F.Or.M. (23/2/24) - Você sabe o que está acontecendo na região norte da Faixa de Gaza?
Sob sítio de Israel e blecaute de informações, a área acumula relatos desesperados de fome e de crimes de guerra, enquanto os EUA, mais uma vez, bloqueiam um cessar-fogo
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
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Em 5 de dezembro, escrevi um texto em Tarkiz cujo argumento central é o seguinte: o objetivo de Israel na guerra é impedir a criação de um Estado palestino e o caminho para fazer isso é a inviabilização da vida na Faixa de Gaza, em especial em sua região norte. Este objetivo pode, ou não, ser conciliado com os desejos de limpeza étnica dos elementos mais extremos da política e da sociedade israelenses.
O argumento, ao menos por enquanto, se sustenta, pois o cenário não mudou. Olhemos para o quadro geral. Atualmente, o governo de Israel aguarda o momento certo para atacar Rafah, o que pode ensejar uma limpeza étnica. Ao mesmo tempo, mantém um intenso bloqueio na região norte da Faixa de Gaza, que é o tema principal desta edição de O Filtro do Oriente Médio.
O norte da Faixa de Gaza, que engloba a cidade de Gaza, ainda teria cerca de 300 mil pessoas, sitiadas por Israel. É praticamente inalcançável para agências humanitárias e quase totalmente obscuro para a imprensa internacional. Graças a este blecaute de informações, pouco se sabe do que ocorre ali, mas está claro que o caos está instalado. As cenas abaixo, divulgadas pela UNRWA, mostram como ficaram algumas áreas da cidade de Gaza.
Nesta sexta-feira 23, a Al-Jazeera publicou uma reportagem com o depoimento de um homem palestino de 21 anos, Ramadan Shamlakh, que conseguiu deixar o bairro de Zeitoun, na cidade de Gaza, e chegar a pé até Deir al-Balah, na região central do território.
Desfigurado, Shamlakh contou ter sido torturado por soldados israelenses e usado como escudo humano à medida que os militares subiam os andares de seu prédio e entravam nos apartamentos procurando integrantes do Hamas.
A médio prazo, é razoável supor que o governo israelense não vai permitir o retorno da população local à região norte de Gaza. Se for obrigado a fazer isso por conta da pressão internacional, poucos terão para onde retornar. E quem o fizer estará numa terra de ninguém.
No curto prazo, por conta do cerco e da pouca oferta de alimentos, o norte de Gaza pode ser palco de uma tragédia histórica, enquanto a “comunidade internacional”, EUA à frente, observa. A imagem abaixo, do fim de janeiro e exibida pela CNN, mostra o desespero dos remanescentes no norte de Gaza quando um comboio de suprimentos chegou ao local.
Na quinta-feira 22, o jornal The New York Times publicou estimativas de mortes em excesso para a Faixa de Gaza feitas por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins e da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
No melhor dos cenários – com um cessar-fogo imediato e sem epidemias de doenças infecciosas – mais 6,5 mil palestinos podem morrer. No pior dos cenários, nos próximos seis meses, mais 85 mil pessoas podem morrer. Esses números se somam aos 29 mil palestinos cuja morte já foi confirmada, sem contar os milhares que estão desaparecidos, provavelmente embaixo dos escombros.
Francesco Checchi, professor de epidemiologia da instituição britânica, disse que o estudo não é uma mensagem política. “Queríamos simplesmente colocar isso na mente das pessoas e nas mesas dos tomadores de decisão”, afirmou, “para que se pudesse dizer mais tarde que, quando essas decisões foram tomadas, havia algumas evidências disponíveis sobre como isso funcionaria em termos de vidas.”
Ração de animais e pão podre se tornam alimentos
A menina na foto abaixo se chama Leen e tem dois anos de idade. Na imagem, feita em Rafah, em 15 de fevereiro, a garota está passando por um exame cujo resultado mostrou que ela sofre de desnutrição aguda, perda drástica de peso e atrofia muscular.
A família de Leen morava em Khan Younis, cidade no sul da Faixa de Gaza, mas foi obrigada a deixar o local por conta dos bombardeios e da invasão israelense. Mesmo antes da guerra, a garota estava abaixo do peso, uma condição comum na região, em que 75% da população dependiam de ajuda humanitária para sobreviver.
