O Filtro do Oriente Médio (2/2/24) - A fome se alastra e vira arma contra os palestinos
O que mais se pode dizer para frear a barbárie?
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
Palestinos comem grama e bebem água poluída
A semana que passou foi demarcada pela pressão de Israel e de seus aliados ocidentais contra a UNRWA, agência da ONU responsável pelos refugiados palestinos. Como escrevi em Tarkiz na quinta-feira 31, a campanha é motivada por acusações gravíssimas, mas também por um desejo da elite política israelense de acabar com essa entidade.
A ofensiva reforça a situação precária da população na Faixa de Gaza. Na quarta-feira 31, Martin Griffiths, subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, comunicou ao Conselho de Segurança que a entidade está no coração da ajuda humanitária na Faixa de Gaza e que a resposta à situação “depende de a UNRWA estar adequadamente financiada e operacional.”
Após quase quatro meses de guerra, o número de mortos passou de 26 mil. E a situação dos vivos não é muito melhor. Na quarta-feira 31, a CNN publicou uma reportagem na qual ilustra, com depoimentos, o alastramento da fome pela região.
Mohammed Hamouda, um homem que conseguiu chegar a Rafah, no sul da Faixa de Gaza, resumiu a situação de amigos e familiares que seguem na região norte: “Eles comem grama e bebem água poluída”. Uma versão reduzida da reportagem, em português, pode ser lida aqui.
Outras emissoras norte-americanas, como a ABC News e a NBC News, também veicularam nesta semana reportagens (veja abaixo) que mostram a situação desesperadora dentro da Faixa de Gaza.
Em ambas, o governo de Israel alega que não há falta de comida na região, mas as organizações humanitárias rechaçam essa alegação, afirmando que os caminhões não estão entrando com a velocidade necessária. Nesta outra reportagem da NBC, a emissora mostra quilômetros de filas com caminhões que não conseguem entrar na Faixa de Gaza a partir do Egito.
A despeito da gravidade da situação, a sociedade e a liderança israelenses ainda relutam em acelerar a passagem da ajuda humanitária. Na quinta-feira 1º, o Canal 12 de Israel, uma emissora favorável a Benjamin Netanyahu, afirmou que dois integrantes do gabinete de guerra, Gadi Eizenkot e Benny Gantz, defendem que os comboios continuem a ser limitados. A tese é de que isso enfraqueceria o Hamas, que estaria desviando metade dos suprimentos.
Chama atenção o fato de que Eizenkot e Gantz são o que se pode chamar, na atualidade, de a “ala moderada” da política israelense. Ambos são opositores de Netanyahu que entraram no gabinete devido ao momento delicado. Apesar da ação na Corte Internacional de Justiça que acusa o país de genocídio, a elite política israelense permanece alheia ao sofrimento dos civis palestinos.
No Guardian, Alex de Waal, que pesquisa a utilização da fome como arma de guerra ao longo da história, detalhou a situação atual na Faixa de Gaza. Ele alertou que o risco de inanição é real e que “nunca antes de Gaza os profissionais humanitários de hoje viram uma proporção tão elevada de uma população descer tão rapidamente para a catástrofe”.
Ainda segundo ele, o cenário é extremamente preocupante por conta da natureza do problema: crises de fome demoram a ser mitigadas mesmo após o início, ou a retomada, do fluxo de suprimentos. Assim, diz De Waal:
“Para a sobrevivência do povo de Gaza hoje, não importa se Israel pretende ou não o genocídio. A menos que Israel siga as recomendações do comitê de combate à fome [uma organização independente], causará conscientemente mortes em massa por fome e doenças. Isso é um crime de fome. E se os EUA e o Reino Unido não conseguirem utilizar todas as alavancas possíveis para impedir a catástrofe, serão cúmplices.”
População também é contra envio de ajuda. E extremistas defendem a limpeza étnica
Enquanto a situação humanitária na Faixa de Gaza degringola, a extrema-direita continua ocupando um relevante espaço político em Israel. Mais importante que isso, posições de extrema-direita estão tomando conta do parlamento (leia mais abaixo), da política e da sociedade.
No domingo 28, milhares de adeptos dos setores mais radicais de Israel realizaram uma festa cujos motes principais eram a reocupação da Faixa de Gaza e a expulsão dos palestinos da região. A cerimônia, descrita pelo Times of Israel como um “carnaval”, contou com a presença de 11 dos 37 ministros do governo Netanyahu e de 15 deputados de sua coalizão.
