Pressão da guerra pode desestabilizar o Egito
Em meio a uma severa crise econômica, o país pode ser destino de grandes contingentes de refugiados palestinos
O resumo do texto, em três pontos:
A insatisfação da população egípcia com a falta de dignidade econômica e com a repressão vem crescendo;
A guerra na Faixa de Gaza pode ser mais um fator a jogar a sociedade contra o regime;
A fragilidade econômica tende a minar a capacidade do governo de lidar com este complexo cenário.
Na sexta-feira 20, o governo do Egito reuniu algumas centenas de seus defensores para um protesto pró-Palestina na região leste do Cairo. O ato contou com diversos cartazes de apoio ao regime: “Não ao deslocamento de palestinos”, “A segurança nacional egípcia é uma linha vermelha” e “Apoiamos a decisão da liderança política de manter a pátria segura.”
Ao mesmo tempo, a praça Tahrir, na região central da capital, epicentro do atos da Primavera Árabe, em 2011, foi tomada por um protesto também pró-Palestina. Neste caso, os manifestantes, que não tinham a anuência do governo, romperam uma barreira policial para chegar ao local.
Eles lembraram a data da ocupação da praça nos eventos de 2011 e conectaram o episódio à causa palestina. “Somos os jovens do 25 de janeiro, não abandonaremos vocês, Palestina”. Para além disso, retomaram um dos slogans da Primavera Árabe ao gritar “pão, liberdade e justiça social”.
Os protestos simultâneos, em favor da mesma causa, mas ainda assim antagônicos, são indicadores da delicada situação política pela qual passa o Egito.
O país vive uma severa crise econômica, cujos desdobramentos políticos são imprevisíveis e podem ser afetados pela deterioração da situação na Faixa de Gaza. É um quadro que deve ser observado em conjunto com o conflito entre Israel e o Hamas e que denota a gravidade do momento pelo qual passa o Oriente Médio.
Por que o Egito não abre a fronteira com a Faixa de Gaza?
As frases do protesto pró-governo ecoam a postura que o presidente Abdel Fatah al-Sissi adotou nos últimos dias. Sissi vem insistindo na necessidade de um cessar-fogo que permita a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza. Essa posição deriva de uma característica básica da política árabe: como as populações são fortemente pró-Palestina, isso obriga os atores políticos locais a adotarem posição semelhante para manter sua legitimidade.
Ao mesmo tempo, Sissi vem resistindo à pressão para abrir a passagem de Rafah, entre a Faixa de Gaza e o Egito, para receber palestinos. Em uma recente entrevista ao Nexo, destaquei que essa posição é derivada de vários fatores, como a proximidade ideológica entre o Hamas e a Irmandade Muçulmana (principal oposição no Egito) e a instabilidade na Península do Sinai, onde as forças de segurança egípcias enfrentam uma insurgência fundamentalista liderada pelo braço local do Estado Islâmico.
O fator mais importante, porém, é a percepção, compartilhada com o governo da Jordânia, de que Israel tem o intuito de transferir a crise para seus vizinhos por meio do deslocamento forçado de palestinos para a Península do Sinai.
Este seria um desfecho extremo para a crise, mas ganha ares de plausibilidade uma vez que Israel tem um governo extremista. Na semana que passou, o Instituto Misgav para Estratégia Sionista e Segurança Nacional, comandado por um importante ex-auxiliar de Benjamin Netanyahu, divulgou um relatório no qual destaca que Israel está diante de uma “oportunidade rara e excepcional de remover todos os palestinos de Gaza para o Egito.”
Sissi vem manifestando sua contrariedade a este projeto. Em 18 de outubro, disse que a solução da questão palestina não poderia se dar às custas de outros países e, no sábado 21, reafirmou que a remoção da população de Gaza implicaria na “liquidação final” do projeto de afirmação nacional palestina.
A resistência do Egito, porém, pode não ser suficiente para conter a eventual chegada maciça de palestinos uma vez que a incursão terrestre israelense ainda não teve início. Quando ela começar, é razoável supor que uma parte significativa da população de Gaza será impelida à fronteira, criando um imperativo humanitário ao qual o governo do Egito dificilmente conseguirá resistir.
Por isso, compreender o quadro da crise econômica e seu entrelaçamento com a guerra é fundamental.
Um modelo econômico esgotado
A crise econômica no Egito tem como núcleo o fato de o país estar preso a um modelo econômico ineficiente, marcado pelo domínio das Forças Armadas sobre a economia.
Desde os anos 1950, os militares têm um papel político determinante no Egito, que gerou também uma grande influência na economia. Após o interregno da Primavera Árabe, as Forças Armadas voltaram a seu lugar proeminente em julho 2013, quando Sissi liderou um golpe de Estado e, na sequência, um banho de sangue contra a Irmandade Muçulmana.
Nesta nova fase, o domínio dos militares se aprofundou. Grandes empresários e uma classe política pró-governo se tornaram quase irrelevantes, enquanto o setor militar ganhou a companhia das forças de segurança e dos serviços de inteligência como controladores da política.
