Novo regime da Tunísia abraça estratégias da extrema-direita ocidental e mira migrantes
Desde julho, pessoas com origem na África subsaariana estão sendo presas e abandonadas na região desértica do Sul do país
O resumo do texto, em três pontos:
Assim como líderes europeus, o presidente Kais Saied ataca refugiados;
Sua retórica provocou uma onda de violência estatal e civil contra estrangeiros;
Saied busca um bode expiatório para a crise econômica, mas cada vez mais os próprios tunisianos se lançam ao mar em busca de refúgio na Europa.
A mulher e a criança da foto acima estão mortas. Matyla Dosso, de 30 anos, e Marie, de 6, morreram em julho, após serem impedidas de entrar na Tunísia e abandonadas no deserto pelas forças de segurança do país. Seus corpos foram encontrados com os rostos na areia, lado a lado, quase abraçados. Fome, sede e cansaço esgotaram a vida da mãe, marfinense, e da filha, que nasceu em um campo de refugiados.
O leitor brasileiro, é provável, não teve contato essa notícia, que circulou pouco por aqui. A imagem tem peso semelhante à do garoto Aylan Kurdi, que aos 3 anos morreu em uma praia da Turquia, e cujo suplício se tornou símbolo do drama dos refugiados em 2015. A repercussão das mortes de Matyla e Marie foi bem menor, no entanto.
Essa diferença, talvez, tenha relação com o fato de que o mundo de hoje é um lugar muito mais angustiante que o de 2015. O mundo de 2023 é crescentemente permissivo com o autoritarismo, seja em sistemas previamente autoritários ou naqueles classificados como democracias liberais.
Nesse segundo grupo de países, graças a uma severa crise dos sistemas sociopolíticos vigentes, o retrocesso democrático é fortemente marcado pela atuação de políticos e partidos de extrema-direita, que não apenas agem para minar as instituições democráticas como para normalizar discursos e práticas desumanas.
Isso é verdade nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil e, também, na Tunísia.
Como destaquei no último texto de Tarkiz sobre a Tunísia, o presidente Kais Saied é uma figura típica dos processos de retrocesso democrático que afetam o mundo, o que pode ser verificado pelas táticas políticas populistas usadas por ele, semelhantes às de outras lideranças que submetem seus países ao mesmo fenômeno.
Cabe mencionar, além disso, que Saied é, também, uma figura típica do extremismo contemporâneo, como deixam evidente suas falas e políticas para imigrantes e refugiados. No encontro entre a retórica e a prática de Saied, o destino de Matyla Dosso e Marie foi selado.
Populismo de extrema-direita
O tipo de populismo utilizado por Saied (assim como o de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro) requer a constante existência de um inimigo, ou de um grupo de inimigos. O alegado projeto desta oposição, sempre retratada como desleal, é impedir que o “povo”, representado pelo líder, alcance seus objetivos – no caso da Tunísia, é a busca por dignidade iniciada com a Primavera Árabe.
Saied é reverente ao processo de derrubada da ditadura de Zine El Abidine Ben Ali, em 2011, mas argumenta que os objetivos da revolução foram deturpados pela classe política e que ele é a figura capaz de corrigir os rumos da revolução.
Assim, desde que chegou ao poder, Saied elegeu diversos inimigos aos quais atribui a as dificuldades de a Tunísia se livrar da crise econômica. Entre esses grupos estão os antigos parlamentares, juízes, integrantes de partidos políticos, jornalistas ou qualquer tipo de ativista.
Um dos alvos primordiais de Saied é a comunidade de imigrantes da África subsaariana que crescentemente tem usado a Tunísia como plataforma para chegar à Europa. Aqui, mais uma vez, o presidente tunisiano bebe na mesma fonte da extrema-direita ocidental e aposta num arraigado preconceito contra negros que perpassa a majoritariamente árabe população da Tunísia.
Violência retórica e prática
Em fevereiro de 2023, Saied fez um discurso no qual classificou os imigrantes de “hordas” que levam “violência e crime” para a Tunísia e sua presença no país como “não natural”. Foi uma fala reminiscente da feita por Trump a respeito dos mexicanos no princípio de sua campanha eleitoral, em 2015.
