Por que o COI condena a Rússia e ignora as ações de Israel contra os palestinos?
Os Jogos de Paris-2024 ecoam a geopolítica ocidental ao criar um filtro político para os atletas russos e alegar neutralidade diante do conflito na Palestina
Três anos atrás, o Comitê Olímpico Russo levou para os Jogos de Tóquio-2020 uma delegação com 335 atletas, a décima maior daquela edição. Em Paris-2024, apenas 15 esportistas da Rússia devem competir. Neste mesmo intervalo, o tamanho da delegação de Israel pouco mudou: 90 atletas no Japão e 88 agora.
Os dois países estão em guerras condenadas internacionalmente, mas enquanto os israelenses puderam manter os protocolos convencionais de classificação e participação nos Jogos, os russos vivem uma situação excepcional.
Essa discrepância entre as realidades dos atletas de Israel e da Rússia levanta questões sobre o viés do Movimento Olímpico, particularmente do Comitê Olímpico Internacional (COI), e demonstra como a entidade parece ter sido capturada pela política internacional ou, mais especificamente, por um dos lados que disputam o controle sobre ela.
As punições à Rússia e aos russos
Em Tóquio, os atletas russos competiram sob a bandeira e as iniciais de seu comitê olímpico (ROC) porque a Rússia fora punida após um enorme escândalo de doping que envolveu setores do Estado no acobertamento de irregularidades.
A opção do COI naquele momento foi proteger um de seus princípios basilares, o de que esportistas não podem ser punidos por conta dos passaportes que carregam. Assim, os atletas capazes de demonstrar sua aderência às regras internacionais antidopagem puderam disputar medalhas no Japão.
Em 2022, as coisas mudaram. Em 24 de fevereiro daquele ano, Vladimir Putin ordenou uma invasão por terra, mar e ar à Ucrânia, uma ação militar que chocou a opinião pública ocidental, em especial a europeia. Particular comoção geraram as imagens de pessoas brancas e “civilizadas” sendo bombardeadas.
A reação do Movimento Olímpico – basicamente, o COI e as federações internacionais – foi ágil. Quatro dias depois da invasão russa, o COI abandonou a outrora firme crença na separação entre esportistas e governos e recomendou o banimento total de atletas e árbitros da Rússia e de Belarus (cujo território foi usado na invasão).
No mesmo dia, a Fifa excluiu a Rússia das eliminatórias da Copa do Mundo de 2022 e a Federação Internacional de Hóquei removeu as seleções da Rússia e de Belarus do campeonato mundial. Em 3 de março, os atletas paralímpicos dos dois países foram excluídos dos Jogos de Inverno de Pequim-2022. Em 20 de abril, a organização de Wimbledon também baniu tenistas desses países.
Essas decisões indicavam uma mudança tectônica na história recente do esporte. A partir dali, o Movimento Olímpico não mais alegaria que estava operando acima ou fora da política. Ao contrário: determinados eventos eram tão condenáveis que deveriam ensejar a punição do país responsável por eles como um todo, incluindo seus esportistas.
As medidas foram justificadas como uma punição à Rússia por violar a Trégua Olímpica (de inverno), um período simbólico que começa sete dias antes da abertura dos Jogos e termina sete dias depois dos Jogos Paralímpicos. Ao mesmo tempo, foram retratadas como tomadas em solidariedade aos atletas ucranianos, muitos dos quais estavam impedidos de competir devido à invasão enquanto “os atletas da Rússia e de Belarus [poderiam] continuar a participar em eventos desportivos”.
Em dezembro de 2022, dez meses após o banimento, integrantes do Movimento Olímpico solicitaram ao COI o estabelecimento de um caminho que permitisse o retorno dos atletas da Rússia e de Belarus às competições, ainda que sem representar seus países.
Em março de 2023, uma decisão foi tomada: esportistas com passaportes de Rússia e Belarus podem competir como Atletas Individuais Neutros (AIN), mas após passar por um filtro político. Atletas e pessoal de apoio que “apoiam ativamente a guerra” ou que integrem as forças armadas e as agências de segurança dos dois países não podem competir.
Para colocar este sistema em funcionamento, o COI montou um Painel de Análise de Elegibilidade de Atleta Neutro Individual, órgão responsável por realizar um pente-fino nas redes sociais e na eventual atuação política dos esportistas da Rússia e de Belarus, bem como por “monitorar sua conduta”.
Com base nesses dados, 50 atletas dos dois países foram convidados para Paris-2024, número decidido com base em um sistema de cotas para atletas AIN dentro de determinados esportes. Alegando discriminação, muitos recusaram os convites e apenas 15 russos e 17 de Belarus devem competir sob a bandeira azul-turquesa dos AIN.
