Por que é real o risco de o conflito entre Israel e o Hamas se tornar uma guerra regional
É crucial entender a importância da questão palestina para as populações e as lideranças do Oriente Médio
Na terça-feira 17, o rei da Jordânia, Abdullah II, esteve em Berlin para uma reunião com o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, e fez um pronunciamento com muitos pontos relevantes a respeito do conflito entre Israel e o Hamas. O mais importante deles foi o seguinte diagnóstico: “Toda a região está à beira de cair no abismo para o qual este novo ciclo de mortes e destruição está nos levando. A ameaça de esta guerra se expandir é real. O custo que isso vai trazer a todos nós é grande demais para aguentar.”
É possível fazer diversas críticas às lideranças do Oriente Médio, exceto a de que não conhecem a região. A fala de Abdullah II deve ser levada a sério e entendida como um recado, em especial para Israel e seus aliados ocidentais, que até aqui parecem ignorar ou negligenciar o tamanho do risco com o qual estão lidando.
Uma guerra regional seria, de fato, um abismo, tão profundo que é difícil visualizar seu fim. Em outros momentos, como em janeiro de 2020, quando os EUA assassinaram o general iraniano Qassem Soleimani, o Oriente Médio também esteve próximo do precipício, mas ali, e em outras ocasiões anteriores, foi possível dar passos atrás.
A dificuldade agora é saber se os eventuais recuos poderão ser feitos em meio à matança de palestinos. Para compreender isso, é preciso entender uma parte das dinâmicas políticas locais e também o peso da questão palestina.
Dois blocos e as questões geopolíticas
As duas últimas décadas foram as mais violentas da história moderna do Oriente Médio. O marco inicial deste período é a invasão do Iraque por parte dos EUA, em 2003, pouco depois de ação semelhante no Afeganistão.
Aquele episódio criou, para a liderança do regime iraniano, um grau de ameaça intolerável. Neste texto do mês passado, eu explorei com um pouco mais de detalhes essa questão, mas aqui podemos fazer um resumo: Teerã, temendo uma invasão norte-americana, buscou construir capacidade retaliatória contra os EUA e seus aliados e interesses na região. E conseguiu.
O regime iraniano tem hoje um programa de mísseis que reescreveu as regras da guerra no Oriente Médio e um conjunto de alianças significativo, onde estão o Hezbollah (Líbano), o Hamas (Faixa de Gaza), os Houthis (Iêmen), o regime de Bashar al-Assad na Síria e diversas milícias que atuam no Iraque. Este é o autoproclamado “eixo da resistência”.
Do outro lado, estão os EUA e seus aliados, como Israel, Arábia Saudita, Jordânia, Egito e Emirados Árabes Unidos, entre outros. Enquanto Israel conta com apoio irrestrito de Washington, o mesmo não se pode dizer dos países árabes.
Uma característica central do Oriente Médio desde a eleição de Barack Obama, que perpassou o mandato de Donald Trump e chegou ao de Joe Biden, é um desengajamento político dos EUA em relação a seus aliados árabes. Isso abriu espaço para que esses países aprofundassem suas ligações com a Rússia e a China, mas também com o Irã, em busca de algum tipo de relaxamento nas tensões.
O histórico recente mostra que, talvez com a exceção do Hamas neste momento, uma guerra regional não é do interesse de nenhum dos principais atores locais. O status quo atual não é o ideal para muitos deles, mas é preferível a uma guerra de desfecho incerto porém certamente violento.
O regime iraniano é frequentemente apontado como um desestabilizador da região, mas cabe lembrar que a resposta de Teerã ao assassinato de Soleimani – um ato de guerra e completamente ilegal – foi tímida. Por quê? Porque qualquer reação à altura envolveria o país num confronto direto com os EUA.
A importância simbólica e prática da questão palestina
O risco de a guerra entre Israel e o Hamas engolfar todo o Oriente Médio reside na importância simbólica e prática da questão palestina. Ela serve como ferramenta de afirmação e legitimidade política para diversos governos, regimes e movimentos da região, o que pode incentivar falas e ações e incendiárias.
Ao mesmo tempo, essa importância faz com que eventuais recuos se tornem mais difíceis diante da calamidade que já está ocorrendo na Faixa de Gaza e que pode se alastrar para a Cisjordânia.
Mas qual é a importância da questão palestina? Para os palestinos, seu encontro com o sionismo – o nacionalismo judaico – representa a perda de sua pátria, a desintegração da sociedade, a frustração da aspiração nacional e a destruição de sua cultura.
Para o grosso da população árabe, a questão palestina é o prisma por meio do qual muitos formam suas opiniões a respeito dos assuntos internacionais. Mais que isso, é o símbolo de um longo período em que as populações árabes viram seus destinos moldados pelos estratagemas das potências estrangeiras.
O fim do Império Otomano, na Primeira Guerra Mundial, ensejava a possibilidade de emancipação nacional para os árabes, mas esse projeto foi substituído pela colonização de uma boa parte de suas terras graças ao sistema de mandatos criado pela Liga das Nações, precursora da ONU.
