Tunísia: da Primavera Árabe ao retorno do autoritarismo
O presidente Kais Saied minou a transição democrática com táticas que se assemelham às utilizadas por líderes populistas em outras partes do mundo
O resumo do texto, em três pontos:
Por uma década, a Tunísia avançou na construção de um sistema pluralista;
A democracia foi incapaz de entregar dignidade econômica à população e se tornou vulnerável ao assédio populista;
Saied se mantém no poder apostando no conservadorismo social, no discurso anti-sistema e atribuindo os problemas do país a conspirações internacionais.
A história é conhecida e foi repetida milhares de vezes na última década: em dezembro de 2010, cansado das humilhações impostas rotineiramente pela polícia da de Sidi Bouzid, cidade na região central da Tunísia, Muhammad Bouazizi, um vendedor de rua, colocou fogo no próprio corpo em um ato de protesto.
Sua atitude chocou a opinião pública local, que passou a organizar manifestações contra o governo, gerando uma espiral de protestos que paralisou o país. A mobilização avançou de forma rápida e, um mês depois, conseguiu o que parecia impossível: remover do poder o ditador Zine El Abidine Ben Ali, que governava a Tunísia desde 1987.
Ben Ali encontrou refúgio na Arábia Saudita e lá morreu, em 2019. A Tunísia, por sua vez, passou a ser o “modelo” da Primavera Árabe, o “único caso de sucesso” de uma onda avassaladora de manifestações que abalou a ordem política no Oriente Médio, mas que foi respondida de modo brutal pela contrarrevolução dos regimes locais.
Após aqueles episódios, tratados por boa parte da população tunisiana como uma revolução, o país desenvolveu um sistema político pluralista e democrático, que fez da Tunísia um ponto fora da curva na região. Nos últimos dois anos, porém, o país vem experimentando um retrocesso democrático profundo.
Este quadro político poderia ser observado como parte da dificuldade de sistemas democráticos se estabelecerem no Oriente Médio como um todo, mas ele é mais compreensível se utilizarmos outra lente. O cenário na Tunísia é bastante semelhante ao de outros países pelo mundo cujas crises dos sistemas democráticos permitiram a ascensão populista e autoritária. No caso da Tunísia, o responsável por isso é o presidente Kais Saied, eleito em 2019.
Primavera Árabe, dignidade e democracia
Os protestos de 2010-2011 e a derrubada de Ben Ali levaram ventos de mudança para todo o Oriente Médio. No Ocidente e, como consequência, no Brasil, a Primavera Árabe foi retratada, em larga medida, como uma onda de manifestações em favor da democracia, mas o pano de fundo daqueles protestos era uma luta por dignidade – social, econômica e política – que via na demolição dos sistemas autoritários um caminho para alcançar tal objetivo.
A superação das ditaduras deveria ter como prioridade lidar com esta questão básica, mas não foi isso que ocorreu. O processo político que substituiu o regime de Ben Ali foi conturbado, como não podia deixar de ser diante da conjuntura, mas se provou disfuncional.
Desde o início, a transição na Tunísia se caracterizou por embates entre líderes islamistas e seculares e entre revolucionários e figuras do antigo regime. O processo de feitura da Constituição foi marcado por inúmeros protestos e por violência política – diante da instabilidade, células do Estado Islâmico se instalaram no país, agravando o quadro.
A tradição de tolerância presente na cultura política da Tunísia conseguiu evitar o caos: diálogos nacionais (premiados com o Nobel da Paz de 2015), governos de coalizão e acordos de compartilhamento de poder foram realizados entre partidos rivais, o que ajudou a estabilizar o sistema político.
Esses governos, porém, continuaram marcados por rivalidades, o que dificultou a realização de reformas. A política foi estabilizada, mas o novo sistema também não conseguiu atender a demanda da sociedade por dignidade.
Assim, por um lado o país podia celebrar a nova Constituição, a liberdade de opinião promovida pelo fim da ditadura e um sistema político que previa transições pacíficas de poder.
Por outro lado, sobravam problemas. As condições de vida se degradaram em meio a políticas de austeridade enquanto inúmeros casos de corrupção se acumulavam, agora expostos ao público, ao contrário do que ocorria na ditadura.
O sistema democrático, assim, sofreu uma dupla deslegitimação. Por um lado, foi incapaz de produzir a dignidade socioeconômica que balizou as manifestações de 2010-2011. Por outro, minou a confiança da população em meio a disputas partidárias infrutíferas, repetidas trocas de governos e desvios de dinheiro público.
Neste cenário, o novo sistema se viu vulnerável a ataques de projetos populistas. Assim surgiu a oportunidade para Kais Saied.
Um novo antigo regime
Saied foi eleito presidente da Tunísia em outubro de 2019, em um pleito definido por um sentimento de revolta popular com as condições econômicas do país e os casos de corrupção. Professor aposentado de Direito Constitucional, ele era uma figura obscura que ganhou proeminência apostando em uma plataforma conservadora do ponto de vista social, com apoio à pena de morte, críticas à comunidade LGBT e oposição ao estabelecimento de direitos de herança iguais para homens e mulheres.
Os principais ativos eleitorais de Saied, porém, eram os mesmos que caracterizam outras lideranças de populistas pelo mundo: o fato de ser um outsider do sistema político e a fama de ‘incorruptível’. Assim, Saied amealhou mais de 70% dos votos no segundo turno, em larga medida graças ao apoio dos jovens, que deram a ele mais de 90% dos votos, empolgados com a promessa de que uma “nova Tunísia” surgiria.
