A crise democrática em Israel e a anexação da Cisjordânia
O projeto que reduz a força do Judiciário israelense pode facilitar a campanha para inviabilizar o Estado palestino
O resumo do texto, em três pontos:
O parlamento israelense aprovou uma lei que limita a capacidade da Suprema Corte de revisar atos do governo;
A nova legislação deve facilitar a atuação de elementos radicais do governo que desejam impedir o surgimento de uma Palestina independente;
O avanço contra os direitos sociais e políticos dos palestinos pode salientar a acusação de que o governo israelense implantou um sistema de apartheid
O Parlamento de Israel aprovou, em 24 de julho, uma legislação que limita os poderes da Suprema Corte do país. A lei foi o primeiro passo na reforma judicial proposta no início do mandato da coalizão direitista liderada por Benjamin Netanyahu.
A votação se deu após seis meses de intensos protestos contra a reforma, que se repetiram imediatamente depois do resultado. O debate galvanizou a disputa identitária na sociedade israelense, que, a grosso modo, opõe um bloco nacionalista-religioso, base do governo, e outro desejoso de um país secular e plural.
A chamada “lei da razoabilidade” reduz as possibilidades de a Suprema Corte revisar atos do governo. Faz isso ao impedir que o tribunal continue a utilizar o subjetivo princípio de que certas ações são “extremamente irrazoáveis” ou “despropositadas” para barrá-las, como ocorre atualmente.
Netanyahu e seus ministros utilizam a clivagem na sociedade israelense para angariar apoio à reforma. Argumentam que a nova lei corrige três décadas do que seriam abusos do Judiciário, desde a ‘revolução’ judicial dos anos 1990 que ampliou o escopo de atuação da Suprema Corte.
A proeminência do tribunal na política de Israel é, de fato, um tema importante para a melhoria do sistema político do país. A rapidez da tramitação do projeto e a recusa governista em encontrar qualquer tipo de compromisso com a oposição demonstram, no entanto, que Netanyahu e seus aliados estão dando um passo para minar a separação de poderes e abrir as portas para se encastelar no poder.
Estamos vendo em Israel o esboço de um cenário de “legalismo autoritário”. Em uma era marcada por processos graduais de desmonte das democracias-liberais (leia Como as Democracias Morrem), o país pode ser outro a enveredar por uma degradação institucional dirigida pelo governo eleito com o intuito de ampliar seus próprios poderes.
O básico do conflito entre Israel e palestinos
O debate em Israel sobre a reforma judicial toca pouco a situação na palestina, mas uma questão está diretamente ligada à outra. Isso porque a Suprema Corte poderia ser um eventual obstáculo para as ações do atual governo que, no limite, podem inviabilizar, de uma vez por todas, o surgimento de um Estado palestino.
A coalizão de Netanyahu tem entre seus integrantes algumas figuras de extrema-direita que estão pavimentando o caminho para alcançar tal objetivo e tornar a Cisjordânia uma parte indissociável do território israelense. Para essas figuras, este é o principal motivo para apoiar a reforma.
Para compreender essa dinâmica, é conveniente revisitar algumas questões básicas sobre o conflito entre israelenses e palestinos:
Os territórios palestinos – a Faixa de Gaza e a Cisjordânia – estão sob controle de Israel desde 1967. Ambos foram ocupados na guerra daquele ano e, conforme as decisões tomadas no âmbito do processo de paz iniciado na década de 1990 (os “Acordos de Oslo”), deveriam compor o território de um país chamado Palestina.
Uma série de motivos fez os acordos não se consolidarem e, até o fim da década de 2000, houve tentativas de reiniciar o diálogo, mas, atualmente, não há no horizonte possibilidades concretas de isso acontecer.
O fato de a situação estar em suspenso há anos não tornou os acordos obsoletos. O que foi definido em Oslo continua a ser, no âmbito das Nações Unidas, a estrutura por meio da qual o impasse deve ser resolvido.
Estão pendentes muitas questões delicadas, como o status final de Jerusalém e a situação dos refugiados palestinos, mas hoje a mais candente delas envolve os assentamentos israelenses na Cisjordânia, que vêm sendo construídos desde 1967.
Esses assentamentos e a infraestrutura criada para dar suporte a eles (o que inclui estradas separadas para israelenses e palestinos) entrecortam a Cisjordânia, impedindo a contiguidade entre as zonas palestinas, o que degrada o bem-estar da população local e mina seu projeto político de autonomia e estabelecimento de um Estado.
