O Filtro do Oriente Médio (24/11/23) - O debate sobre genocídio e a pausa humanitária
A violência contra os civis palestinos continua em escala assustadora. Em Israel, investigação sobre crimes sexuais do Hamas encontra dificuldades. E a pausa humanitária finalmente começa
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
A pior situação humanitária em décadas
O britânico Martin Griffiths, subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários e coordenador de Ajuda de Emergência, atua neste ramo desde os anos 1970. Em entrevista à CNN, ele afirmou que o que está acontecendo na Faixa de Gaza é a pior crise humanitária que já presenciou.
Griffiths lista alguns argumentos: são 14 mil mortos, 68% deles mulheres e crianças; os hospitais se tornaram zona de guerra; todas as escolas estão fechadas; 80% dos habitantes da Faixa de Gaza foram deslocados. “Não acho que tenha visto algo assim antes. É uma carnificina completa e absoluta”.
O risco de genocídio em Gaza
Diante deste contexto, um grupo de especialistas ligados à ONU divulgou no dia 16 uma carta sublinhando o risco de que a ação de Israel na Faixa da Gaza se converta em um genocídio.
Os especialistas se dizem “profundamente preocupados com o apoio de certos governos à estratégia de guerra de Israel contra a população sitiada de Gaza e com o fracasso do sistema internacional em se mobilizar para prevenir o genocídio”.
A acusação foi rebatida pelo governo de Israel e pelo principal patrocinador de sua ação, o dos Estados Unidos. Ambos insistem que Israel está apenas se defendendo, enquanto o massacre promovido pelo Hamas em 7/10 é que teria sido genocida. Evidentemente, os acusados por um genocídio ou por acobertá-lo jamais admitiriam tal coisa.
Vale lembrar que, durante o genocídio de Ruanda, em 1994, o governo norte-americano explicitamente proibiu seus integrantes de usar o termo genocídio, apesar das evidências de que era isso o que estava acontecendo. Na ocasião, o interesse da Casa Branca de Bill Clinton era evitar a pressão para que os EUA interviessem no país africano.
Essa lembrança não significa que o mesmo está acontecendo agora, mas cálculos a respeito dos interesses dos Estados Unidos e da Casa Branca estão sendo feitos. No dia 21, o site Politico relatou que uma preocupação da administração Joe Biden sobre a pausa humanitária anunciada (leia mais abaixo) era o fato de que ela “permitiria aos jornalistas um acesso mais amplo a Gaza e a oportunidade de iluminar ainda mais a devastação ali e virar a opinião pública contra Israel”.
Crimes de guerra e contra a humanidade, sim. Genocídio, talvez
Nesta semana, James Dorsey, editor da newsletter The Turbulent World, recebeu o professor israelense Omer Bartov, da Brown University, para uma conversa sobre os potenciais desfechos da guerra. Bartov é um historiador do Holocausto, considerado referência no debate a respeito dos genocídios e um crítico contumaz do atual governo de Israel.
Na entrevista, Bartov discute a caracterização dos crimes de guerra, dos crimes contra a humanidade, da limpeza étnica e do genocídio, explicando suas utilizações e os limites das definições.
Segundo ele, um genocídio se caracteriza por dois fatores: a existência da intenção de cometer o massacre, por meio de documentos ou declarações, e o direcionamento dos atos violentos contra um povo como um todo, com o intuito de destruí-lo.
Na avaliação de Bartov, é possível argumentar que o Hamas é uma organização genocida e que os ataques de 7 de outubro, além de incluírem crimes de guerra e contra a humanidade, foram uma ação genocida: o documento de fundação do grupo é antissemita, prega a destruição de Israel e a matança no mês passado foi generalizada. Os requisitos para a caracterização do Hamas e de suas ações como genocidas estariam postos, por este prisma.
Dorsey não entrou no mérito do que seria a natureza “anticolonial” da ação do Hamas no dia 7, como ela foi caracterizada por alguns analistas. Talvez por simplesmente não aceitar este como um argumento válido ou porque preferiu desviar de um debate que se tornou tóxico nos EUA. Lembrar que esse debate existe teria sido interessante do ponto vista intelectual, pois permitiria ouvir o que Bartov acha a respeito dele – Bartov é um dos vários pensadores que acusa Israel de subjugar a população palestina por meio de um sistema de apartheid.
Quanto ao caso de Israel, avalia Bartov, não há dúvidas de que autoridades israelenses fizeram declarações que indicam a intenção de cometer um genocídio (como destacado aqui em Tarkiz em 13 de outubro). O debate neste ponto, afirma ele, é mais cinzento, pois ao mesmo há declarações de autoridades israelenses no sentido contrário: o de que o alvo da ação militar seria apenas o braço armado do Hamas. Isso tornaria mais complicada a retratação da ação israelense como genocida
A eventual não caracterização do que está acontecendo na Faixa de Gaza como genocídio não implica em um cenário pouco grave. Ao contrário. Bartov afirma que há “evidências crescentes” de que Israel está cometendo crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Eles podem, a depender do andamento das coisas, configurar um genocídio.
