Qual é o plano do governo de Israel na guerra contra o Hamas?
Reconhecer que o objetivo de Netanyahu é impedir o surgimento de um Estado palestino é um ponto essencial para os debates sobre o futuro
Em 2 de dezembro, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd J. Austin, fez um discurso na Califórnia em que comentou a guerra entre Israel e o Hamas. Na parte mais importante, Austin afirmou que “neste tipo de luta, o centro de gravidade é a população civil” e que, “se você lançar [a população] nos braços do inimigo, você substituirá uma vitória tática por uma derrota estratégica”.
Austin fez este comentário ao mencionar sua experiência como comandante de forças norte-americanas no Iraque. Entre outros postos, ele foi o número 2 da ocupação entre fevereiro de 2008 e abril de 2009, uma fase na qual esteve, por alguns meses, diretamente subordinado a David Petraeus, general cuja atuação se notabilizou pelo sucesso em conter a violência da insurgência iraquiana.
Sob Petraeus, Austin e outros oficiais, as forças armadas dos EUA deixaram suas grandes e isoladas bases no interior do Iraque para atuar em postos de médio porte localizados em centros urbanos e passaram a, ativamente, buscar laços com líderes tribais iraquianos. O foco da atuação era a segurança da população local, entendida como um pilar do combate à Al-Qaeda no Iraque.
Essa estratégia levou a uma quase completa destruição do grupo, pois atraiu a colaboração das populações de onde os extremistas recrutavam seus homens – e foi repetida anos mais tarde, durante o combate ao Estado Islâmico. Para Austin, a lição deste período “não é [a de que é possível] vencer na guerra urbana protegendo os civis”, mas sim de “que só se pode vencer na guerra urbana protegendo os civis”.
Por analogia, afirmou Austin, Israel deveria proteger os civis da Faixa de Gaza pois isso é “uma responsabilidade moral e um imperativo estratégico”.
Faz sentido? Sim, mas não. Não para Israel, porque a vitória estratégica que os EUA buscaram contra a Al-Qaeda no Iraque e contra o Estado Islâmico é diferente da almejada pelo governo de Benjamin Netanyahu. Entender isso é crucial.
Como Israel está destruindo a Faixa de Gaza
Como demonstra esta reportagem da +972 Magazine e do site Sikha Mekomit, destacada no Filtro do Oriente Médio da semana passada, a ação militar de Israel na Faixa de Gaza tem, a grosso modo, duas características principais.
A primeira delas é o desprezo pelas vidas de civis palestinos. O número de mortos – 15 mil pessoas, sendo 6 mil crianças – evidencia tal coisa, mas a reportagem confirma detalhes que já haviam sido trazidos à tona. As regras de engajamento foram afrouxadas, de modo a aceitar um número muito maior de mortes como “efeito colateral” de ataques a alvos militares (instalações ou integrantes do Hamas).
De acordo com um oficial de inteligência israelense, “quando uma menina de 3 anos é morta numa casa em Gaza, é porque alguém do exército decidiu que não era grande coisa ela ser morta – que era um preço que valia a pena pagar para atingir [outro] alvo.”
A segunda característica é a profusão de alvos, gerados às centenas por uma ferramenta de inteligência artificial conhecida como “O Evangelho”. Esses alvos são divididos em quatro tipos, sendo que apenas dois são de fato militares – os táticos, como depósitos de armas e locais de lançamento de foguetes, e os subterrâneos, que basicamente são as estruturas de túneis do Hamas.
Os outros dois tipos de alvos são eminentemente civis. Incluem as casas de integrantes do Hamas e os chamados power targets (“alvos de poder”), construções que basicamente constituem o núcleo da vida civil. Com as regras de engajamento enfraquecidas, prédios ou quarteirões inteiros estão sendo bombardeados caso haja a informação de que algum local foi usado por um integrante do Hamas – no norte da Faixa de Gaza, 50% das edificações foram danificadas.