Sem remédios ou alimentação adequada durante a fuga, Leen chegou a pesar 7 quilos. Segundo a Unicef, ela foi transferida para um hospital no qual poderá receber tratamento.
O caso desta garota é exemplo da situação terrível na Faixa de Gaza, detalhado por um relatório publicado na segunda-feira 19 pela Unicef. Segundo o documento, mais de 90% das crianças com idades entre os 6 e os 23 meses e das mulheres grávidas e lactantes enfrentam “pobreza alimentar grave”.
Tal condição é caracterizada por uma alimentação de baixo valor nutricional, que engloba o consumo diário de, no máximo, dois dos oito (para crianças) ou dez (para mulheres) grupos de alimentos básicos por dia.
No norte de Gaza, apenas leite materno e ovos foram citados como alimentos consumidos por 98% das crianças. Segundo o relatório, o “consumo de todos os outros grupos de alimentos, como legumes, frutas e vegetais ricos em vitamina A, outros vegetais, grãos, carne e laticínios desapareceu quase que completamente da dieta diária” (página 14).
Além disso, em toda a Faixa de Gaza, cerca de 90% das crianças com menos de 5 anos sofrem atualmente de uma ou mais doenças infecciosas, 70% tiveram diarreia nas últimas duas semanas e 81% das residências não têm água limpa.
A família de Leen está entre os 1,3 milhão de palestinos que estão em Rafah, cidade mais ao sul da Faixa de Gaza. Ali, a situação é péssima, mas é melhor do que no norte, que foi quase completamente devastado pelas forças israelenses.
Na terça-feira 20, o WFP, o Programa Mundial de Alimentos da ONU, anunciou a paralisação da distribuição de alimentos na região norte, após dois de seus comboios serem atacados, tanto por pessoas desesperadas que saquearam a carga, quanto por atiradores. Segundo o WFP, a ordem civil colapsou no norte de Gaza e a região foi tomada pelo “caos completo e pela violência.”
O programa reafirmou a necessidade urgente de mais segurança e de mais alimentos entrarem na Faixa de Gaza. “Gaza está por um fio e o WFP deve ser capaz de reverter o caminho rumo a uma crise de fome para milhares de pessoas desesperadamente famintas.”
Ao reportar a decisão do WFP, a Associated Press obteve o depoimento de um homem e uma mulher que tentam sobreviver, ele no bairro de Zeitoun, o mesmo de onde escapou Ramadan Shamlakh (ver acima), e ela no campo de refugiados de Jabalia, e manter seus filhos vivos. Segundo seus depoimentos, as pessoas estão comendo ração de animais e pão podre para sobreviver. “A situação está além da sua imaginação”, disse Soad Abu Hussein, mãe de cinco filhos, à AP.
Evidências contra a UNRWA são críveis?
Diante deste contexto, vale lembrar que, há cerca um mês, Israel e muitos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, mantêm uma campanha contra a UNRWA, a agência da ONU responsável pelos refugiados palestinos, cujos serviços são essenciais em boa parte do Oriente Médio, em especial na Faixa de Gaza no momento atual.
A pressão financeira contra a UNRWA foi feita com base na acusação de que 12 de seus funcionários participaram dos ataques de 7 de outubro e que cerca de 200 teriam ligações com o Hamas. Ocorre que, até aqui, não são públicas as evidências sobre o caso.
Na terça-feira 20, o diretor-geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, reafirmou ao jornal israelense Haaretz que o governo de Israel ainda não entregou para a entidade as provas que diz ter.
Na quarta-feira 21, o Wall Street Journal informou que órgãos de inteligência dos EUA avaliam como de baixa confiança a maior parte das informações do relatório israelense sobre a UNRWA.
Segundo uma das fontes, o relatório tem “uma seção específica que menciona como o viés israelense [contra a UNRWA] serve para descaracterizar grande parte de suas avaliações sobre a UNRWA e diz que isso resultou em distorções”. Ainda assim, o corte do financiamento segue em vigor.