A estrelas do evento eram o autoproclamado fascista-homofóbico Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, e o condenado por apoio ao terrorismo Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional. Este vídeo do jornal indiano Hindustan Times traz declarações dos políticos e de cidadãos que estiveram no evento:
O ministro das Comunicações, Shlomo Karhi, do Likud, o mesmo partido de Netanyahu e supostamente menos radical que seu colegas de gabinete, também defendeu abertamente a limpeza étnica da Faixa de Gaza. Segundo ele, a guerra abre as portas para que Israel coaja os palestinos a deixarem a região.
O clima favorável à devastação de Gaza foi sentido também em manifestações que, apesar do avanço da fome, tentam, desde a semana passada, impedir o envio de ajuda humanitária para os palestinos. Cidadãos israelenses têm protestado e tentado bloquear os caminhões que deveriam levar suprimentos, incluindo comida e remédios, para a Faixa de Gaza.
Como relata a colunista Dahlia Scheindlin, no jornal israelense Haaretz, os que participam desses atos são extremistas, mas o sentimento expresso por eles abarca a maioria da sociedade em Israel. Segundo ela, 60% dos judeus israelenses se opõem ao envio de ajuda humanitária a Gaza. Na prática, essa posição significa uma defesa do uso da inanição como arma, o que se configura como crime de guerra.
A devastação da infraestrutura civil, documentada
Na terça-feira 30, o Guardian publicou uma reportagem com imagens e mapas que mostram a extensão da devastação provocada por Israel na Faixa de Gaza. A visão ampla proporcionada por este tipo de investigação ajuda a sustentar a minha avaliação de que os objetivos do governo israelense são inviabilizar a vida na Faixa de Gaza, abrir as portas para uma limpeza étnica e impedir um Estado palestino.
Como foi exposto ainda em novembro, a destruição da infraestrutura civil teve início com bombardeios guiados por inteligência artificial nos quais as chamadas “regras de engajamento” foram afrouxadas pela liderança israelense, ampliando tanto a destruição quanto o número de vítimas civis.
Essa campanha teve continuidade com a invasão terrestre. Na quinta-feira 1º, o New York Times publicou um apanhado com vídeos das inúmeras demolições controladas realizadas pelas forças israelenses nos últimos meses. O jornal listou 33 alvos, todos eles civis – mesquitas, escolas, um hotel, uma universidade, prédios residenciais, áreas agrícolas, setores de bairros – que foram obliterados.
Segundo o NYT, esse número provavelmente é apenas uma fração do que realmente aconteceu, já que o acesso à Faixa de Gaza é precário. Assim, a principal fonte da reportagem são os próprios militares israelenses, que postam os vídeos em seus perfis nas redes sociais, algumas vezes fazendo piadas.
A argumentação do governo de Israel é de que esses locais teriam sido usados pelo Hamas. Em um eventual julgamento, este argumento dificilmente se sustentaria para evitar uma condenação por crimes de guerra, uma vez que atacar construções civis que não representem ameaça ou tenham função militar é claramente proibido.
Os bombardeios indiscriminados e as demolições não são o único meio pelo qual as forças de Israel destroem a infraestrutura civil da Faixa de Gaza. Reportagem publicada na quinta-feira 1º pelo Haaretz revelou que, no último mês, atear fogo a residências na Faixa de Gaza, até que elas se tornem inutilizáveis, se tornou uma prática comum por parte dos soldados de Israel. Muitas vezes, os incêndios são determinados pelos comandantes mesmo sem ordem legal para isso. Este caso, também, pode configurar crime de guerra.
Mais crimes de guerra atribuídos a Israel, um deles filmado
Na manhã de terça-feira 30, 12 militares israelenses entraram no hospital Ibn Sina, em Jenin, cidade na região norte da Cisjordânia, e mataram três homens. Segundo o Times of Israel, eles seriam ligados ao Hamas e estavam planejando um ataque nos moldes do realizado em 7/10.
As cenas foram filmadas pelo circuito interno do hospital e expuseram o possível cometimento de mais um crime de guerra por Israel. Como os militares estavam disfarçados de médicos e civis, alguns deles como uma mulher, a ação pode se enquadrar como o crime de perfídia, que se configura pela realização de um ato hostil sob a cobertura de uma proteção legal. No UOL, João Paulo Charleaux explicou a situação e detalhou a situação.