Nas zonas rurais, a situação não é muito melhor. Em 4 de dezembro, a Human Rights Watch detalhou como campos de plantação, pomares e estufas estão sendo destruídos ao norte de Beit Hanoun, cidade no Nordeste de Gaza . A alegação é de que a área estaria sobre túneis do Hamas, mas a HRW encontrou indícios de que as áreas agricultáveis estão sendo destruídas também com retroescavadeiras.
Já os power targets têm sido objeto de uma sistemática e meticulosa campanha de devastação. Desde o dia 7, Israel destruiu as sedes do principal tribunal de Gaza, do parlamento local, da Ordem dos Advogados, da Universidade Islâmica e da principal biblioteca de Gaza, entre vários outros alvos civis e governamentais.
Toda essa campanha, segundo as fontes ouvidas pelos sites israelenses, têm como intenção “provocar um choque” capaz de reverberar e “levar a população a colocar pressão sobre o Hamas”. Se trata, portanto, de um ataque que tem como alvo direto toda a população da Faixa de Gaza, sendo o Hamas seu alvo indireto.
O que significa vencer?
É evidente que essas práticas são, em sua larga maioria, crimes conforme as leis internacionais. O guarda-chuva diplomático oferecido pelos Estados Unidos e pela Europa, porém, isenta a liderança israelense de qualquer tipo de responsabilização futura.
A pergunta que surge, então, é a seguinte. Por qual motivo o governo israelense mantém tais práticas, se elas podem gerar uma “derrota estratégica”, como afirmou o secretário Austin? Essa pergunta tem uma resposta de curto prazo e outra de longo prazo.
No primeiro caso, o gabinete de guerra israelense provavelmente trabalha ciente de uma dinâmica que perpassa quase todos os conflitos militares: a partir de um determinado ponto, a depender de inúmeras variáveis, o apoio popular à guerra diminui. Deste modo, Netanyahu e seus aliados precisam produzir algo palpável que possa ser apresentado para a sociedade israelense como uma vitória.
Este é o papel das cenas da obliteração da Faixa de Gaza neste quadro imediato. Como o objetivo oficial do governo – destruir o Hamas – é inexequível no curto prazo, o que começa a ser admitido por integrantes do gabinete, Netanyahu prepara uma “porta de saída” para o conflito. A face visível deste plano será a destruição da Faixa de Gaza e o discurso será o de que o Hamas foi derrotado. A aceitação deste diagnóstico pela sociedade não deve ser simples: dois meses depois do 7/10, o Hamas continua a lançar foguetes contra cidades israelenses.
Na análise a respeito do longo prazo, é possível compreender os diferentes pontos de vista a respeito do que consiste uma vitória.
No pano de fundo da fala de Austin, o secretário de Defesa norte-americano, está a expectativa de que Israel poderia acoplar à retaliação contra o Hamas iniciativas políticas e diplomáticas capazes de pavimentar o caminho para a busca por uma solução política para o conflito. Isso envolveria uma drástica mudança no que foi feito até aqui (com cobertura dos EUA) e algum tipo de aceno à sociedade palestina a respeito de um futuro compartilhado. Com muito esforço e alguma sorte, isso poderia culminar em uma retomada do processo de paz.
Para Netanyahu, vitória é barrar o Estado palestino
Ocorre que esta perspectiva não apenas não consistiria uma vitória para o atual governo de Israel como significaria uma dolorosa derrota. Benjamin Netanyahu, figura que governa Israel de forma praticamente ininterrupta desde 2009, é um homem que dedicou sua vida a impedir o estabelecimento de um Estado palestino.
No fim dos anos anos 1970, Netanyahu sonhava com uma guerra que poderia promover a remoção de todos os árabes da Cisjordânia e de Jerusalém. Nos anos 1990, ascendeu na política israelense como principal incitador do ódio contra Yitzhak Rabin, o primeiro-ministro que ousou chegar a um acordo de paz preliminar com os palestinos.