Neste contexto, a criação de Israel é entendida como o ponto alto deste processo. Como escreveu o jornalista Samir Kassir, o Nakba – o processo de limpeza étnica perpetrado por Israel durante a guerra de 1948 – significou uma catástrofe para os árabes como um todo porque mostrou que “o domínio estrangeiro, que parecia estar de saída após a Segunda Guerra Mundial, estava lá para ficar e que eles estavam desamparados para confrontá-lo assim como estavam no fim da Primeira Guerra Mundial”.
Israel é compreendido em boa parte do mundo árabe, deste modo, como um projeto imperialista ocidental e, portanto, estrangeiro, criado pelo antissemitismo europeu e resolvido às custas dos povos árabes. Sintoma de que tal sentimento está vivo foi o fato de que, na semana que passou, o presidente do Egito, Abdel Fatah al-Sissi, destacou ao secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, que os judeus foram historicamente muito mais perseguidos na Europa do que no Oriente Médio.
Apesar disso, e graças a suas repetidas vitórias em conflitos militares, Israel é hoje parte indissociável do cenário político do Oriente Médio. Tem acordos de paz com o Egito e a Jordânia e recentemente normalizou suas relações com diversos outros países da região através dos chamados Acordos de Abraão.
Israel e o Ocidente compreendem o quadro?
A liderança israelense, porém, parece negligenciar (ou simplesmente não se importa) com o fato de que a manutenção de sua ilegal, brutal e humilhante ocupação sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, principal fator a impedir o estabelecimento de um Estado palestino, é o que bloqueia sua normalização definitiva no Oriente Médio.
Essa situação exaspera lideranças árabes como as de Jordânia e Arábia Saudita. Por conta do Irã, ambos desejam uma aproximação ainda maior com Israel, mas não o fazem por conta de uma opinião pública fortemente pró-Palestina, o que voltou a ser explicitado nos últimos dias.
No fim de setembro, antes do ataque do Hamas, um integrante da diplomacia saudita disse achar “incompreensível que os israelenses não consigam entender que é fundamentalmente do seu interesse procurar um quadro crível para negociações que possam proporcionar uma paz duradoura”.
No mesmo período, Abdullah II da Jordânia, que tem um acordo de paz com Israel, foi ainda mais explícito: “Esta crença, por parte de alguns na região [a liderança em Israel], de que é possível saltar de paraquedas sobre a Palestina, lidar com os árabes e regressar – isso não funciona”, afirmou. “E mesmo os países que têm Acordos de Abraão com Israel têm dificuldade em abordar publicamente essas questões quando israelenses e palestinos estão a morrer. Portanto, a menos que resolvamos este problema, nunca haverá uma paz verdadeira.”
É impossível ser mais claro que isso a respeito de uma situação que é óbvia. Ainda assim, lideranças civis e militares israelenses implantaram nos últimos dias uma retórica genocida direcionada a palestinos enquanto a situação humanitária na Faixa de Gaza se deteriora. Ao mesmo, na Cisjordânia, o contínuo processo de limpeza étnica contra palestinos se perpetua, e quase 60 pessoas foram mortas por colonos judeus desde o dia 7. O alastramento do conflito para a Cisjordânia e Jerusalém pode ser um dos eventos que crie um ponto de não retorno.
Diante deste cenário, enquanto lideranças árabes apelam para um cessar-fogo, temendo justamente a ampliação do conflito, lideranças ocidentais como as de Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido aplaudem a elite política israelense.
No caso específico do governo norte-americano, que proibiu seus integrantes de falarem em “cessar-fogo” e “restauração da calma”, essa postura tem, como afirmou o colunista Trita Parsi, contornos de desumanidade e incompetência atrozes, que prejudicam não apenas os interesses de Israel como os dos Estados Unidos.
Afinal, uma escalada regional do conflito certamente obrigaria Washington a intervir, colocando seus soldados e, eventualmente, sua população, sob risco, além de reduzir a capacidade do país de enfrentar seus principais adversários geopolíticos, a Rússia e a China.
No lado israelense, Benjamin Netanyahu é, sem sombra de dúvida, o principal responsável pela manutenção da crise na questão palestina. Seu principal legado político é derrotar o “campo da paz” que assinou os Acordos de Oslo nos anos 1990. Desde dezembro, ele se cercou do que há de pior na política israelense, um grupo de fundamentalistas religiosos, fascistas, racistas e incitadores do terrorismo.
O projeto deste grupo político não é nem a solução de um Estado (israelenses e palestinos no mesmo país) nem a solução de dois Estados (Palestina e Israel, lado a lado). Seu projeto é a manutenção dos palestinos em uma condição sub-humana à sombra de Israel, um projeto que devasta não apenas a comunidade palestina como corrói também a sociedade israelense e que agora pode servir como estopim para arrasar o Oriente Médio.
Como disse o historiador Shlomo Ben-Ami, ex-ministro do Exterior de Israel, as atrocidades cometidas pelo Hamas em 7 de outubro foram também um crime “contra o que resta do campo da paz em Israel” e uma “infâmia que permanecerá por muitos anos como um muro entre israelenses e palestinos.” Ainda assim, destacou ele, “se em algum momento existirem líderes com visão, o que aconteceu em Gaza e à sua volta não deveria ser um obstáculo a um acordo futuro.” Netanyahu, está claro, não é este tipo de líder.