Decisão da Corte Internacional de Justiça pressiona Israel e o Ocidente. Será suficiente?
Apesar de a CIJ não ter ordenado um cessar-fogo, as medidas provisórias reconhecem que a acusação de genocídio é plausível, o que já é suficientemente grave
Um resumo do texto, em três pontos:
As tentativas de retratar a decisão como favorável a Israel não têm sustentação no documento publicado pela corte;
A mera consideração de que Israel está realizando um genocídio é muito danosa para o país e para seus aliados ocidentais;
Além disso, a decisão abre um caminho que pode culminar na deslegitimação internacional de Israel.
Na manhã de sexta-feira 26, a Corte Internacional de Justiça, o mais antigo e importante órgão judiciário das Nações Unidas, divulgou seu parecer a respeito da ação aberta pela África do Sul, na qual o país acusa Israel de violar a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, na Faixa de Gaza. O documento de 29 páginas, que pode ser acessado aqui na íntegra (em inglês), carrega muitos impactos.
Em primeiro lugar, a CIJ reconhece (no ponto 45 da decisão) que os palestinos são um grupo protegido pela Convenção. Isto é importante pois continua presente nos debates públicos o antigo argumento israelense de que os “palestinos não existem”.
Segundo os adeptos desta tese, os palestinos seriam um povo cuja autodeterminação poderia ser obtida em qualquer outro país árabe ou um povo distinto cuja autodeterminação já teria sido contemplada, com a formação da Jordânia. Ariel Sharon, ex-primeiro-ministro de Israel, por exemplo, rechaçava a ideia de um Estado palestino pois este seria, segundo ele, um “segundo Estado palestino”.
Na atualidade, este argumento se concretiza nas palavras de diversas lideranças israelenses que atuam e falam abertamente sobre a remoção dos palestinos para terceiros países ou até mesmo para uma ilha artificial.
Em segundo lugar, a CIJ reafirmou (no ponto 33) que qualquer Estado parte da Convenção de Genocídio pode acionar a corte para denunciar potenciais genocídios. A defesa de Israel não questionou este aspecto, mas trata-se de um tema fundamental para eventos futuros, como destacou Rebecca Hamilton, professora e editora-executiva do Just Security.
O terceiro ponto é o mais importante. Nesta ocasião, a CIJ não poderia decidir se Israel está ou não cometendo genocídio contra os palestinos – esta é a decisão de mérito, que será tomada ao fim do julgamento, o que pode demorar anos. Isso não significa que a decisão desta sexta-feira seja pouco importante ou que não haveria elementos desde já para tratar do mérito.
No estágio atual, a CIJ poderia, no máximo, avaliar se considerava plausível a acusação de que Israel está cometendo genocídio. E a avaliação foi de que, sim, é possível que a campanha israelense na Faixa de Gaza consista um genocídio (ponto 66). A acusação feita pela África do Sul, portanto, é admissível segundo a CIJ. Trata-se de um diagnóstico extremamente grave para um país que alega ter o “exército mais moral do mundo.”
Para chegar à conclusão de que a denúncia sul-africana é plausível, a corte examinou de forma preliminar as duas condições necessárias para que um genocídio seja caracterizado: 1) o direcionamento dos atos violentos contra um povo como um todo e 2) a existência da intenção de realizar a destruição deste povo.
A decisão preliminar sobre a primeira condição foi baseada nos relatos de múltiplos agentes de órgãos ligados à ONU que estiveram na Faixa de Gaza e descreveram o cenário aterrador na região provocado pela ação de Israel (Este é o quarto elemento fundamental da decisão, que reafirma a enorme importância do sistema ONU enquanto o governo israelense ataca e boicota essas mesmas agências).
A segunda condição foi examinada a partir de declarações de autoridades israelenses (pontos 51 a 52, na imagem abaixo). Foram citados especificamente o presidente de Israel, Isaac Herzog, e o ministro da Defesa, Yuval Gallant, (além do agora ex-ministro Israel Katz).
