O que a expansão dos BRICS diz sobre a relação entre a China e o Oriente Médio
Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Irã estão entre os seis países convidados para integrar o bloco
O resumo do texto, em três pontos:
A ampliação dos BRICS era um desejo de Pequim, que deixa clara sua intenção de ganhar ainda mais influência no Oriente Médio;
As diretrizes do projeto global chinês encontram ouvintes receptivos nos regimes da região;
Para os aliados dos EUA, a crescente presença chinesa traz oportunidades e desafios políticos.
A 15ª reunião dos chefes de Estado dos BRICS, realizada em Johannesburgo na semana passada, foi marcada pelo anúncio de que o bloco vai se expandir. Seis países foram convidados a entrar no grupo, um desfecho esperado tendo em vista a demanda de longa data da China por isso e a anuência de Índia e Brasil, que resistiam até pouco tempo.
O alargamento dos BRICS expõe o projeto global de Pequim, que rapidamente vem se transformando. Deixa de ser um dedicado a resistir à ordem internacional liderada pelos Estados Unidos para se tornar um cuja intenção é moldar esta mesma ordem.
Tal empreitada tem na Belt and Road Initiative (BRI), também conhecida como Nova Rota da Seda, seu carro-chefe. É um conjunto enorme de projetos de infraestrutura que busca conectar ainda mais firmemente a economia global à chinesa.
Mais recentemente, duas outras iniciativas passaram a fazer parte da atuação internacional da China: a Global Security Initiative (GSI) e a Global Development Initiative (GDI). Suas diretrizes são vagas, o que permite a Pequim moldá-las conforme os acontecimentos, mas lideranças chinesas têm feito repetidas referências a elas, o que demonstra sua importância.
Como indicam seus nomes, elas têm foco em segurança e desenvolvimento, aspectos considerados como intrinsecamente ligados entre si pelo regime em Pequim. A GSI e a GDI servem como complementos políticos à BRI e ajudam o Partido Comunista a vender ao mundo a alternativa que propõe à ordem internacional: enquanto Washington só cria alianças excludentes e falha em elevar o nível de desenvolvimento no resto do mundo, Pequim retrata seu programa como inclusivo e capaz de oferecer soluções para múltiplos problemas da atualidade.
No caso específico do Oriente Médio, o principal ativo que a China oferece é sua pujança econômica e a possibilidade de cooperar para que os países da região atualizem seus modelos de desenvolvimento.
A reunião dos BRICS revelou que, no projeto global chinês, o Oriente Médio não é um lugar qualquer. O convite a Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Irã entre os seis escolhidos deixa clara a centralidade da região no planejamento da China.
Evidentemente, o chamado também denota a importância atribuída ao governo chinês pelos regimes do Oriente Médio. Podemos entender a dinâmica em jogo e seus desafios a partir de uma análise a respeito dos interesses políticos e econômicos que unem a China aos quatro países da região que devem integrar os BRICS.
A China e o acordo Irã e Arábia Saudita
O pano de fundo dos convites feitos à Arábia Saudita e ao Irã é o acordo de convivência travado pelos dois países em março de 2023, sob os auspícios da China. As resoluções colocadas ali cessaram, ao menos momentaneamente, as hostilidades abertas entre Riad e Teerã, que engolfaram diversos países do Oriente Médio em intensa violência na última década.
O relacionamento entre a China e esses dois países tem um aspecto econômico central: o petróleo. Apesar de liderar a expansão da energia renovável no mundo, o governo chinês ainda depende muito de combustíveis fósseis.
Arábia Saudita e Irã, por sua vez, estão entre os maiores produtores e têm na China uma compradora essencial. Números consolidados de 2021 mostram que Pequim foi o principal destino das exportações totais de ambos países – ficou com 19% das exportações sauditas e 42,4% das iranianas. Esses números permitem que a China exerça influência sobre Riad e Teerã.
Fator facilitador nesta empreitada é a paulatina retirada política dos Estados Unidos do Oriente Médio. Este é um tema que requer uma discussão separada, mas aqui podemos dizer que tal fenômeno perpassa as gestões Obama, Trump e Biden e é caracterizado por uma forte indecisão, demonstrada pela manutenção da enorme presença militar norte-americana no Oriente Médio. A incerteza gerada por conta disso é um elemento importante no cálculo das lideranças regionais.
Arábia Saudita: o Irã é o foco
Para o regime saudita, a atuação chinesa em seu entorno é conveniente tendo em vista a diminuição do interesse dos EUA na região. Nas últimas duas décadas, as lideranças sauditas têm procurado alternativas para lidar com a crescente assertividade do Irã em um cenário no qual Washington deixou de ser um parceiro confiável. Assim, as atuações da China e, em menor medida, da Rússia são bem-vindas na medida em que atraem forças globais na região e impedem a hegemonia iraniana.
A redução das tensões também ajuda muito a criar um ambiente mais propício para a diversificação econômica pretendida pela Arábia Saudita. Ela é entendida em Riad como fundamental para manter a longo prazo a proeminência do regime dentro de suas fronteiras.
Fundamental aqui é o fato de que o capital da China é partícipe dessa diversificação. Em junho, investimentos de mais de US$ 10 bilhões foram anunciados pelo governo e por empresas chinesas na economia saudita.
