F.Or.M. (28/3/24) - É impossível dissociar os EUA da ação militar de Israel na Faixa de Gaza
A tensão entre Netanyahu e Biden não serve para absolver Washington. Todas as ações israelenses se dão sob os auspícios da Casa Branca
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
Excepcionalmente, o boletim foi enviado na quinta-feira e não na sexta-feira, por conta do feriado de Páscoa.
Se você tiver tempo, por favor responda a pesquisa abaixo, com perguntas rápidas a respeito deste boletim. Suas respostas vão ajudar a melhorar o trabalho.
Tensão entre Israel e EUA é cortina de fumaça
Se você acompanhou de algum modo o noticiário sobre a guerra na Faixa de Gaza nesta semana, provavelmente foi impactado por manchetes que versam sobre o que seria uma crise entre os governos dos Estados Unidos e Israel.
O símbolo maior disso foi o adiamento, por Benjamin Netanyahu, da ida de uma delegação israelense para Washington após os EUA não vetarem uma resolução do Conselho de Segurança da ONU a respeito de um cessar-fogo no conflito.
Embora essa tensão seja real, o destaque dado a ela esconde o fato de que os EUA continuam a apoiar de maneira firme a empreitada militar israelense e, também, o cerco à Faixa de Gaza que colocou 2,23 milhões de pessoas em um nível crítico de insegurança alimentar, com muitas delas já passando fome.
Este diagnóstico pode ser obtido a partir da montagem de um quebra-cabeças com algumas peças.
Conselho de Segurança: o veto de China e Rússia
Desde o 7/10, há pedidos para um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza. O governo israelense não aceita tal pressão, do mesmo modo que os Estados Unidos.
Assim, nos últimos meses, Washington vetou três resoluções que pediam um cessar-fogo, em outubro, dezembro e fevereiro. Esses vetos são o principal elemento da cobertura política fornecida pelo governo de Joe Biden a Israel.
Na sexta-feira 22, porém, os EUA buscaram mudar a narrativa. Propuseram sua própria resolução a respeito de um cessar-fogo. O texto, porém, era capcioso. Não exigia um cessar-fogo imediato, mas dizia que um cessar-fogo era “imperativo”. Também não dizia que o cessar-fogo deveria ser permanente, mas “sustentado”, o que poderia abarcar qualquer janela temporal.
Ao mesmo tempo, o texto dava apoio aos “esforços diplomáticos internacionais em curso para garantir esse cessar-fogo no âmbito da libertação de todos os restantes reféns”.
Como escreveu o analista Trita Parsi no Responsible Statecraft, essa formulação basicamente adotava a posição israelense no conflito, pois 1) atrelava um cessar-fogo à libertação de todos os reféns feitos pelo Hamas, algo que o grupo só vai aceitar no âmbito de uma negociação mais ampla e 2) deixava aberta a porta para que o cessar-fogo fosse interrompido, o que poderia ocorrer após a libertação dos reféns.
O texto, assim, trazia embutida uma armadilha: após a eventual soltura dos reféns, o cessar-fogo poderia ser anulado e Israel estaria, sob a guarida do Conselho de Segurança da ONU, apto a retomar a ofensiva para terminar de dizimar o Hamas junto com a população palestina e a infraestrutura da Faixa de Gaza.
Onze países votaram a favor do texto, mas, cientes deste risco, Argélia, China e Rússia foram contrárias e a Guiana se absteve (o voto contrário de China e Rússia significa um veto, assim como eventuais votos negativos dos outros membros permanentes do conselho: EUA, França e Reino Unido).
O noticiário, em larga medida, não capturou as nuances do texto e enquadrou a votação como um bloqueio de Pequim e Moscou a uma benevolente ação norte-americana. Esta manchete da Associated Press é o exemplo mais claro disso.
A resolução 2728 é não-vinculativa?
Na segunda-feira 25, o Conselho de Segurança voltou a se reunir para discutir outra resolução, desta vez apresentada por Moçambique em nome dos dez integrantes temporários do colegiado (Argélia, Coreia do Sul, Equador, Eslovênia, Guiana, Japão, Malta, Serra Leoa e Suíça).
O texto determina um cessar-fogo imediato para o mês do Ramadan (que já passou da metade e se encerra entre 9 e 10 de abril) respeitado por todas as partes, conduzindo a um cessar-fogo duradouro e sustentável. Em separado, pede a soltura imediata e incondicional de todos os reféns e a facilitação do acesso de ajuda humanitária à Faixa de Gaza.