Desde 2009, Netanyahu fez acenos à chamada solução de dois Estados quando esteve sob pressão externa e interna para tanto, mas desde 2015 lidera uma coalizão que, assim como seu líder, atua para impedir a autodeterminação palestina de todas as formas possíveis. Trate-se de uma união de grupos direitistas que o professor israelense Oren Yiftachel nomeou como “bloco colonialista”. É, segundo ele, “um conjunto de partidos que promove ativamente a judaização dos territórios palestinos ocupados e das esferas contestadas dentro de Israel, e que se opõe ao estabelecimento de um Estado palestino viável.”
Este bloco tem em seu núcleo o Likud, principal partido da vertente revisionista do sionismo (o nacionalismo judaico), e, como elementos auxiliares, porém decisivos, os adeptos do sionismo religioso, espalhados por diversas siglas.
Enquanto os revisionistas pregam o maximalismo territorial na construção de Israel, os sionistas religiosos enxergam como inaceitável qualquer cessão territorial aos palestinos na Terra de Israel bíblica que, segundo a tradição religiosa, tinha seu núcleo na Cisjordânia atual. Esses dois campos ideológicos, deste modo, se encontram na ideia de um “Grande Israel” na qual a autodeterminação palestina é inaceitável.
No mês passado, segundo a imprensa israelense, Netanyahu fez a seguinte afirmação a um grupo de deputados de sua coalizão: “Sou o único que impedirá a criação de um Estado palestino em Gaza e [na Cisjordânia] depois da guerra.” Ele estava advogando por sua permanência no cargo de premiê, um desfecho difícil diante do fracasso representado pelo 7/10.
Essa frase se junta a um outro famoso comentário de Netanyahu, também vazado para a imprensa, feito em 2019, a respeito de seu apoio à estratégia de permitir que o Catar financiasse a estrutura administrativa da Faixa de Gaza, salvando o Hamas da falência: “Qualquer pessoa que queira impedir o estabelecimento de um Estado palestino precisa apoiar o fortalecimento do Hamas.” A ideia de Netanyahu, e de muitos do establishment político israelense, é que a manutenção das divisões internas da comunidade palestina é boa para Israel, pois prejudica a luta pela autodeterminação.
Esses pontos permitem que entendamos de forma mais clara a política israelense na Faixa de Gaza. “Vencer” significa impedir o Estado palestino a qualquer custo. Significa manter o status quo – a autodeterminação dos judeus e a violação dos direitos dos palestinos. Assim, enquanto o discurso do governo Netanyahu é de que o objetivo é destruir o Hamas, a prática demonstra que a prioridade é inviabilizar a vida na Faixa de Gaza.
Esta situação é o que abastece os sonhos dos elementos mais extremistas da política israelense, que planejam expulsar os palestinos da Faixa, recolonizar a região ou uma mistura das duas coisas. Ainda não está claro se o governo israelense vai adotar ou não essas propostas extremistas, mas a possibilidade de criar uma buffer zone dentro da Faixa de Gaza é um indício negativo. A resposta para isso só virá quando, e se, Israel permitir o retorno da população da Faixa de Gaza para o norte da região, bem como sua reconstrução. Caso contrário, estaremos diante de outro caso de limpeza étnica contra os palestinos.
Ao mesmo tempo, a prática israelense mantém vivas as condições de desespero da sociedade palestina, uma das molas propulsoras do recrutamento por parte do Hamas. Suplanta o limite da desfaçatez argumentar que a carnificina dos últimos dois meses vai fazer a população palestina se voltar contra o Hamas e não contra Israel.
A “culpa” pela ausência de uma solução política para o conflito pode ser distribuída por vários atores. Cabe lembrar, porém, que Israel tem a capacidade militar, a pujança econômica e a cobertura diplomática para atuar com coragem na busca por isso, mas que sua liderança política escolhe não fazê-lo. A opção dessa elite é aprofundar a desumanização dos palestinos e a violação de seus direitos. Mas, como o 7 de Outubro tragicamente demonstrou, este cenário também não traz segurança para a população israelense.