Há mais de 450 mil assentados israelenses na Cisjordânia. Ao longo do tempo, este contingente populacional ganhou poder e, graças ao sistema parlamentar vigente em Israel, tem um peso político grande, desproporcional a seu tamanho. Suas principais lideranças são fortemente contrárias a um Estado palestino. Com o mesmo objetivo dessas lideranças, setores radicais entre os assentados têm atacado sistematicamente comunidades palestinas nos últimos meses.
Os assentamentos são ilegais conforme as leis internacionais. Por quê? Porque desde o fim da Segunda Guerra Mundial a comunidade internacional entendeu que o uso da força para a obtenção de território deve ser proibido. Assim, todos governos israelenses desde 1967 violam a lei internacional sistematicamente ao transferir ou permitir a transferência de parte da população para este território ocupado.
Essa situação não gera sanções a Israel, em larga medida, por conta do apoio diplomático que o país recebe dos EUA. Durante as negociações nos anos 1990, surgiram propostas para resolver o problema (como recompensar os palestinos com outros territórios, os land swaps), mas elas ficaram pendentes com a paralisação do processo de paz.
A anexação da Cisjordânia é um projeto político
Diante deste cenário, os elementos mais extremistas da coalizão governista de Netanyahu buscam atualmente encerrar o projeto nacionalista palestino e impedir que um país chamado Palestina exista.
Uma tática central para avançar tal estratégia é a paulatina substituição da autoridade militar israelense na Cisjordânia por uma administração civil. Esta não é uma dinâmica nova, mas que vem se aprofundando na atual gestão.
Um ponto de virada neste processo se deu em fevereiro de 2023. Netanyahu entregou a Bezalel Smotrich, um de seus aliados extremistas, grandes poderes sobre a Cisjordânia, permitindo que ele controle, por exemplo, a alocação de terras e a regularização de construções na região, entre muitas outras tarefas antes exclusivas dos militares.
Trata-se de uma mudança extremamente significativa, por três questões interligadas.
Em primeiro lugar, porque deixa evidente que a ocupação da Cisjordânia não é mais temporária, mas definitiva. O comando militar dava a entender que, uma vez finalizado o processo de paz, os poderes na região seriam transferidos aos palestinos. Agora esta impressão não tem mais base.
O segundo ponto é derivado do primeiro: a passagem de controle aos civis vem acompanhada de um projeto liderado por Smotrich, que envolve uma expansão ainda maior dos assentamentos israelenses e de mais bloqueios ao desenvolvimento das comunidades palestinas. Na prática, portanto, a ideia é não apenas consolidar o avanço ilegal realizado desde 1967 como ampliá-lo a ponto de inviabilizar, inclusive geograficamente, o Estado palestino.
O terceiro ponto condensa os dois primeiros. Desde 1967, consolidou-se uma anexação de facto da Cisjordânia, ou seja, na prática. Agora, aprofunda-se um processo de anexação de jure da região, ou seja, pela lei. Essa mudança de status galvaniza um sistema em que duas populações vivendo dentro do mesmo país têm direitos diferentes. Enquanto os israelenses (em especial os judeus) gozam de plenos direitos sociais e políticos, os direitos palestinos são sistematicamente violados e negados.
O impacto conjunto da reforma judicial e das mudanças que têm sido aplicadas à Cisjordânia é grave para Israel. Pouco a pouco, estão sendo desmontadas as estruturas que mantêm o país no campo das democracias liberais.
A reforma abala esta condição quando pensamos no que a literatura acadêmica chama de “Israel propriamente dito” (Israel proper): o país em sua extensão anterior a 1967, sem considerar os territórios palestinos ocupados.
Já as mudanças de status na Cisjordânia acentuam a acusação de que Israel se configura como um Estado de apartheid, semelhante à África do Sul pré-1994, em que há uma segregação oficial de populações. O fato de Bezalel Smotrich ser um racista anti-árabe que defende abertamente a subjugação da população palestina e sua condição como elemento central do governo adicionam credibilidade a tal acusação.
A situação na Palestina é uma das injustiças mais pungentes dos tempos atuais. As possibilidades de o cenário ser remediado em curto ou médio prazos são remotíssimas, porém. Isso porque, além da política israelense, debatida aqui, há uma série de mudanças que precisariam ocorrer na política interna palestina e na geopolítica regional e mundial para que a quadro mudasse. Esses temas estarão em futuros textos de Tarkiz.