Para manter vivas as redes de apoio ao regime, Sissi entrega companhias estatais aos militares ou abre negócios governamentais a empresas controladas por ex-oficiais, que se aproveitam de informações privilegiadas e da falta de concorrência para ficar com recursos públicos, sufocando a iniciativa privada.
Assim, desde 2013, o escopo de atuação das forças armadas avançou de modo significativo. Além de seus negócios tradicionais em setores como o imobiliário, o de construção civil, turismo e infraestrutura, passaram a controlar também grandes investimentos em telefonia celular, provimento de internet, mineração e mídia.
O dano que este modelo causa à economia egípcia tem como símbolo a nova capital que Sissi idealizou nas cercanias do Cairo. O projeto, que inclui a torre mais alta da África e a maior catedral cristã do Oriente Médio, já consumiu mais de US$ 45 bilhões, sem, no entanto, gerar empregos em grande escala ou melhorar de forma substancial a vida da população egípcia. É um cenário grave tendo em vista que cerca de um terço dos egípcios vive abaixo da linha da pobreza.
Fragilidade abre as portas para mais pressão externa
Nos últimos anos, o regime Sissi vem perdendo a capacidade de sustentar seu modelo de economia-política. Os governos de Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, que financiaram o Egito após o golpe de 2013, reduziram seu apetite por injetar dinheiro no país.
Para piorar, a pandemia de covid-19 abalou a indústria do turismo, enquanto a guerra da Ucrânia elevou drasticamente o preço dos alimentos. Dependente de importações, em especial de trigo, e responsável por importantes subsídios que permitem à população obter itens básicos, o governo encontra dificuldades para se financiar. Assim, ficou evidente o risco de o país não conseguir pagar pagar sua dívida, próxima de 97% do PIB.
Em dezembro de 2022, o FMI aprovou um pacote de ajuda de US$ 3 bilhões ao Egito, mas o país só recebeu a primeira parcela porque falhou em realizar as reformas exigidas pelo fundo, entre elas reduzir o papel dos militares na economia. A recomendação de desvalorizar sua moeda vem sendo seguida, no entanto. Desde o início de 2022, a libra egípcia foi desvalorizada três vezes, perdendo quase metade do seu valor em relação ao dólar.
Uma nova rodada de desvalorização deve ocorrer, mas apenas após a eleição presidencial, antecipada de 2024 para o próximo mês de dezembro. A mudança no calendário se deu para tentar diluir a insatisfação geral, sublinhada por uma inflação recorde, que envolve alta de 92,9% no preço da carne entre 2022 e 2023, e pela atuação das agências de classificação de risco, que estão repetidamente rebaixando a nota do país diante da possibilidade de um calote.
Além da falta de dignidade econômica, a população egípcia é submetida a um dos regimes mais autoritários do mundo. Na esteira da perseguição à Irmandade Muçulmana, as forças de segurança egípcias encarceraram nos últimos anos dezenas de milhares de pessoas, em uma campanha repressora que atinge opositores políticos (incluindo os parente dos críticos do governo), grupos vulneráveis como a comunidade LGBT e os cristãos, e que promove abusos sistemáticos contra as mulheres.
A situação precária da economia e o descaso de Sissi com a penúria da população, têm gerado protestos mesmo diante deste enorme aparato repressor. Assim, mesmo antes do ataque do Hamas a Israel, muitos analistas se perguntavam se o país estava à beira de uma nova revolução como a de 2011. Agora, a resposta a essa questão passa necessariamente pela questão palestina.
Quando há instabilidade nos territórios ocupados, um dos temores das elites políticas árabes é que a situação estimule protestos contra seus governos. Não passa despercebido pelas populações locais o fato de que as lideranças regionais costumeiramente apenas manipulam a questão palestina em proveito próprio.
Esta é a encruzilhada pela qual passa o Egito. O agravamento da situação na Faixa de Gaza pode servir como mais uma camada de insatisfação da sociedade. Na sexta-feira 20, o protesto na Praça Tahrir foi apenas um dos vários não sancionados pelo governo que foram registrados. Nos bastidores, integrantes do regime indicaram ao jornal Mada Masr o temor de que a fragilidade econômica do país faça com que Sissi seja ainda mais pressionado a fazer concessões, talvez abrindo a Península do Sinai para grandes contingentes de palestinos.
O país passou por um quadro parecido em 1991, quando apoiou a ação dos EUA contra o Iraque. Naquele ano, metade da dívida do Egito, então na casa dos US$ 20 bilhões, foi perdoada pelos credores internacionais.
O problema, agora, é que o grosso da população egípcia deve se postar contra a chegada de palestinos, não apenas pela dificuldade que o país teria para recebê-los, mas por isso representar uma vitória para o projeto político israelense. O regime está contra a parede tanto no âmbito doméstico quanto internacional, e a provável invasão terrestre na Faixa de Gaza deve escancarar essa situação.