F.Or.M. (8/3/24) - A crise de fome engendrada por Israel começou a matar crianças
Este é o resultado esperado, e antecipado por muitos, da campanha liderada por Netanyahu e apoiada pela maior parte da população israelense e por Washington
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
Alerto que essa edição contém relatos e imagens pesadas, envolvendo o sofrimento e a morte de crianças na Faixa de Gaza.
Optei por incluí-las uma vez que este boletim acabou por se tornar, em alguma medida, um veículo para documentar os registros midiáticos da guerra na Faixa de Gaza.
Se você tiver tempo, por favor responda a pesquisa abaixo, com perguntas rápidas a respeito deste boletim. Suas respostas vão ajudar a melhorar o trabalho.
Crianças emaciadas e mortes por inanição
Os inúmeros alertas feitos nos últimos meses se concretizaram nesta semana. Imagens e relatos tétricos se acumulam, agora não apenas dando conta do sofrimento provocado pela escassez de alimentos na Faixa de Gaza, mas trazendo também os seus resultados: a morte.
No domingo 3, a Unicef informou que ao menos dez crianças morreram por conta de desnutrição e desidratação no hospital Kamal Adwan, em Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza, onde a situação é extrema. Na quinta-feira 7, citando o Ministério da Saúde de Gaza, o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA) falou em 20 mortes.
Confirmar a informação é, nas condições atuais, impossível. Mas o que sabe indica que há no norte de Gaza um cenário distópico. Ali, as pessoas estão se alimentando de grama, ração animal e, segundo relato feito nesta semana pela escritora palestino-americana Susan Abulhawa, de cavalos e burros e também de gatos e cachorros, que por sua vez se alimentam de restos humanos.
Segundo o depoimento, para a AFP, de um voluntário que atuou na distribuição de suprimentos em Jabalia, os adultos conseguem ficar sem comer por várias horas, mas para as crianças a situação é muito pior. “Elas morrem e desmaiam nas ruas devido à fome."
Na reportagem abaixo, levada ao ar pelo britânico Channel 4 na terça-feira 5, Husam Abu Safiya, diretor do Kamal Adwan, afirmou que o hospital recebe entre 300 e 400 crianças todos os dias e que 75% delas estão sofrendo de desnutrição e desidratação severa. São números compatíveis com o relatório divulgado recentemente pela Unicef a respeito da crise alimentar na Faixa de Gaza.
O vídeo mostra, também, o estado crítico de crianças que conseguiram deixar a região norte para chegar a Rafah, no sul da Faixa de Gaza. A CNN e a Reuters também exibiram essas imagens.
Uma das crianças que aparece no vídeo é Yazan al-Kafarneh, de 12 anos. O garoto tinha paralisia cerebral e fazia uma dieta especial, que se tornou impraticável diante da campanha israelense, e morreu nesta semana.
No vídeo abaixo, publicado na segunda-feira 4, a Al-Jazeera mostrou uma cena da limpeza do corpo de Yazan após sua morte, o que permite ver o estado cadavérico em que o garoto se encontrava. São imagens chocantes.
Em Rafah, quase 1,5 milhão de palestinos – incluindo 600 mil crianças – se aglomeram em situação também precária. Ali, ao menos, ocasionalmente há possibilidade de conseguir alimentos, mas a situação está degringolando.
Na reportagem abaixo, publicada pela Reuters na quarta-feira 6, voluntários de uma cozinha que distribui sopa aos necessitados relatam que antes conseguiam fazer dez variedades do prato, mas, diante da escassez, só podem fazer duas.
Na mesma direção vai uma reportagem da Al-Jazeera publicada também na quarta-feira 6. A repórter ouviu duas mães que explicam como tentam distrair seus filhos que estão passando fome em meio aos gritos e ao choro de outras crianças na mesma situação.
Campanha israelense é deliberada: “um caos perfeitamente planejado”
Quem acompanha este boletim já sabe que, durante a invasão da Faixa de Gaza, forças israelenses deliberadamente destruíram plantações e estufas que encontraram pelo caminho. Já leu, também, sobre as imensas filas de caminhões com doações parados na fronteira com o Egito.
