O Filtro do Oriente Médio (1/12/23) - Em Gaza, devastação é deliberada e movida por IA
A vida civil na Faixa de Gaza foi arrasada, em parte graças a uma ferramenta de inteligência artificial que produziu uma “fábrica de assassinatos em massa”. Israel conhecia plano do Hamas há um ano
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com conteúdos sobre a política da região. Alerto que esta edição traz relatos pesados de sofrimento, o que pode ser desconfortável para algumas pessoas.
Hoje, o tema é único: a destruição humana provocada por Israel na Faixa de Gaza. O foco neste sofrimento não exclui outros sofrimentos, como o dos reféns israelenses – reportado vastamente na mídia, inclusive na brasileira – e o verificado na Cisjordânia.
Ali, a situação vem se deteriorando há dois anos, em especial desde o massacre perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro. Em 29 de novembro, em Jenin, Adam Al-Ghoul, um garoto de apenas 8 anos, foi assassinado por um soldado israelense com um tiro na cabeça, em uma cena que foi filmada, como mostraram a BBC, a CNN e a Al-Jazeera.
Em 30 de novembro, dois homens do Hamas saíram de um carro em Jerusalém e atiraram contra pessoas que estavam em um ponto de ônibus, matando três israelenses. As cenas também foram filmadas, como mostrou o Times of Israel.
A opção por colocar o foco na Faixa de Gaza reside no fato de que, na última semana, foi possível entender com mais profundidade a situação, graças à pausa humanitária. a partir desta sexta-feira 1º, essa janela se fechou com a retomada das hostilidades.
As edições anteriores do Filtro do Oriente Médio podem ser vistas neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
Destruição sem precedentes
A pausa humanitária na guerra entre Israel e o Hamas revelou o nível da devastação imposta à população civil da Faixa de Gaza. Os relatos deixam claro o horror de uma operação militar que matou pelo menos 15 mil pessoas, incluindo 6 mil crianças. Repetindo: seis mil crianças mortas.
Cerca de 1,8 milhão de pessoas, 80% da população da Faixa de Gaza, foram deslocadas internamente. A superlotação nos abrigos e as condições de higiene precárias têm tornado mais comuns relatos de infecções respiratórias e dermatológicas, diarreia, hepatite e infestação de piolhos.
Em 28 de novembro, a OMS alertou que, se o sistema de saúde não for colocado para funcionar, as doenças podem matar mais do que as bombas. Este vídeo postado pela CNN traz um panorama da cidade de Khan Younis.
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Uma ofensiva que não poupa crianças
Desde o início da pausa humanitária, algumas pessoas têm retornado para suas residências. Muitos só encontram desolação. A Al-Jazeera acompanhou a família do professor Yasin Al-Jarra a sua casa em Khan Younis (abaixo). Nada sobrou do imóvel de quatro andares onde moravam dezenas de pessoas.
A reportagem ouviu um dos filhos de Al-Jarra, de 9 anos. “Estou muito triste. Perdi todos os meus livros, sinto falta da minha cama e dos meus brinquedos também”, diz o garoto. Qual será seu futuro?
Já Khaled Nabhan voltou para a casa de sua família no campo refugiados de Al-Nuseirat, também no sul da Faixa de Gaza. O retorno foi acompanhado por produtores da CNN, em reportagem que foi ao ar em 29 de novembro. O local estava em ruínas.
Nabhan foi até lá para recolher lembranças de seus netos, Tarek, de 5 anos, e Reem, de 3 anos, cujos corpos foram encontrados juntos nos escombros após um bombardeio israelense. Deixou o local com uma boneca e patinetes.
À reportagem, Nabhan exibiu vídeos do funeral das crianças e também da vida que levavam. Ele tinha uma relação especial com a menina, Reem, e hoje carrega um de seus brincos preso à lapela do paletó. “Ela era a alma da minha alma”.
James Elder, porta-voz da Unicef que esteve na Faixa de Gaza nesta semana, deu uma entrevista para o site de notícias da ONU em 28 de novembro. Ele afirma que o que viu está “além de qualquer nível de compreensão” e fez o seguinte relato a respeito da história de um garoto de 7 anos, Omar, cujos pais e o irmão gêmeo foram assassinados.