Ataque contra comboio da UNRWA e prédio do Médicos sem Fronteira
Também na quarta-feira 21, a CNN revelou que, em 5 de fevereiro, a marinha de Israel atirou contra um caminhão da UNRWA, destruindo toda a carga de farinha que ele levava para a região central de Gaza. O ‘detalhe’ é que documentos provam que as forças israelenses conheciam a localização e a rota do comboio.
Na terça-feira 20, um tanque israelense atirou contra um prédio da ONG Médicos Sem Fronteira, nas cercanias de Khan Younis, matando duas pessoas. O vídeo abaixo mostra o depoimento do secretário-geral do MsF, Christopher Lockyear, ao Conselho de Segurança da ONU, na quinta-feira 22.
Em um determinado ponto do discurso, Lockyear destaca a situação das crianças, submetidas a “fugas repetidas, medo constante e obrigadas a testemunhar familiares literalmente desmembrados diante de seus olhos”. “Essas lesões psicológicas levaram crianças de apenas cinco anos a nos dizer que prefeririam morrer”, afirma ele.
EUA vetam nova resolução a favor de cessar-fogo
Apesar do cenário aterrador, na terça-feira 20, os Estados Unidos vetaram, pela terceira vez desde o 7/10, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que exigia um cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza. O veto é mais um passo na estratégia de ambiguidade deliberada de Washington, que se delineia pelas críticas às ações israelenses ao mesmo tempo em que apoia política e militarmente essas mesmas ações.
Desta vez, o argumento norte-americano para vetar a resolução é a negociação em andamento entre o governo de Israel e o Hamas, intermediadas pelo Catar e pelo Egito e patrocinadas pelos EUA.
Linda Thomas-Greenfield, a embaixadora norte-americana na ONU, indicou que seu governo vai apresentar uma resolução alternativa, que “reiteraria a visão dos EUA de uma solução de dois Estados e apoiaria as negociações em curso e lançaria as bases para a paz na região.”
Na segunda-feira 19, a Reuters teve acesso à minuta escrita pelos EUA. Segundo a agência, o texto contempla o termo cessar-fogo, ao qual EUA e Israel vem fazendo oposição ferrenha, mas trata de um “cessar-fogo temporário”. O objetivo seria sustar a possível invasão de Rafah, onde mais de um milhão de palestinos estão abrigados.
A preocupação de Washington com a invasão de Rafah não é o drama humanitário, mas sim suas repercussões negativas para outros aliados, como Egito e Jordânia, e o consequente aumento da pressão internacional.
Evidência de que a preocupação não é o drama da população palestina está na mesma reportagem. Uma fonte da delegação dos EUA na ONU indicou que a ideia “não é apressar um voto” no Conselho de Segurança, mas sim dar espaço às negociações – enquanto isso, o drama humanitário apenas piora.
Enquanto isso, segue em discussão no Congresso norte-americano o projeto de lei que vai direcionar US$ 14 bilhões a Israel. O texto foi aprovado na semana passada pelo Senado e agora precisa passar pela Câmara.
A Agência Telegráfica Judaica publicou reportagem na terça-feira 20 detalhando como o dinheiro será usado: segundo uma fonte, o dinheiro “serve para que Israel se defenda numa guerra em múltiplas frentes e tenha a certeza de que pode lidar com uma guerra em múltiplas frentes.”
Exército de Israel admite crimes cometidos por soldados
Quatro meses depois de o mundo observar diariamente os inúmeros abusos cometidos por suas forças terrestres na Faixa de Gaza, a cúpula militar de Israel decidiu falar publicamente a respeito das atrocidades.
Na terça-feira 20, o chefe do Estado-Maior das forças israelenses, Herzi Halevi, enviou recado a seus subordinados informando que eles não estão “em uma matança” e que devem se comportar “profissionalmente”. “Agimos como seres humanos e, ao contrário do nosso inimigo, mantemos a nossa humanidade”, afirmou, segundo o Times of Israel.
Na quarta-feira 21, a principal advogada das forças de Israel, Yifat Tomer-Yerushalmi, anunciou que estão sendo investigados casos disciplinares e crimes cometidos pelos militares israelenses.