O mesmo episódio pode configurar um outro crime de guerra, o de execução. Um repórter do jornal The National, dos Emirados Árabes Unidos, visitou o hospital Ibn Sina e confirmou com funcionários do local que os três alvos das forças especiais israelenses foram mortos com tiros na cabeça.
Um deles, Bassel Ghazzawi, que seria o alvo principal, estava internado há quatro meses, após ser atingido por estilhaços de um míssil, e estava com os membros inferiores paralisados. “O que aconteceu foi o assassinato de um homem ferido que não conseguia mover-se ou gerir as suas necessidades sozinho”, afirmou Tawfiq Al Shobaki, diretor do hospital.
Na quarta-feira 31, o Ministério das Relações Exteriores do governo palestino emitiu um comunicado pedindo uma investigação internacional a respeito de um outro possível crime de guerra atribuído às forças israelenses.
Em Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza, foram encontrados 30 corpos em decomposição, enterrados em uma vala comum no jardim de uma escola. As pessoas, que aparentemente foram executadas, estavam algemadas e vendadas, segundo o comunicado. Imagens [fortes] publicadas pela Al-Jazeera e nas redes sociais mostram a remoção dos corpos.
Um freio na espiral da guerra regional?
Na terça-feira 30, o Kataib Hezbollah, um dos principais movimentos iraquianos alinhados ao Irã, emitiu um comunicado afirmando que iria suspender os ataques contra alvos dos Estados Unidos no Oriente Médio. O informe se deu horas depois de o grupo ser apontado por Washington como responsável pela operação que matou três militares norte-americanos na Jordânia no domingo 28.
Em reportagem publicada na quarta-feira 31, a Reuters detalhou que o Kataib Hezbollah foi pressionado por atores políticos iraquianos e também pelo regime iraniano a emitir o comunicado. A morte dos soldados foi encarada como um passo exagerado na escalada de violência desde o 7/10, que poderia acelerar a caminhada para um conflito regional de grandes proporções.
A apuração da Reuters vai ao encontro do que escrevi em Tarkiz na segunda-feira 29: o ataque na Jordânia pareceu um ato fora do roteiro, pois enseja uma resposta intensa dos EUA, o que está muito distante do interesse imediato do regime no Irã.
O comunicado do Kataib Hezbollah não encerra a questão, porém. A resposta de Washington virá, mas ainda não está claro como. Ainda segundo a Reuters, outras facções pró-Irã também teriam se comprometido a parar os ataques, mas poderiam retomá-los a depender da retaliação norte-americana. “Se os EUA fizerem um grande ataque nos próximos dias, isso pode mudar as coisas”, disse uma fonte à agência.
Ações contra a guerra enfrentam repressão em Israel
Na terça-feira 30, um comitê do Knesset, o parlamento de Israel, aprovou por 14 votos a 2 o impeachment do deputado Ofer Cassif, que assinou uma petição em apoio à ação em que a África do Sul acusa Israel de genocídio. Cassif é o único membro judeu da coalizão majoritariamente árabe Hadash-Ta’al e está sendo tratado como um extremista que apoia o Hamas e traiu Israel.
Agora, o caso vai ao plenário, onde são necessários 90 dos 120 votos para que ele perca o mandato. É muito provável que Cassif seja cassado, pois o primeiro ato do parlamento contra ele foi uma carta assinada por 85 colegas denunciando sua concordância com a acusação contra Israel.
A ação contra Cassif, porém, aparentemente não tem base legal, segundo a procuradoria israelense, o que deve levar o caso ao Judiciário. Caso o mandato seja salvo pela Justiça, isso deve ensejar uma batalha com as forças extremistas que controlam a política israelense.
Como mostrou na semana passada +972 Magazine, os manifestantes contra a guerra vivem sob uma aura de medo em Israel, uma vez que protestos contra a ação militar na Faixa de Gaza estão banidos. Segundo a revista, o Judiciário derrubou as medidas do governo que cerceavam os bloqueios à liberdade de expressão durante a guerra, mas, na prática, elas continuam sendo utilizadas pela polícia, controlada pelo ministro Ben-Gvir.