Como escrevi em Tarkiz em 13 de outubro, Herzog e Gallant adotaram, ainda no início do conflito, uma retórica genocida que enseja enorme preocupação. Foi esta a mesma percepção da CIJ. Cabe lembrar que, depois deles, muitas outras lideranças políticas israelenses adotaram tom semelhante, assim como certos soldados que estiveram na linha de frente.
Foi com base nesta avaliação que a CIJ ordenou medidas provisórias (ou cautelares no jargão jurídico) para Israel. E aqui se configura o quinto ponto importante da decisão. Essas medidas só podem ser emitidas caso os magistrados entendam que há risco real e iminente de prejuízos irreparáveis aos direitos previstos na Convenção de Genocídio.
E os magistrados entenderam que sim. Após mencionarem as ações que Israel listou em sua defesa como capazes de mitigar a situação na Faixa de Gaza, a CIJ afirmou (no ponto 73) que elas “são insuficientes para eliminar o risco de danos irreparáveis serem causados [aos palestinos] antes de o Tribunal emitir a sua decisão final no caso”.
Decisão é muito negativa para Israel e seus aliados
A decisão da CIJ, tomada por maiorias acachapantes de 15 votos a 2 e 16 votos a 1 (sendo um dos votos vencidos o israelense Aharon Barak, que em dois casos votou contra Israel), é extremamente danosa para Israel e para seu aliados ocidentais, Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido à frente.
Em tese, a simples possibilidade de Israel estar realizando um genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza deveria cessar todo e qualquer apoio político à campanha militar do país, em especial a venda de armas e munições que podem ensejar um genocídio, por parte de países que alegam defender uma “ordem internacional baseada em regras”.
É evidente, porém, que esta tese se encontra muito distante da realidade. E aqui está o limite do direito internacional: ele só entra em vigor se as grandes potências decidirem colocá-lo em prática.
Para as principais potências europeias (Alemanha, França e Reino Unido), a decisão preliminar da CIJ é delicada. Pressões domésticas e de vizinhos críticos da política israelense, bem como a tradição do continente de, ao menos retoricamente, defender a lei internacional, podem provocar mudanças em determinadas posições ou, ao menos, ampliar o custo político de manter o apoio diplomático e a venda de armas a Israel.
Para os Estados Unidos, a situação é diferente. Defender o direito internacional e, ao mesmo tempo, rechaçá-lo quando seus interesses estão em jogo, é uma prática corriqueira, realizada historicamente tanto por seus presidentes quanto pelo Congresso, o que chegou ao ápice na delinquente decisão de invadir o Iraque em 2003. Uma mudança de rumos em Washington, deste modo, é bastante improvável.
Ainda assim, para os ocidentais em conjunto, o risco agora é a deslegitimação completa do direito internacional, tendo em vista o apoio que deram as decisões recentes da CIJ contra a Rússia e Mianmar, por exemplo. Embutido aqui está o risco de abandonar qualquer possibilidade de atrair a maior parte dos países do Sul Global para o seu lado em eventuais disputas com a China.
Para Israel, a decisão da CIJ reforça a encruzilhada na qual o país se encontra. Israel é um habitual violador do direito internacional. Nos anos 1970, a principal liderança palestina abriu mão da demanda de controlar todo território da Palestina histórica (a área entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo) e decidiu lutar por sua autodeterminação apenas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia.
Desde 1967, Israel vem tomando território e transferindo sua população para a Cisjordânia, práticas ilegais segundo o direito internacional (o que é reconhecido até pelos EUA). Israel jamais teve de responder por isso graças à proteção garantida por Washington no Conselho de Segurança da ONU. São dezenas de vetos norte-americanos ao longo da história em decisões contrárias a Israel, incluindo dois ocorridos nos últimos meses.
Por outro lado, a estratégia israelense de depender cada vez mais dos EUA parece ter encontrado um obstáculo relevante diante da carnificina na Faixa de Gaza. O grande temor externo da elite política de Israel não é a causa palestina ou o Irã, mas a deslegitimação internacional.
Nas últimas décadas, setores críticos a Israel vem tentando deslegitimar o país a partir da acusação de que os assentamentos na Cisjordânia e o controle quase que total sobre esta região e sobre a Faixa de Gaza constituem um sistema de apartheid semelhante aos imposto por brancos europeus contra os negros na África do Sul.