“Mesmo enquanto ele falava comigo (…) ele ficava fechando os olhos e eu perguntei para sua tia por qual motivo (…). Ela disse: ‘ele está aterrorizado [com a possibilidade de] esquecer a aparência de sua mãe e de seu pai. Esse é seu medo agora’. Então ele fecha os olhos porque não pode lidar com o fato de que perdeu os pais neste mundo e que pode perdê-los em sua imaginação também.” Seu depoimento pode ser ouvido aqui:
Obliteração deliberada e potencializada por IA
O estrago sem precedentes promovido por Israel é deliberado, o que já havia ficado claro em 9 de outubro, quando o porta-voz das forças armadas israelenses afirmou, como contou o Guardian, que “a ênfase está no dano e não na precisão”. Dois dias depois, o chefe da força aérea de Israel confirmou: “sempre há um alvo militar, mas não estamos sendo cirúrgicos”.
Esta excepcional apuração de Yuval Abraham publicada pela +972 Magazine e pelo site Sikha Mekomit em 30 de novembro reforça este diagnóstico. Abraham ouviu oficiais da ativa e da reserva da inteligência israelense e traçou um quadro perturbador a respeito da ação do país na Faixa de Gaza. Um oficial afirmou à revista que “nada acontece por acidente” e emendou:
“Quando uma menina de 3 anos é morta numa casa em Gaza, é porque alguém do exército decidiu que não era grande coisa ela ser morta – que era um preço que valia a pena pagar para atingir [outro] alvo. Nós não somos o Hamas. Estes foguetes não são aleatórios. Tudo é intencional. Sabemos exatamente quantos danos colaterais existem em cada casa.”
Entre os muitos detalhes, Abraham confirmou que as regras de engajamento foram relaxadas, de modo que os novos critérios aceitam mais mortes de civis, e que está em vigor o projeto israelense de atingir power targets (algo como ‘alvos de poder’), que nada mais são do que alvos civis. A intenção é provocar um abalo na relação entre a população e o Hamas (leia mais sobre isso abaixo).
Essa é uma prática existente pelo menos desde 2014, mas que agora foi ampliada. Isso explica as bombas jogadas contra mesquitas, universidades, o prédio do parlamento em Gaza, entre outros alvos semelhantes.
Além disso, Abraham detalha o funcionamento de uma ferramenta de inteligência artificial chamada Habsora (“O Evangelho”), que processa uma quantidade maciça de informações e produz 100 novos alvos por dia para os militares israelenses. No passado, a inteligência humana produzia cerca de 50 alvos por ano na Faixa de Gaza.
De acordo com uma outra fonte ouvida pelo jornalista, a ferramenta permite ao exército gerir uma “fábrica de assassinatos em massa”, na qual a “ênfase está na quantidade e não na qualidade”.
A reportagem é longa e cheia de detalhes. Nesta sexta-feira, o Guardian também publicou material sobre a ferramenta Habsora. Voltaremos a este tema no futuro.
Volta à normalidade?
Na eventualidade de a guerra acabar com um desfecho que permita a permanência da população palestina na Faixa de Gaza, o retorno à normalidade será, também, uma tarefa complexa.
Em 27 de novembro, o jornal The New York Times publicou uma série de depoimentos de palestinos de Gaza e destacou o de um rapaz de 23 anos, Nazmi Mwafi. Ele se formou em engenharia da computação em setembro e sonhava em trabalhar no Canadá. Agora sua vida se resume a tentar coletar água limpa para a família e sobreviver a essa tarefa.
“Nossa estratégia agora é sobreviver pelo maior período possível”, disse ele. “Se antes eu tinha ambições e esperanças de um bom futuro e de realizar os sonhos que tinha quando criança, agora a minha maior ambição é poder comer, beber água e dormir”.
Mesmo se tirarmos o foco da destruição de vidas, a volta a algum tipo de normalidade é um horizonte difícil de vislumbrar. Locais sem qualquer relação com objetivos militares, banais para qualquer cidade normal, estão devastados.
