitar o trabalho das organizações humanitárias para prestar essa assistência.”
Três fatores que explicam a crise
Três conjuntos de ações por parte de Israel demonstram a responsabilidade do governo do país pelo que está acontecendo na Faixa de Gaza.
O primeiro deles envolve a destruição na região. Desde o início, Israel bombardeou indiscriminadamente a Faixa de Gaza, uma prática que tinha predileção pela infraestrutura urbana, mas que não poupou equipamentos agrícolas. O trabalho aéreo foi complementado pelas forças terrestres.
Ainda em dezembro, a Human Rights Watch mostrou que militares israelenses estavam deliberadamente destruindo pomares, estufas e campos de plantação na Faixa de Gaza. Em 15 de março, uma investigação do Bellingcat mostrou que, junto com as áreas agrícolas, Israel está devastando as árvores da Faixa de Gaza.
Dados presentes no relatório desta semana da IPC ilustram essa prática. A invasão israelense danificou ou destruiu 626 poços artesianos, 47 reservatórios de água, 307 celeiros, 146 locais de armazenamento de alimentos, 119 abrigos de animais e 529 fazendas de laticínios e carnes diversas. A Faixa de Gaza, portanto, não tem mais condições de produzir alimentos.
O segundo ponto é a restrição da entrada de suprimentos na Faixa de Gaza. Há meses, há relatos de caminhões parados na fronteira com o Egito, única porta de entrada para a região após Israel fechar todos as passagens a partir de seu território.
Na quarta-feira 20, o New York Times informou que são atualmente 1,2 mil caminhões nesta situação, sendo 800 deles com alimentos.
O governo israelense sustenta que a demora na liberação não é sua culpa, no que é desmentido por todos os outros envolvidos. A reportagem que demonstrou isso de forma mais clara foi publicada em 1º de março pela CNN, e repercutida aqui no Filtro no dia 8.
Na quarta-feira 20, as forças armadas israelenses culparam a ONU pela situação em uma mensagem postada no Twitter. Inadvertidamente, confirmaram que apenas um quinto dos suprimentos necessários para a Faixa de Gaza subsistir entraram na região desde o 7/10.
Foram, de acordo com os próprios números de Israel, 17.647 caminhões em 165 dias, uma média de 107 por dia. Até 6 de outubro, eram 500 caminhões diários com alimentos e outros itens. Conjugada à destruição da infraestrutura agrícola, as restrições à entrada de alimentos demonstram como a crise de fome se instalou.
Na quinta-feira 21, mais uma confirmação sobre a responsabilidade: Alicia Kearns, presidente da Comissão de Assuntos Exteriores do parlamento britânico, divulgou uma carta que recebeu de David Cameron, ex-premiê e secretário do Exterior do Reino Unido. Segundo ele, “rejeições arbitrárias por parte do governo de Israel e procedimentos de liberação demorados, incluindo múltiplos escaneamentos e janelas de abertura estreitas durante o dia” são “o principal” motivo pela demora na entrada de alimentos.
Um terceiro conjunto de ações a indicar a responsabilidade de Israel é o cenário de distribuição de suprimentos na Faixa de Gaza. A forma como Israel vem empreendendo sua ocupação promoveu o total rompimento da lei e da ordem, dificultando o trabalho das organizações humanitárias e tornando as tentativas da população de obter alimentos uma tarefa incrivelmente arriscada.
A violência perpetrada pelas forças israelenses é um elemento decisivo. Em 5 de fevereiro, a Israel atacou um comboio que levava alimentos ao norte de Gaza; em 21 de fevereiro, bombardeou um prédio da ONG Médicos sem Fronteira; em 29 de fevereiro, realizou o “massacre da farinha”; em 14 de março, atacou um depósito da UNRWA.
Israel também realiza ataques contra as forças policiais palestinas, que vêm tentando fazer a segurança dos poucos suprimentos que circulam pela Faixa de Gaza. Elas se tornaram alvo pois estão sob os auspícios do Hamas, que é (ou era até 6 de outubro) o governo na região.
Israel alega que o Hamas desvia ajuda humanitária, mas, em fevereiro, o enviado especial dos EUA para este tema, David Satterfield, disse que o governo israelense não forneceu nenhum tipo de evidência para essa acusação.
Ao mesmo tempo, a campanha israelense fez da Faixa de Gaza, em especial sua porção norte, uma terra de ninguém. Em meio ao caos, grupos armados começaram a atuar fornecendo segurança para os comboios de ONGs internacionais que conseguem a liberação de suprimentos.
Nos últimos dias, a agência turca Anadolu, o jornal emirati The National e a emissora saudita Al-Arabiya relataram que homens armados pertencentes a clãs importantes estiveram envolvidos com a entrega de alimentos no norte de Gaza. Segundo a Reuters, além dos clãs, grupos da sociedade civil e de facções políticas, como o Fatah, rival do Hamas, também estão atuando.
Ao menos parte desses grupos age, porém, em uma zona cinzenta. Conforme contou a revista The Economist, alguns oferecem segurança privada para ONGs, mas, ao mesmo tempo, realizam roubos de alimentos e participam da pilhagem das residências destruídas por Israel. Como mostrou no sábado 16 a +972 Magazine, há casos de grupos criminosos que intimidam cidadãos e confiscam alimentos.
Os grupos armados ligados aos clãs estão, além de tudo, sob grande pressão, pois Israel busca recrutar parte deles para substituir o Hamas na governança da Faixa de Gaza enquanto o movimento palestino tenta mantê-los sob seu controle.