São pontos que indicam, para além de uma dúvida razoável, que a crise de fome na Faixa de Gaza é uma obra do gabinete de Benjamin Netanyahu. Mas reportagens publicadas nesta semana trazem evidências ainda mais robustas.
Na terça-feira 5, o painel de especialistas da ONU, que tem emitido uma série de comunicados a respeito do conflito, colocou em palavras a percepção crescente de quem acompanha a guerra: “Israel tem intencionalmente matado de fome o povo palestino em Gaza desde 8 de outubro”, afirmaram.
Uma reportagem publicada no mesmo dia pela Folha de S.Paulo detalha como a empreitada israelense para levar a Faixa de Gaza à inanição é escamoteada como uma ação de segurança. O bloqueio é feito por meio de uma burocracia que barra item por item das doações.
A reportagem repercute a denúncia de um deputado italiano sobre como enormes quantidades de doações estão paradas na fronteira com o Egito. E explica:
Um funcionário egípcio da ONU, falando em condição de anonimato, disse à Folha que muitos pacotes estão parados desde o início da guerra. Segundo ele, parte dos itens rejeitados por Israel tem peças metálicas que poderiam ser usadas para gerar energia, enquanto um kit de primeiros socorros foi barrado porque contém uma tesoura e outros objetos cortantes.
O mesmo diagnóstico encontra-se, aprofundado, em uma reportagem publicada no sábado 2 pela CNN, que ouviu 12 pessoas ligadas à distribuição de ajuda humanitária, algumas delas em altos cargos em suas organizações. A maioria falou de forma anônima, por temer que mais dificuldades sejam criadas para fazer os suprimentos chegarem à Faixa de Gaza.
O temor é derivado da ação do órgão israelense que gere os territórios palestinos ocupados, conhecido pelo acrônimo em inglês Cogat. Este departamento é comandado pelo general Ghassan Alian. No início da guerra, Alian foi um dos oficiais que adotou uma retórica genocida contra os palestinos, ao afirmar que “animais humanos precisam ser tratados como tal” e que “não haverá eletricidade ou água [em Gaza], só haverá destruição.”
Segundo um dos entrevistados da CNN, as regras para a entrada de suprimentos são “deliberadamente opacas, deliberadamente ambíguas.” Outro destacou que, por vezes, o Cogat libera os produtos, mas outros órgãos aparecem para mandar os caminhões de volta. “É um caos perfeitamente projetado”, afirmou.
Ainda de acordo com a CNN, as organizações humanitárias elaboraram uma lista de “itens mais frequentemente rejeitados”. Entre eles estão materiais médicos básicos, como máquinas de anestesia e anestésicos, muletas, geradores, ventiladores, máquinas de raios X e cilindros de oxigênio.
Essa informação ajuda a explicar por qual motivo tantos moradores de Gaza e médicos que atenderam ou atendem na região afirmam terem sido submetidos ou terem realizado diversos procedimentos, inclusive amputações e cesarianas, sem anestesia.
Evidentemente, o governo israelense está, também, bloqueando a entrada de comida na Faixa de Gaza. O mais recente episódio ocorreu na quarta-feira 6. O Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP) informou que um comboio de 14 caminhões que levava 200 toneladas de alimentos foi impedido de entrar na Faixa de Gaza após três horas de espera.
Como alternativa, o WFP pediu ajuda para a força aérea da Jordânia e fez o lançamento aéreo de apenas 6 toneladas de alimentos. “Os lançamentos aéreos são o último recurso e não evitarão a fome. Precisamos de pontos de entrada no norte de Gaza que nos permitam entregar alimentos suficientes para meio milhão de pessoas em necessidade desesperada”, afirmou Carl Skau, vice-diretor-executivo do órgão.
Crianças continuam a ser mortas por bombas
É importante destacar que a crise de fome está piorando enquanto a outra parte da estratégia israelense - os bombardeios indiscriminados - continuam. Nesta semana, os boletins diários do OCHA informaram, ainda, que, além dos ataques aéreos, prosseguem os combates terrestres entre as forças de Israel e do Hamas.
