O Oriente Médio e a geopolítica mundial
A rivalidade entre Estados Unidos e Irã é um ponto fundamental para entender a região, mas é interessante observá-la a partir de um prisma mais amplo
Estudiosos e analistas da geopolítica mundial divergem a respeito de qual é a polaridade do mundo em que vivemos. Para alguns, estamos em um cenário bipolar, em que EUA e China são as únicas potências dispostas a usar suas capacidades militares e econômicas para organizar a esfera global.
Outros enxergam o nosso mundo como multipolar, citando a Rússia, mas também a União Europeia, a Índia e alguns países do Sul Global como capazes de moldar eventos políticos internacionais. Um terceiro grupo avalia que seguimos em um sistema unipolar, no qual os EUA são a única potência de fato.
A adesão a um desses (ou outros) diagnósticos varia conforme o lugar, o momento e os critérios do analista. Fato é que não temos uma clara divisão de poder como a que vigorou entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o fim da Guerra Fria.
Os dois blocos antagônicos e, a grosso modo, bem delineados que marcaram aquele período deixaram de existir. Na sequência, nos anos 1990, tivemos claramente um momento unipolar, com o absoluto domínio norte-americano, mas desde então há uma disputa em curso.
Washington é o principal polo geopolítico. Suas forças armadas de alcance global são seu principal bem, mas a preponderância do dólar na economia mundial, o grande bloco de aliados e o domínio sobre as instituições multilaterais compõem um conjunto de difícil equiparação.
Moscou e Pequim são os principais pontos de resistência à ordem norte-americana. Cada governo a seu modo e, dentro de suas possibilidades, buscou nas últimas décadas rechaçar pelo menos alguns aspectos da ordem internacional sustentada pelos EUA. Ambos têm atuação intensa em suas cercanias, mas, cada vez mais, buscam ampliar o escopo geográfico de sua atuação, em geral como forma de contrapor Washington.
E como o Oriente Médio entra neste cenário?
Quando observamos o Oriente Médio sob este prisma, temos três elementos de análise fundamentais para discutir sobre a região.
O primeiro é o fato de que a região é receptora, e não geradora, dos estratagemas geopolíticos das grandes potências. Não há na região uma potência de amplo alcance desde o desmonte do Império Otomano no fim da Primeira Guerra Mundial. Como destacam alguns estudiosos, a manutenção deste cenário é um dos poucos consensos entre as grandes potências no último século.
O Oriente Médio é, muitas vezes, “palco”, das disputas alheias, situação derivada do grande peso da geografia e da geologia sobre os povos da região, como destacava o professor e jornalista libanês Samir Kassir.
Isso não significa, de modo algum, negar aos governos e regimes do Oriente Médio sua própria agência - a capacidade de agir por conta própria. Assim como ocorria na Guerra Fria (e antes dela), as lideranças regionais atuam para manobrar as grandes potências conforme suas necessidades, ora respondendo ações destas, ora atraindo-as para dentro das dinâmicas regionais para tirarem proveito das rivalidades.
O segundo aspecto é derivado do primeiro. A constante permanência de conflitos na região, associada à perseguição anticomunista ao longo da Guerra Fria, desequilibrou de forma intensa a disputa Estado-sociedade em favor do primeiro. As guerras regionais e a Guerra Fria facilitaram o fortalecimento dos regimes autoritários na região ao mesmo tempo que silenciaram as sociedades civis.
A agência dos povos do Oriente Médio, assim, permanece em larga medida negada pelos regimes autoritários locais, fazendo com que as sociedades tenham pouca capacidade de influenciar a relação entre os governos locais e as grandes potências.
O terceiro aspecto geopolítico fundamental do Oriente Médio é o fato de que reside ali o principal ponto de resistência regional à ordem dominada pelos EUA. Trata-se do regime iraniano, inaugurado ainda durante a Guerra Fria (1979) e que, desde então, se constitui (em maior ou menor grau, a depender de uma série de fatores), no principal antagonista de Washington.
Ainda que Teerã não tenha a mesma capacidade da Rússia e da China, sua atuação geopolítica, em larga medida, é antagônica a desses dois países: se dá na contramão do que propõe os EUA.
Entender a rivalidade entre EUA e Irã é, portanto, fundamental para compreendermos a organização securitária da região. Isso porque a relação entre o Irã e seus dois principais adversários regionais, Israel e Arábia Saudita, é diretamente influenciada pela presença de Washington.
Este dilema não explica todas as dinâmicas securitárias do Oriente Médio, mas é determinante pois, em larga medida, subsumiu até mesmo a questão israelo-palestina, que balizou a segurança do Oriente Médio por décadas após 1948.