Nos últimos dias, ataques de Israel mataram dezenas integrantes de clãs que faziam a segurança de comboios de alimentos e também alguns policiais proeminentes envolvidos nessas operações. São ações que continuam contribuindo para um cenário caótico.
“O maior grupo de amputados pediátricos da história”
Reportagem publicada pela New Yorker na quinta-feira 21 detalha a situação dramática das crianças palestinas que tiveram membros amputados por conta dos ataques israelenses. Segundo a Unicef, são pelo menos 1 mil crianças nesta situação.
Ghassan Abu-Sittah, médico palestino radicado em Londres, que esteve em Gaza e deu diversas entrevistas à imprensa ocidental, estima que este seja o maior grupo de crianças amputadas ao mesmo tempo.
De acordo com Abu-Sittah, devido ao crescimento, crianças nessa situação precisam de 8 a 12 cirurgias após a amputação, o que garante a este contingente um vida de enorme sofrimento.
Na revista Forward, dedicada ao público judeu dos EUA, a médica Vanita Gupta publicou na quarta-feira 20 um depoimento sobre seu período de voluntariado na Faixa de Gaza. Ela relata as amputações sem anestesia e a impossibilidade de cuidar de muitos dos ferimentos. Gupta menciona, ainda, que tratou crianças de menos de 10 anos baleadas na cabeça. “Se eu me ferisse lá, o melhor seria morrer.”
Depoimento semelhante é o do médico britânico Nick Maynard, que conversou com a Al-Jazeera na terça-feira 19. Suas palavras são devastadoras:
Lembro-me de ver uma criança pequena que tinha queimaduras terríveis no rosto, tão graves que dava para ver os ossos do rosto e ela claramente não tinha chance de sobreviver e ia morrer, mas não tínhamos nenhum analgésico para lhe dar. Então ela não só certamente iria morrer, mas também não poderia morrer em paz, ela morreu em agonia. Não havia nenhum lugar tranquilo para ela ir. Ela acabou deitada no chão do pronto-socorro e este foi um caso, mas vimos vários casos como esse e eles foram profundamente trágicos.
Apoio ao 7/10 entre os palestinos continua alto
Uma nova pesquisa de opinião realizada pelo Palestinian Center for Policy and Survey Research (PCPSR) mostrou que o apoio dos palestinos aos ataques realizados pelo Hamas em 7 de outubro continua alto. Era de 72% em dezembro e agora está em 71%.
No mesmo período, a porcentagem de pessoas que citam o Hamas como partido preferido caiu de 43% para 34%. De acordo com o instituto, o apoio ao 7/10 em meio à queda de popularidade do Hamas tem relação com o fato de que 75% dos entrevistados concordam com o fato de que a ofensiva foi capaz de reavivar as discussões internacionais a respeito do estabelecimento de um Estado palestino.
Quase a totalidade dos entrevistados – 91% – acham que o Hamas não cometeu crimes de guerra no conflito atual. Ao menos em parte, avalia o PCPSR, esse nível de respostas tem relação com o fato de que 80% dos palestinos não viram os vídeos, exibidos por diversos veículos de imprensa, que mostram atrocidades cometidas pelo Hamas contra cidadãos israelenses, como matar crianças e mulheres dentro de casa.
Apesar de só um terço dos palestinos citar o Hamas como partido preferido, entre 59% e 63%, a depender das opções apresentadas, citam o retorno do Hamas como desfecho preferido num eventual pós-guerra. Todas as outras alternativas mencionadas na pesquisa – controle de Israel, de clãs locais, da Autoridade Palestina, da ONU e de forças árabes – são totalmente rechaçadas.
Trata-se de uma demonstração cabal de como a falta de perspectivas políticas nos territórios palestinos facilita a manutenção do controle da Faixa de Gaza pelo Hamas.
A pesquisa foi realizada entre 5 e 10 de março, com 1.580 adultos, tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza, e tem margem de erro de 3 pontos. A íntegra está online.
Prossegue o resgate à economia do Egito
Em meio a uma das piores crises econômicas de sua história, o Egito continua a ser resgatado por seus parceiros. Em fevereiro, o governo dos Emirados Árabes Unidos prometeu US$ 35 bilhões para desenvolver a região litorânea de Ras El Hekma. No início de março, o FMI confirmou mais US$ 8 bilhões.
No domingo 17, foi a vez da União Europeia anunciar um pacote de mais de €$ 7 bilhões para o regime de Abdel Fattah al-Sissi, além de uma elevação no nível da relação entre as partes para uma “parceria estratégica”.
Além de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, cinco chefes de governo europeus visitaram o Cairo para o anúncio, um sinal da importância que os governos do continente dão para a relação com Sissi.
É simples entender a motivação. Com uma população de 109 milhões de pessoas, a bancarrota do Egito poderia significar uma nova onda de refugiados. Como escrevi em julho do ano passado, o Mediterrâneo se tornou um cemitério a céu aberto, à medida que milhares de desesperados perecem enquanto tentam chegar à Europa.
A UE já mantém acordos de cooperação com diversos países do norte da África, que envolvem inúmeras ações para combater o tráfico de seres humanos, muitas delas altamente problemáticas, como o financiando de forças de segurança que utilizam técnicas brutais e de prisões onde os direitos dos presos são sistematicamente violados.
Como a prioridade para as lideranças europeias é manter os estrangeiros não-brancos fora de suas fronteiras, a opção com relação ao Egito foi ajudar a estancar a sangria apesar de Sissi ser o principal responsável por levar o país à atual situação.