Na sequência, Saied abraçou a teoria conspiratória da Grande Substituição, criada por supremacistas brancos e usada para justificar a islamofobia e o sentimento anti-imigração nos EUA e na Europa.
Nas redes sociais tunisianas, essa conspiração ganhou um verniz árabe, reproduzido por Saied. “O objetivo não declarado das sucessivas ondas de imigração ilegal é considerar a Tunísia um país puramente africano que não tem filiação com as nações árabes e islâmicas”, afirmou ele.
O resultado da fala de Saied foi uma onda de violência racial contra imigrantes da África subsaariana e contra a própria população negra da Tunísia (cerca de 10% do total). Demissões, expulsões e ataques de gangues contra negros foram registrados.
Em busca de proteção, parte dos despejados montaram acampamento em frente ao escritório da Organização Internacional para Migração (IOM), braço da ONU. Mais grave, as forças de segurança tunisianas iniciaram uma onda de prisões contra imigrantes e refugiados. Protestos da população contra a retórica de Saied e contra a arbitrariedade policial foram registrados, mas tiveram pouco impacto.
O contexto da violência comunitária é a séria crise econômica pela qual passa a Tunísia, sublinhada pela inflação dos alimentos, que exacerba os ânimos entre determinadores setores da sociedade.
Neste contexto, os episódios de violência vem se tornando mais frequentes e chegaram ao ápice em Sfax, cidade no litoral mediterrâneo da Tunísia. Ali, o mês de julho foi marcado por batalhas comunitárias entre a população local e imigrantes, após o assassinato de um homem tunisiano.
Os confrontos arrefeceram depois que forças de segurança tunisianas passaram a prender e enviar para a região desértica do país, na tríplice fronteira com Argélia e Líbia, centenas de imigrantes, refugiados e requerentes de asilo.
Segundo autoridades da Líbia, pelo menos 1,2 mil pessoas foram expulsas da Tunísia e deixadas para morrer no Saara desde julho. Algumas delas relatam terem sido presas enquanto trabalhavam [imagens fortes]. Várias viram seus celulares serem destruídos antes da expulsão.
Além das expulsões, o lado tunisiano da fronteira, fortemente militarizado, passou a não mais tolerar a chegada de migrantes. Assim, Matyla e Marie, que vinham da Líbia junto com Mbengue Nyimbilo Crepin, o pai da garota, foram impedidas de entrar no país.
No retorno à Líbia, a família se separou. Exausto, o pai pediu para que a mulher e a filha seguissem viagem. Ele teve a sorte de ser salvo por imigrantes sudaneses que percorriam o mesmo trajeto. Os corpos de Maty e Marie foram encontradas pela guarda de fronteira da Líbia.
Tunisianos também deixam o país
A criminalização de imigrantes e refugiados não deve ser uma estratégia que sirva para o regime de Kais Saied se proteger de críticas por muito tempo. O drama dos refugiados é algo que afeta fortemente a Tunísia, mas não fica circunscrito aos pescadores do Mediterrâneo que rotineiramente encontram corpos em suas redes, ou à recente violência comunitária.
Com a persistência da crise econômica, cada vez os próprios cidadãos tunisianos se lançam ao mar na tentativa de chegar à Europa. No naufrágio que deixou 5 mortos e 7 desaparecidos em Sfax em 14 de agosto, a maioria dos passageiros era de tunisianos.
Parece evidente que, sem apoio internacional, a Tunísia terá grandes dificuldades para lidar com sua própria crise econômica e também para criar um ambiente mais seguro para as populações da África subsaariana.
A Europa, destino desejado de muitos que chegam à Tunísia e dos que deixam o país, poderia ser uma facilitadora deste processo, mas as lideranças do continente têm pouco interesse em exercer este papel.
Como destacado em texto de julho de Tarkiz, a ascensão da extrema-direita influencia diretamente a política externa da União Europeia que, em larga medida, conecta a ajuda à Tunísia a uma política de linha-dura contra a imigração.
No momento, Kais Saied e a Tunísia só interessam à Europa na medida em que conseguem frear o fluxo de refugiados para o continente. Trata-se de uma visão curto prazista que, mais à frente, tende a piorar a situação para todos os envolvidos.