Até aqui, Israel conseguiu, em larga medida, bloquear essa campanha, mas a decisão da CIJ pode criar um caminho para o isolamento de Israel mais efetivo do que o aberto pelo chamado movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS).
Chegamos, então, ao sexto ponto importante da decisão. Como disse Hanan Ashrawi ao jornal The New York Times, “Israel está sendo responsabilizado pela primeira vez – e pelo mais alto tribunal, e por uma decisão quase unânime.”
Diante disso, a liderança israelense terá de determinar até que grau pretende realizar seus objetivos políticos e territoriais sob os auspícios dos EUA e avaliar o risco, agora mais elevado, de se tornar um pária internacional (aqui, o papel dos europeus é determinante).
Em parte, isso será determinado pelo cumprimento das medidas provisórias determinadas pela CIJ. São seis:
Que o Estado de Israel tome todas as medidas para prevenir a ocorrência de um genocídio;
Que tome todas as medidas para determinar que suas forças armadas façam o mesmo;
Que previna e puna as declarações que incitam a um genocídio;
Que tome medidas imediatas para prover serviços básicos e assistência humanitária aos habitantes da Faixa de Gaza;
Que tome medidas para preservar evidências relacionadas à acusação de genocídio;
Que envie, dentro de um mês, um relatório à CIJ reportando todas as medidas que tomou.
Ao longo da sexta-feira 26, o fato de a CIJ não ter incluído entre as medidas cautelares uma determinação explícita solicitando um cessar-fogo, solicitada pela África do Sul, foi interpretada como uma vitória de Israel. A comparação era com a ação aberta em 2022 pela Ucrânia, no mesmo tribunal, contra a Rússia, em que a CIJ determinou de forma clara um cessar-fogo.
Ocorre que os casos eram diferentes. Naquela ocasião, a invasão russa foi justificada a partir da acusação de que o Estado ucraniano estaria realizando um genocídio contra a minoria russa no leste do país. A CIJ entendeu que a alegação de Moscou não se sustentava e determinou, portanto, que a operação militar fosse paralisada por ter sido iniciada de má-fé pelo regime de Vladimir Putin.
Neste caso, a CIJ não foi explícita ao pedir um cessar-fogo. Como notaram diversos especialistas, isso tem relação não apenas com a diferença entre o caso atual e a disputa Ucrânia x Rússia. Ao contrário da ofensiva russa, a israelense vem como resposta a um ataque, de características brutais, uma diferença significativa.
Ao mesmo tempo, como argumentou David Kaye, professor da Universidade da Califórnia, na Foreign Affairs, os juízes buscaram mostrar alguma parcimônia como tentativa de salvaguardar o espaço do direito internacional na política internacional. Uma determinação de cessar-fogo teria criado uma situação na qual os Estados Unidos muito provavelmente avançariam contra a CIJ, desmoralizando as bases do direito internacional.
Na forma que a decisão tomou, há um caminho para “salvar a face” dos EUA diante de seu apoio a Israel e, com isso, manter a relevância do direito internacional.
Ao determinar que o Estado de Israel e suas forças armadas tomem “todas as medidas para prevenir a ocorrência de um genocídio” a corte listou entre essas medidas a) “matar membros do grupo [palestino]” b) “causar danos corporais ou mentais graves a membros do grupo” e c) “infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física, total ou parcial.”
Como um genocídio requer intenção, pode-se alegar que operações militares israelenses que não tenham a intenção de destruir o povo palestino continuam permitidas. É isso o que Israel fará. Porém, desde 7 de outubro, para quem acompanha o noticiário com alguma atenção, está claro que o quadro na Faixa de Gaza representa um período sombrio na história da humanidade.
Daqui para frente, cada morte palestina, cada bombardeio indiscriminado, cada execução e cada dia em que a situação atual se perpetua serão observados à luz das determinações da Corte Internacional de Justiça.
Israel e, principalmente, os EUA têm em suas mãos a responsabilidade de indicar qual mundo teremos: um no qual o direito internacional é capaz de ajudar a mitigar as tragédias ou um no qual vale apenas a lei do mais forte.