Ela listou ações que têm sido documentadas pela imprensa internacional e que foram mostradas até mesmo na apresentação da África do Sul na ação por genocídio na Corte Internacional de Justiça. Em sua maioria, esse relatos são feitos com base em vídeos postados pelos próprios soldados israelenses, uma evidência da impunidade que esperam pelos abusos.
Segundo Tomer-Yerushalmi, há casos de incitação (inclusive inspirada por Netanyahu), uso injustificado da força, inclusive contra detidos, saques de propriedade privada e destruição de propriedade civil. Nos últimos dias, ficou famoso o caso do encanador Hamza Abu Halima, que foi fotografado ferido e despido enquanto era ameaçado por um soldado de Israel.
Cabe lembrar que essas práticas, ao que consta, muitas vezes ocorrem com encorajamento, anuência ou sem punição por parte dos comandantes.
Na terça-feira 20, a +972 Magazine publicou reportagem sobre os saques de bens particulares palestinos, que incluem canecas, produtos de beleza, utensílios domésticos, elementos de decoração, instrumentos musicais e até motocicletas, entre vários outros itens. A base da investigação são depoimentos de soldados que voltaram da Faixa de Gaza.
“Não houve nenhuma conversa sobre isso por parte dos comandantes”, disse um soldado à revista digital. “Todo mundo sabe que as pessoas estão levando coisas. É considerado engraçado – as pessoas dizem: ‘Mande-me para Haia’ [sede da Corte Internacional de Justiça] . Os comandantes viram, todo mundo sabe e ninguém parece se importar.”
Na terça-feira 19, um painel de especialistas da ONU emitiu um comunicado no qual manifesta indignação com o tratamento dado a mulheres e crianças palestinas por parte de militares israelenses. Segundo os especialistas, há casos de maus-tratos, espancamento e execuções, além de crimes sexuais, incluindo estupro e ameaças de estupro.
Lula e a analogia com o Holocausto
No domingo 18, em Adis Abeba, durante a 37ª Cúpula de Chefes de Estado e Governo da União Africana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a condenar as atrocidades de Israel na Faixa de Gaza, mas optou por fazer isso a partir de uma analogia com o Holocausto.
A comparação foi rechaçada pelas principais autoridades israelenses de forma intensa. Na segunda-feira 19, Lula foi declarado persona non grata em Israel e, no mesmo dia, chamou de volta o embaixador brasileiro em Tel Aviv, Frederico Meyer.
A campanha israelense já tem mais de quatro meses, então é difícil atribuir a fala a uma explosão de indignação. A analogia, possivelmente, vinha sendo gestada há algum tempo. Como escreveu Guilherme Casarões na Folha de S.Paulo, muito provavelmente com dois objetivos conjugados.
Por um lado, a ideia é afirmar o Brasil como liderança no campo do Sul Global, em que a solidariedade aos palestinos é elemento central. Por outro, a ideia foi galvanizar sua base mais à esquerda, para a qual a questão palestina também é crucial.
Ao fazer isso, Lula reativou o debate doméstico sobre a situação. Como escrevi em Tarkiz em janeiro, a questão Israel-Palestina se tornou ainda mais acentuada nas disputas esquerda-direita após a emergência do nacionalismo cristão nos últimos anos, no bojo da ascensão da extrema-direita.
Como consequência, seus adversários aproveitaram a situação para atacá-lo como “apoiador do terrorismo”. Foi o caso do ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça e de outras figuras bolsonaristas da política brasileira.
Ainda sobre a guerra…
A Reuters relata o terror de médicos e pacientes após a invasão do hospital Nasser, em Khan Younis, realizada na semana passada por forças israelenses após uma semana sitiando o local. Era o maior hospital ainda em funcionamento em toda a Faixa de Gaza. A Organização Mundial da Saúde relatou a operação delicada por meio da qual conseguiu remover 32 pacientes graves do local. O governo de Israel ainda não divulgou qualquer evidência a respeito dos motivos da invasão.
No Los Angeles Times, o médico norte-americano Irfan Galaria escreve sobre sua experiência como voluntário na Faixa de Gaza. “O que eu vi não foi guerra, mas aniquilação”.
Na The New Republic, David Rothkopf e Alon Pinkas exibem o desespero dos partidários de Biden que não conseguem acreditar no desastre que é sua postura diante as atrocidades israelenses.
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