A ‘nova Tunísia’ se provou, porém, muito semelhante à Tunísia pré-revolucionária. Em 2021, os impasses políticos permaneciam no parlamento enquanto o quadro econômico seguia se deteriorando, agravado pela pandemia de covid-19. Apoiado pelos militares, Saied aproveitou a situação delicada e organizou um golpe em julho de 2021, que teve como alvo principal o parlamento, cercado por tanques de guerra.
Desde então, o novo regime vem atacando ou minando todas as instituições políticas e sociais que poderiam contrabalancear seu poder, processo consolidado em uma nova Constituição que entrou em vigor em agosto de 2022. O quadro abaixo traz um panorama do retrocesso democrático promovido por Saied.
Executivo: o primeiro-ministro e seu gabinete foram demitidos em julho de 2021 e suas funções foram transferidas para a Presidência, que, pela nova Constituição, tem poderes expandidos.
Legislativo: o parlamento foi congelado em julho de 2021 e, em setembro do mesmo ano, perdeu definitivamente seus poderes, também transferidos para a Presidência. A nova Constituição estabeleceu um legislativo bicameral que não tem caminhos legais para contestar o poder presidencial.
Judiciário: O Conselho Supremo Judicial, entidade independente criada em 2016, foi fechada em fevereiro de 2022 e substituída por outra controlada por Saied, que deu a ele o poder de demitir juízes em todo o país. Na nova Constituição, o Judiciário funciona como um braço administrativo do Executivo.
Governos locais: O controle sobre as governadorias (equivalente a Estados) foi transferido para o Ministério do Interior em novembro de 2021, restabelecendo a estrutura vigente sob Ben Ali. O pós-revolucionário Ministério dos Assuntos Locais foi dissolvido. Em março de 2023, os conselhos municipais (criados após 2011) também foram dissolvidos.
Constituição: A Constituição de 2014 foi parcialmente suspensa em setembro de 2021. Um “comitê de notáveis” escreveu a nova carta, que confirmou a proeminência do Executivo.
Instituições independentes: Com a eliminação da Constituição de 2014, perderam status constitucional quatro instituições que haviam sido criadas para ajudar a manter um sistema democrático. Elas versavam sobre combate à corrupção, direitos humanos, comunicação pública e direitos das futuras gerações. Outra instituição fundamental criada em 2014, a corte eleitoral, foi mantida na nova Constituição, mas hoje é controlada diretamente pela presidência.
Todo o avanço autoritário liderado por Saied é acompanhado por uma cruzada contra opositores, que vem se aprofundando em 2023. Centenas de pessoas são investigadas e dezenas já foram presas nos últimos meses por criticar o governo, sempre sob acusações arbitrárias.
O alvo primordial desta campanha é o Ennahda, partido originalmente inspirado pela Irmandade Muçulmana e que nos últimos anos deixou de se identificar como islamista. O principal líder do Ennahda, Rached Ghannouchi, que era o presidente do parlamento dissolvido em 2021, foi condenado a um ano de prisão em abril por chamar policiais de “tiranos”.
O ímpeto autoritário do Estado abarca, no entanto, qualquer tipo de ativismo político. Neste mês de agosto, por exemplo, 38 lideranças dos protestos que culminaram com fechamento de um aterro na cidade de Aguereb foram condenados à prisão em um julgamento com acusações frágeis.
A aposta na “conspiração estrangeira”
Dois anos depois da tomada de poder, Saied ainda preserva muito do apoio que conseguiu na eleição, apesar da precariedade do quadro econômico. A inflação, principalmente dos alimentos, e o desemprego continuam a afetar duramente a população, que em sua maioria subsiste na informalidade em meio a uma economia dominada por duas dezenas de famílias cuja proeminência não foi abalada nem pela Primavera Árabe.
Em larga medida, Saied tem conseguido desviar o foco de sua atuação por meio de outra tática compartilhada com líderes populistas do mundo atual: a atribuição dos problemas a uma conspiração que une atores internos e externos contra a qual ele próprio é o único capaz de atuar.
Essa tática se alimenta de uma ideia popular na Tunísia segundo a qual toda a instabilidade ocorrida desde 2011 é uma conspiração estrangeira contra o país. É este clima que permite a Saied atacar diferentes grupos de opositores e também os imigrantes e refugiados da África subsaariana que têm buscado a Tunísia com frequência, em parte para usar o país como plataforma para alcançar a Europa.
O que ainda não conhecemos é a capacidade do regime Saied de manter este status quo a longo prazo. O descrédito com a política continua a ser uma característica da Tunísia, o que foi revelado pelo comparecimento de apenas 11% dos eleitores no pleito que elegeu o novo parlamento, no fim de 2022. Ao mesmo tempo, o grau de insatisfação com a situação socioeconômica continua elevado.
Essas são duas das condições que possibilitaram a derrubada de Ben Ali em 2011 e que facilitaram a tomada de poder por Saied em 2021. A busca da população por dignidade está longe de ser contemplada e, como a Primavera Árabe evidenciou, o acúmulo de arbitrariedades e desalento monta um cenário potencialmente explosivo, que pode sair do controle com facilidade.