No domingo 3, diversos veículos internacionais relataram o bombardeio de uma casa em Rafah que deixou cerca de 20 mortos, a maioria mulheres e crianças. Entre eles estava o casal de irmãos Naeim e Wissam, bebês de apenas cinco meses.
À Associated Press, a mãe dos bebês, Rania Abu Anza, contou que eles foram concebidos após uma década de tentativas via fertilização in vitro. O marido de Rania também foi morto no ataque.
O vídeo abaixo, da Al-Jazeera, mostra o depoimento da mãe enquanto se despede dos bebês. Mostra, também, que a região continuou a ser atacada após o bombardeio inicial, deixando mais mortos, inclusive crianças.
Na CIJ, África do Sul volta a pedir medidas urgentes
A situação precária na Faixa de Gaza fez o governo da África do Sul recorrer mais uma vez à Corte Internacional de Justiça, tribunal ao qual apresentou denúncia contra Israel pela prática de genocídio contra o povo palestino.
A petição sul-africana, entregue na quarta-feira 6, lista diversos fatos que mostram como a situação vem se deteriorando e acusa Israel de não cumprir as recomendações iniciais feitas pela CIJ, em 26 de janeiro, na decisão em que a corte avaliou que era plausível o cenário de genocídio na Faixa de Gaza.
No último parágrafo do documento, a África do Sul lembra a corte de um de seus momentos mais obscuros: o silêncio durante o genocídio bósnio, nos anos 1990.
No caso do Genocídio Bósnio, o Tribunal recusou-se a ordenar as medidas provisórias adicionais solicitadas em 27 de julho de 1993. No prazo de dois anos, aproximadamente 7.336 bósnios na chamada 'área segura' de Srebrenica foram massacrados, no que este Tribunal determinou retrospectivamente foi um genocídio. Aqui, a África do Sul apela respeitosamente a este Tribunal para que atue novamente agora – antes que seja demasiado tarde – para fazer o que está ao seu alcance para salvar os palestinos em Gaza da fome genocida.
Tudo indica que o “massacre de farinha” foi uma obra de Israel
Na semana passada, em um dos episódios mais atrozes da guerra na Faixa de Gaza, um massacre deixou 118 palestinos mortos na rotatória Trabulsi, localizada na rua Al-Rashid, na cidade de Gaza. Eram pessoas esfomeadas, que estavam no local para tentar coletar farinha de um dos raros comboios que chegara ao norte de Gaza.
Como destaquei neste texto publicado na sexta-feira 1º, os testemunhos iniciais davam conta de que a maioria das mortes foi provocada por tiros de soldados israelenses, que abriram fogo contra a multidão desesperada.
As informações surgidas nesta semana vão na mesma direção. À BBC britânica, Giorgios Petropoulos, chefe do departamento de Gaza do OCHA, afirmou que esteve no pronto-socorro do hospital Al-Shifa após o ocorrido e que encontrou um grande número de pessoas com ferimentos provocados por tiros, maioria entre as pessoas no local.
Na mesma reportagem, Mohamed Salha, diretor interino do hospital Al-Awda afirma que recebeu 176 feridos, sendo que 142 tinha ferimentos de balas. Ao New York Times, o mesmo Husam Abu Safiya, diretor do hospital Kamal Adwan citado acima, disse que recebeu 12 corpos de vítimas do massacre, além de 100 feridos a bala.
Novos testemunhos obtidos nos últimos dias vão na mesma direção. Sobreviventes ouvidos pela Al-Jazeera e pela +972 Magazine detalharam o cenário de caos após os soldados israelenses abrirem fogo e mortes ocorridas com tiros na cabeça, mais um indicativo de que os ataques tinham a intenção de matar.
Apoio dos EUA se mantém
Nesta semana, Benny Gantz, líder oposicionista que se juntou ao governo Netanyahu após a guerra e hoje integra seu gabinete de guerra, visitou os Estados Unidos e a Europa. Em Washington, contou o site Axios, Gantz ouviu inúmeras críticas a respeito da postura de Israel, em especial por conta do massacre na rotatória Trabulsi (acima).
De acordo com a reportagem, publicada na terça-feira 5, Gantz “ficou surpreso com a força das críticas sobre a crise humanitária, mas também com a distância entre Israel e os EUA quando se trata de uma possível operação em Rafah.”