O Middle East Eye relatou que a principal biblioteca da cidade de Gaza é um dos vários prédios civis aniquilados por Israel. Já a Al-Jazeera (vídeo abaixo) revelou imagens do zoológico de Gaza. A maioria dos animais morreu de fome e os sobreviventes estão em condições terríveis de saúde física e psicológica.
A violência apenas fomenta o Hamas
Em 26 de novembro, dois dias após a pausa humanitária, o Guardian publicou depoimentos de pessoas que, durante as hostilidades, atravessaram o “corredor humanitário” determinado por Israel na rodovia Salah al-Din, que corta a Faixa de Gaza. “O que vivemos não pode ser visto em filmes de terror”, disse Nahla, uma das entrevistadas, que percorreu o caminho com as duas filhas adolescentes.
Os relatos incluem uma travessia com corpos ao lado da estrada, cachorros consumindo parte deles, e soldados israelenses, alguns gritando e sorrindo, mirando diretamente para os palestinos. Homens jovens eram removidos da multidão, presos e despidos, segundo ela.
Este relato é consistente com reportagem publicada pelo Middle East Eye em 27 de novembro, com base em depoimento de um rapaz de 28 anos, identificado apenas como Khaled (que não é seu nome real). Ele conta ter perdido dez pessoas da família em um ataque aéreo, inclusive os dois irmãos, o que o fez rumar para o sul da Faixa de Gaza. Na caminhada, foi preso e despido por soldados israelenses.
Após a detenção, Khaled e outros homens foram levados para a prisão israelense de Sderot: “Fui humilhado, espancado e torturado”, afirmou ele, dizendo que os soldados batiam nos ferimentos dos presos. Depois, ele foi levado para uma casa de detenção em Jerusalém, onde foi tratado com dignidade, até ser enviado de volta para a Faixa de Gaza por meio da travessia de Karam Abu Salem, não sem antes sofrer novas agressões.
Todos esses relatos mostram que a ofensiva israelense está ajudando a moldar uma sociedade palestina na Faixa de Gaza ainda mais traumatizada e com ódio ampliado contra Israel. É exatamente um dos desfechos procurados pelo Hamas quando foi deflagrado o massacre de 7 de outubro. Na revista Forward, dedicada à comunidade judaica nos EUA, o analista Ahmed Fouad Alkhatib, cidadão americano nascido em Gaza, publicou uma importante reflexão sobre isso.
Alkhatib lista vários exemplos da impopularidade do Hamas na Faixa de Gaza, antes e depois de 7/10, mas salienta as muitas formas pelas quais a ação israelense está destruindo a vida dos civis, o que basicamente garante a continuidade do Hamas no futuro próximo. Além disso, destaca ele, não está claro quanto dano a devastação conseguiu causar ao Hamas.
O autor, infelizmente, não entra no mérito das motivações israelenses para agir de tal modo. Há evidências de sobra para refletir sobre isso, o que pretendo fazer nos próximos dias aqui em Tarkiz.
Israel conhecia o plano do Hamas
Reportagem do New York Times revelou que a inteligência israelense tinha em suas mãos um plano de ação do Hamas que detalhava um ataque exatamente igual ao que foi realizado em 7/10.
Uma analista, da famosa Unidade 8200, fez repetidos alertas a respeito do projeto, informando que sua realização se tratava de uma possibilidade concreta. Além disso, a mesma agente indicou que o Hamas realizava treinamentos compatíveis com o plano obtido pela a inteligência.
Ainda assim, seus alertas foram desprezados e o projeto do Hamas, tratado como “imaginário”, pois vigorava a crença de que o grupo islamista não teria condições de realizar uma ação tão ousada quanto o documento previa.
A morte de Henry Kissinger
Antes do fim, uma última dica de leitura. Texto muito informativo de Khaled Elgindy no Cairo Review of Global Affairs a respeito do papel dos EUA nos processos de paz entre Israel e os países árabes, com foco na atuação de Henry Kissinger, morto nesta semana.