Outro aspecto fundamental é o fato de que a aproximação com a China aumenta o poder de barganha de Riad em relação a Washington. Um exemplo: a Casa Branca vem tentando oficializar a relação entre Arábia Saudita e Israel e uma das exigências do regime saudita é o apoio a um programa nuclear civil.
A gestão Biden resiste neste ponto, mas agora a China acena como uma possível parceira da Arábia Saudita neste campo, o que permitiria aos árabes aumentar suas exigências em outras esferas da negociação a respeito de Israel.
Regime iraniano deseja uma ordem anti-EUA
No que diz respeito ao Irã, a influência da China é ainda mais central. O regime iraniano passa por uma de suas piores fases, deslegitimado internamente e pressionado externamente.
No plano doméstico, o desgaste após mais de quatro décadas de políticas draconianas está evidente. Este é outro tópico que requer um exame em separado, mas podemos resumir a situação destacando que, nos últimos 15 anos, o regime passou a conviver com questionamentos sistemáticos a respeito de sua legitimidade.
Os protestos do Movimento Verde, realizados em decorrência da eleição presidencial de 2009, e a onda de manifestações de cunho econômico que começa em 2017 e se estende até 2020 são dois marcos importantes. O ponto mais agudo foi, porém, a instabilidade após o assassinato de Mahsa Amini, em outubro de 2022. O episódio expôs a revolta de boa parte da população com o regime.
No âmbito externo, a campanha dos Estados Unidos conseguiu transformar o Irã, quase que completamente, em um pária internacional. As sanções econômicas, principal arma norte-americana neste projeto, aprofundaram o domínio do regime sobre a economia iraniana, mas esta se mostra cada vez mais incapaz de produzir os empregos e oportunidades necessários para a sociedade. A desdolarização defendida pelos BRICS é, por conta disso, vista como pauta prioritária por Teerã.
O apoio político da China, deste modo, é uma tábua de salvação que se apresenta em um momento decisivo. A entrada nos BRICS pode ser, para o regime iraniano, o começo do desenho de uma ordem global alternativa que, se não é abertamente anti-ocidental, é essencialmente contrária à hegemonia de Washington.
Este cenário pode trazer ganhos econômicos e políticos, domésticos e externos, para o regime, ajudando a “normalizar” sua existência na esfera internacional.
Egito e Emirados Árabes Unidos: em busca de equilíbrio
Uma análise das relações dos regimes de Egito e Emirados Árabes Unidos com a China permite uma visão geral dos desafios que as lideranças do Oriente Médio enfrentam ao tratar com a China.
O mais importante ponto em comum entre Egito e EAU é o fato de ambos serem parte integrante da esfera de influência dos Estados Unidos. A inserção de cada um deles neste círculo é diferente, porém.
Enquanto o Egito é um Estado solidificado na história com uma população de mais de 100 milhões de pessoas, os EAU têm uma população nativa pequena (cerca de 1 milhão de pessoas), conseguiram sua independência em 1971 e, desde então, convivem com o temor de serem absorvidos por seus vizinhos maiores, a Arábia Saudita e Irã.
As relações com os EUA são, portanto, diferentes. Desde 1979, o Egito se aproveitou de sua importância estratégica, sublinhada pelo acordo de paz com Israel, para coletar mais de US$ 80 bilhões em ajuda militar e econômica de Washington. A maior parte desse valor foi utilizada para manter a proeminência política e econômica do Exército sobre a sociedade e garantir aos generais um estilo de vida suntuoso.
Os Emirados, por outro lado, contam com os EUA para uma tarefa muito mais básica: sobreviver em um cenário regional hostil. O guarda-chuva militar norte-americano, assim, é essencial para os governantes em Abu Dhabi.
A retirada política dos EUA do Oriente Médio, mencionada anteriormente, vem sendo, deste modo, experimentada por Egito e EAU de formas diferentes, mas com um resultado comum.
No Egito, o regime de Abdel Fatah al-Sissi enfrenta um afastamento político (no período Obama) e econômico (no período Trump) dos EUA que fez das relações com a China uma plataforma essencial para garantir sua sobrevivência desde 2013. O país tem um papel central na BRI da China, por conta do Canal de Suez, onde o capital chinês vem erguendo uma impressionante zona industrial. No momento atual, o Egito vive uma profunda crise econômica e vê nos BRICS uma porta de saída relevante.
Para os EAU, a redução do ímpeto norte-americano na última década, diante de um Irã assertivo, fez o país buscar uma política externa independente. Ao lado da Arábia Saudita (e do Irã), o regime emirati foi determinante na violência que engolfou o Oriente Médio desde 2013, vem ajudando a reduzir o isolamento de Vladimir Putin diante da invasão da Ucrânia e se aproxima, até mesmo militarmente, da China. Serviços de inteligência dos EUA acreditam, inclusive, que chineses e emiratis estariam construindo em segredo uma base militar nas cercanias de Abu Dhabi.
A interação entre as ações e inações de Estados Unidos e de seus parceiros no Oriente Médio é um estremecimento dos relacionamentos, na medida em que nem Egito nem EAU contam com Washington para suas necessidades urgentes: investimentos, no primeiro caso, e proteção, no segundo. Nenhum dos regimes tem uma política anti-EUA, mas o cenário abre as portas para outras parcerias e a China está disposta a preencher o vácuo. O desafio para as lideranças do Oriente Médio é encontrar um equilíbrio entre Washington e Pequim.