Essas críticas não podem ser confundidas, porém, com qualquer afastamento entre os EUA e Israel. Joe Biden e seus auxiliares são indissociáveis da campanha israelense.
Na quinta-feira 7, o jornal The Washington Post mostrou que, desde o 7/10, os Estados Unidos fizeram mais de 100 vendas de armas para Israel. A imensa maioria delas não gerou debate público porque foram montadas de uma forma que o valor total de cada uma não superasse o limite que obrigaria a Casa Branca a notificar o Congresso a respeito das negociações.
“É um número extraordinário de vendas ao longo de um período muito curto de tempo, o que sugere fortemente que a campanha israelense não seria sustentável sem este nível de apoio dos EUA”, disse ao WPost Jeremy Konyndyk, ex-integrante da administração Biden que dirige atualmente a Refugees International.
A maior parte da sociedade israelense apoia as atrocidades do governo
Parte da explicação para o comportamento do governo israelense é o fato de que maiorias substanciais da população judaica de Israel – que politicamente é mais relevante, uma vez que os partidos árabes são, em regra, excluídos dos governos – apoiam sua políticas para a Faixa de Gaza de forma acrítica. Dois números são simbólicos quanto a isso.
O primeiro está em uma pesquisa do Instituto da Democracia de Israel, que mostrou que 68% dos judeus israelenses são contra a ideia de que seu governo deveria permitir a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza, mesmo que isso seja feito através de instituições que não tenham ligação com o Hamas ou a UNRWA.
Entre os judeus de direita, que hoje são maioria em Israel, o índice chega a 80%. Entre os de centro, são 51,5% contrários e, na esquerda, 39% contrários. Entre a população palestina de Israel (remanescentes da minoria que não foi expulsa em 1948), 85% defendem a ideia de envio de ajuda humanitária.
O segundo números de relevo já foi mencionado antes em Tarkiz. É de uma outra pesquisa, publicada em janeiro pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Tel Aviv. O levantamento mostrou que 94,2% dos judeus israelenses avaliavam até aquele momento que o exército de Israel havia usado pouca força na Faixa de Gaza (43,4%) ou força apropriada (50,8%).
Artigos publicados nos últimos dias por três intelectuais críticos do governo e da sociedade israelenses ajudam a refletir sobre essa situação.
No Haaretz, Gideon Levy afirma que, após o 7/10, não há mais “a mínima compaixão” pelos palestinos. No Guardian, Dahlia Scheindlin afirma que os israelenses estão presos no 7/10, uma data que “ampliou seu senso de ameaça existencial” e reforçou a ideia de que o mundo está contra os judeus.
Também no Haaretz, Amira Hass descreve o que chama de “crueldade institucional” de Israel em relação aos palestinos, que criou uma “linha de montagem” de crueldades “descentralizada através dos anos e do espaço, o que permite “que centenas de milhares de judeus israelenses que cumprem a lei e seguem a ordem sejam cruéis sem um pingo de introspecção ou sem a compreensão de quanto eles se beneficiam com isso”.
São reflexões que ajudam a pensar sobre os repetidos crimes de guerra cometidos por soldados israelenses, filmados e publicados por eles próprios em redes sociais. A reportagem abaixo, publicada pela Al-Jazeera no domingo 3, traz um apanhado dessas imagens.
Violência sexual nos ataques de 7 de outubro
Pramila Patten, representante especial do secretário-geral da ONU para casos de violência sexual em conflitos, divulgou nesta semana seu relatório preliminar a respeito da ação do Hamas em 7 de outubro.
Sua conclusão é baseada apenas em informações do governo de Israel, mas conclui com clareza que houve, sim, violência sexual, incluindo estupros, perpetrados pelo Hamas contra cidadãs israelenses.
Em um sinal do nível rasteiro do debate acerca da questão Israel-Palestina, este tema foi politizado. O leitor de Tarkiz sabia pelo menos desde novembro que era evidente que integrantes do Hamas praticaram de violência sexual.
Na quinta-feira 7, a France24 exibiu a esclarecedora entrevista abaixo com Pramila Patten.