A resolução 2728 foi aprovada com 14 votos favoráveis e com a abstenção dos EUA, um raro movimento por parte de Washington, que, ao longo da história, exerceu dezenas de vezes o poder de veto para proteger Israel. Foi essa a abstenção que gerou o “embate” entre Biden e Netanyahu.
Imediatamente após a votação, porém, o governo dos EUA passou a tentar minar a resolução, por meio de uma campanha organizada para argumentar que a resolução seria não-vinculativa (non-binding), ou seja, de que as partes envolvidas não teriam obrigação de colocá-la em prática.
A embaixadora de Biden na ONU, Linda Thomas-Greenfield, liderou a empreitada, no que foi seguida pelos porta-vozes de Segurança Nacional, John Kirby, e do Departamento de Estado, Matthew Miller. Em reação, os representantes de Moçambique, Rússia, Serra Leoa, Palestina e das Nações Unidas manifestaram contrariedade e indignação com a postura dos EUA.
Em texto publicado no Verfassungsblog, uma página jornalística e acadêmica que discute temas jurídicos, Hannah Birkenkötter, professora de universidades na Alemanha e no México, argumenta que a resolução é, sim, vinculativa, o que faz com que tanto Israel quanto o Hamas tenham a obrigação legal de cumpri-la, por meio da soltura dos reféns feitos pelo grupo palestino e do fim dos ataques.
Como desejado pelos EUA, nenhuma das partes se movimentou neste sentido. Não houve libertação de reféns ao longo da semana e Israel manteve seus ataques contra a Faixa de Gaza.
EUA buscam, também, se proteger
Como todas as questões que envolvem o Direito Internacional, o ponto central é a aplicação da lei. Caberia aos membros do Conselho de Segurança exigir ou executar essas determinações, mas este órgão se tornou disfuncional, com China, EUA e Rússia atuando ali para proteger seus interesses e/ou aliados.
O argumento de que a resolução 2728 não é vinculativa serve a esses dois propósitos. Por um lado, permitiu que Israel escapasse da determinação do conselho. Por outro, é uma tentativa de manter no campo da legalidade as ações norte-americanas em favor de Israel.
Desde o 7/10, os EUA enviaram dois porta-aviões ao Oriente Médio de modo a proteger Israel de retaliações; realizaram pelo menos 100 vendas de armas aos israelenses; e protegem seu aliado politicamente no Conselho de Segurança.
A empreitada de Israel, portanto, é indissociável da administração de Joe Biden. Evidência da preocupação da Casa Branca com este aspecto foi um informe publicado na segunda-feira 25 pelo Departamento de Estado. A pasta avaliou que a utilização, por Israel, das armas fornecidas pelos EUA, não viola a lei humanitária internacional seja na conduta da guerra ou na provisão de suprimentos aos civis na Faixa de Gaza.
Qualquer avaliação em contrário implicaria não apenas o governo israelense, mas também o dos EUA. Cessar ou reduzir o apoio a Israel, porém, vai contra os objetivos geopolíticos de Washington. Como deixou claro o secretário de Estado Anthony Blinken, na sexta-feira 22, seu governo tem “os mesmos objetivos de Israel: a derrota do Hamas.”
Reportagem publicada pelo Wall Street Journal na quarta-feira 27 reforça isso. As conversas nesta semana de autoridades norte-americanas com o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, não têm como objetivo impedir uma ofensiva contra a cidade de Rafah, onde se amontoam mais de 1,5 milhão de palestinos, mas moldar a ação militar. Inevitavelmente, ela acontecerá.
A guerra é impopular nos EUA, no Partido Democrata e no governo
O esforço dos EUA para retratar como legais as ações de Israel e, por conseguinte, seu apoio a elas, é derivado de uma tentativa de manter sua imagem de “líder do mundo livre” e pilar de uma “ordem internacional baseada em regras”.
Essa narrativa não se sustenta mais dentro do Partido Democrata. Na sexta-feira 22, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez chamou a campanha israelense de genocídio. Na segunda-feira 20, o senador Bernie Sanders classificou de “absurda” a avaliação feita pelo Departamento de Estado sobre as ações israelenses, acrescentando que ela “zomba” das leis norte-americanas.
No sábado 23, Amed Khan, um filantropo muito próximo ao partido, escreveu no Intercept que “a administração Biden não é apenas cúmplice ao recusar-se a condenar o bloqueio de Israel à ajuda humanitária” como “apoia ativamente” um “esforço militar com pouca preocupação pelas vidas palestinas ou pelo destino dos reféns de Israel mantidos em Gaza.”