As ações militares da Rússia e de Israel
Para contrastar os casos de Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina, não é necessário comparar os sofrimentos. Mas há alguns pontos a serem salientados. O primeiro é que a invasão da Ucrânia é uma guerra de agressão, completamente ilegal, moldada na invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003. A percepção de Moscou de que a OTAN vinha promovendo um cerco à Rússia é, sem dúvida, um elemento de análise importante, mas não serve como justificativa para a ação ordenada por Putin.
A ofensiva de Israel à Faixa de Gaza, por sua vez, é consequência dos ataques realizados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023. Aqui, é preciso salientar dois pontos.
O primeiro é que a ocupação israelense e o fechamentos sistemático dos caminhos pacíficos para os palestinos buscarem sua autodeterminação não podem justificar a opção feita pelo Hamas, cuja ação resultou nas mortes de ao menos 865 civis israelenses. Uma operação que mirasse apenas alvos militares teria um desfecho muito diferente.
O segundo ponto é que as ações do Hamas não autorizam, de forma alguma, a carnificina perpetrada por Israel. Como sabe o leitor de Tarkiz, as forças israelenses empilham crimes de guerra contra os palestinos nos últimos meses, que vão de tortura ao uso da fome como arma de guerra, passando por bombardeios indiscriminados e execuções extrajudiciais, entre vários outros.
A geopolítica e o COI
Tanto as ações da Rússia quanto as de Israel são criticadas internacionalmente, mas a desaprovação não é equiparável em termos de impacto. E as diferenças neste aspecto são determinantes para explicar as situações discrepantes com relação a Paris-2024.
As condenações à Rússia partem das capitais ocidentais, EUA e Europa à frente, dando vazão à disputa geopolítica entre esses atores e Moscou. Desde fevereiro de 2022, norte-americanos e europeus puderam facilmente mobilizar recursos militares, políticos, financeiros, diplomáticos e midiáticos para promover o cerco ao revisionismo da ordem internacional desejado pelo governo da Rússia.
As condenações a Israel, por outro lado, partem majoritariamente de países do Sul Global, organizações humanitárias e ativistas, cuja capacidade de mobilização de recursos é ínfima em relação ao Ocidente. Desde outubro de 2023, o mundo acompanha as atrocidades como se nada estivesse ocorrendo. A vida dos árabes, especificamente dos palestinos, parece não valer nada nas capitais ocidentais.
O desprezo às decisões recentes da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que alertou para um quadro de “genocídio plausível” na Faixa de Gaza, é a demonstração cabal de como os governos ocidentais pouco se importam com a realidade dos palestinos, na prática autorizando os crimes israelenses.
O COI, cuja diretoria-executiva é amplamente dominada por ocidentais, decidiu ecoar a mesma contradição. Como a Rússia, Israel violou a Trégua Olímpica. Como a Rússia faz com os ucranianos, Israel impede a participação de atletas palestinos. Como a Rússia fez com a Ucrânia, Israel destruiu a infraestrutura esportiva palestina.
Ainda assim, enquanto os atletas russos são monitorados para identificar ações ou declarações pró-guerra ou pró-Putin, os atletas israelenses – como mostrou Karim Zidan na newsletter Sports Politika – visitam militares na linha de frente, entregam alimentos aos soldados que vão para a guerra e celebram a “conquista” da Faixa de Gaza. O porta-bandeira de Israel, o judoca Peter Paltchik, teria postado uma foto de bombas autografadas por ele para serem lançadas contra Gaza.
Neste cenário, a diligência para agir contra a Rússia e a indignação gerada pela invasão da Ucrânia foram deixadas para trás. Nos últimos dias, o Comitê Olímpico Palestino enviou ao COI uma carta denunciando a morte de 400 esportistas nos territórios palestinos e solicitando o banimento da delegação israelense. O pedido foi engavetado.
Ao ser questionado sobre o documento, o presidente do COI, o alemão Thomas Bach, se saiu com uma resposta que lembra a condescendência colonizadora europeia do século XIX.
Ele afirmou que os palestinos são beneficiados pelos Jogos, já que “a Palestina não é um Estado-membro reconhecido pela ONU”, enquanto o Comitê Olímpico Palestino é reconhecido pelo COI. E ressuscitou a bandeira da neutralidade política dos Jogos, mesmo diante das ações contra atletas da Rússia e de Belarus. “Não estamos no ramo político, estamos aqui para cumprir nossa missão de reunir os atletas.”