A tática não se sustenta nem mesmo dentro do governo. Na quarta-feira 27, a CNN publicou um artigo de uma ex-funcionária do Departamento de Estado que pediu demissão para não servir “uma administração que permite tais atrocidades [cometidas por Israel]”.
O apoio a Israel é, também impopular junto à opinião pública. Segundo uma nova pesquisa Gallup, 55% dos americanos desaprovam a empreitada militar israelense, contra 36% que aprovam. Em novembro, 50% aprovavam, enquanto 45% desaprovavam. Como consequência, só 27% dos americanos aprovam a forma como Biden lida com a crise no Oriente Médio.
“Anatomia de um genocídio”
Além da ação que corre na Corte Internacional de Justiça, a tentativa de Biden de manter a supremacia moral sofreu nesta semana um novo golpe. A italiana Francesca Albanese, relatora-especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, publicou na terça-feira 26 um relatório sobre as ações israelenses na Faixa de Gaza. Ela conclui que Israel está cometendo um genocídio.
Após listar as formas como Israel está destruindo a vida da sociedade palestina, Albanese se debruça sobre um aspecto fundamental da acusação de genocídio – a intenção de cometê-lo – e acusa o governo israelense de invocar o Direito Humanitário Internacional como uma “camuflagem humanitária” para ocultar e legitimar “a sua violência genocida em Gaza.”
A íntegra do documento, intitulado Anatomia de um Genocídio, pode ser lida aqui. O vídeo abaixo mostra o discurso de Albanese na seção do Conselho de Direitos Humanos da ONU:
Mais leituras sobre Israel-Palestina
A Al-Jazeera acompanhou três famílias que tentam sobreviver na Faixa de Gaza em meio à crise de fome criada por Israel: “Elas gritam de fome”.
Longa reportagem do Guardian a respeito do Hamas, de seu papel na política palestina e de perspectivas sobre o futuro da organização.
Uma didática entrevista da ONG Dawn com Daniel Levy, ex-negociador israelense e hoje uma das vozes mais lúcidas a respeito do conflito.
Reportagem da BBC mostra como um grupo de assentados israelenses conhecido por avançar a ocupação ilegal da Cisjordânia está se organizando para colonizar novamente a Faixa de Gaza.
Em entrevista ao Arab News, Turki al-Faisal, integrante da família real saudita, volta a indicar que o preço da normalização com Israel para o regime em Riad será o estabelecimento de um Estado palestino.
Outros temas importantes da semana
Jordânia
A polícia da Jordânia entrou em confronto e prendeu dezenas de pessoas que tentavam invadir a embaixada de Israel em Amã, informou a Reuters na quarta-feira 27. Muitos dos manifestantes gritaram cânticos pró-Hamas, um sintoma da instabilidade que a monarquia esperava desde o 7/10. A Jordânia caminha sobre uma linha tênue na qual tenta defender a causa palestina e, ao mesmo tempo, sustentar seu estratégico acordo de paz com Israel. Em fevereiro, a Anistia Internacional denunciou que mais de mil pessoas foram presas na Jordânia por conta de protestos pró-Palestina.
Líbano
Em entrevista à AP, Mohammed Takkoush, líder do Grupo Islâmico, um partido sunita libanês, afirmou que seus homens se somaram à ação militar do Hezbollah, xiita, contra Israel por conta de um “dever nacional, religioso e moral”, para defender “nossa terra e vilas” e “apoiar nossos irmãos em Gaza”. A guerra fez reemergir o braço armado do movimento, que manteve um perfil discreto por duas décadas. Assim como o Hamas, o Grupo Islâmico é inspirado na Irmandade Muçulmana. O L’Orient Today analisa o papel do Grupo Islâmico.
Síria
Importante análise no blog Diwan sobre a situação na região de Quneitra, no sul da Síria, nas cercanias da fronteira com Israel. Forças iranianas estão ampliando seu controle sobre esta área, em detrimento da Rússia e das forças do regime Bashar al-Assad, o que pode ensejar um acirramento do conflito entre Irã e Israel.
Turquia
No domingo 31, a Turquia vai às urnas para as eleições municipais, no que deve ser a última chance da oposição de impedir o controle total do presidente Recep Tayyip Erdoğan sobre o sistema político. Se conseguir uma vitória relevante, Erdogan deve aplicar uma série de medidas impopulares para conter a crise inflacionária no país, escreve Mustafa Sonmez no Al-Monitor.
Golfo
Interessante reportagem do Amwaj Media sobre os impactos, para os pequenos países do Golfo, da atual fase pacífica na relação entre o Irã e a Arábia Saudita.