Os crimes sexuais do Hamas
Desde 7 de outubro, políticos israelenses afirmam que, entre as atrocidades perpetradas pelo Hamas naquele dia, há inúmeros episódios de crimes sexuais. Tais denúncias encontraram pouco eco na mídia internacional, o que tem provocado indignação em Israel e críticas a entidades internacionais que não comentam o tema. Em parte, o problema deriva da dificuldade de provar tais crimes.
Reportagem do Haaretz do dia 22 explicou essa dificuldade. Imediatamente após os ataques, a prioridade das autoridades israelenses e dos voluntários que atuaram no local era identificar os corpos e entregá-los às famílias. A busca por evidências desses crimes não foi feita, portanto. Além disso, as cenas dos crimes eram zona de guerra, e a continuidade dos combates contaminou os locais.
Outro problema é que muitas das testemunhas se encontram em condições emocionais precárias. Reviver e relatar o que passaram ou testemunharam, portanto, é um processo doloroso e lento, como ocorre em casos de crimes sexuais em qualquer situação, em especial durante uma guerra.
Uma das entrevistadas do Haaretz é Cochav Elkayam-Levy, pesquisadora da Universidade Hebraica de Jerusalém. Ela é a presidente da Comissão Civil sobre os Crimes do Hamas de 7 de Outubro contra Mulheres e Crianças. Trata-se de uma iniciativa que busca coletar e dar visibilidade internacional à violência do Hamas contra esses grupos.
Imagens divulgadas pelo próprio Hamas e testemunhos imediatos de sobreviventes, voluntários e autoridades compõem o corpo de evidências com o qual o grupo de Elkayam-Levy está trabalhando. Os relatos são extremamente duros. No dia 12, a pesquisadora participou de um evento de organizações estudantis da Universidade Harvard e descreveu este material. O webinar pode ser revisto na íntegra abaixo.
Pausa humanitária
A paralisação de quatro dias no confronto começou nas primeiras horas desta sexta-feira 24, o que deve levar a uma sequência de libertações de reféns e prisioneiros. O acordo foi costurado graças à mediação do Egito e do Catar.
Se a pauta humanitária se mantiver pelo tempo planejado sem sobressaltos, os mais otimistas esperam que ela sirva como transição para um período ainda maior de paralisação, quem sabe levando a um cessar-fogo. Os próximos dias vão indicar se isso é possível.
Por enquanto, o governo israelense continua seu planejamento para retomar a ofensiva militar após os quatro dias. Segundo o Times of Israel, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, indicou que seriam necessários mais dois meses de operações para chegar ao objetivo definido pelo gabinete de guerra.
Esse objetivo não está claro para ninguém, e a brutalidade do que foi feito até aqui dá as piores indicações. Mas este é um assunto para os próximos dias.
Um Estado palestino é a solução?
Nasser Al Qudwa, sobrinho de Yasser Arafat, fala à Al Majalla como candidato à sucessão de Mahmoud Abbas no comando da Autoridade Palestina. Ele pede uma reconciliação entre o Fatah, partido que domina essas duas entidades, e o Hamas, salientando que é preciso que surjam “um novo Fatah” e um “novo Hamas”. Isso permitiria, segundo ele, a busca por um Estado palestino.
Tenho severas restrições ao trabalho do colunista do New York Times Thomas L. Friedman, mas recomendo sua conversa com Mansour Abbas (link aberto), palestino-israelense que lidera um partido árabe em Israel e tem se mostrado uma figura capacitada do ponto de vista moral e estratégico. Abbas critica a postura dos grupos pró-Palestina que parecem apenas instigar mais violência. “Essa conversa de ‘rio para o mar’ não ajuda”, disse Abbas. “[Quem defende essa posição está] cometendo um erro. Se quiserem ajudar os palestinos, então falem sobre uma solução de dois Estados e paz e segurança para todo o povo.”
Dramas entrelaçados
Importante reportagem do New York Times com depoimentos de mulheres da Faixa de Gaza que precisaram enfrentar a ofensiva israelense para dar à luz seus filhos. Segundo a ONU, há 50 mil grávidas na Faixa de Gaza.
Ao mesmo tempo, o jornal ouviu palestinos de Gaza que conseguiram deixar a região anteriormente e vivem hoje no exterior. Todos relatam o mesmo sentimento quando pensam nos familiares que ficaram para trás: culpa. “Cada vez que bebo água, sinto que gostaria de poder passar um copo para minha mãe”, diz Reem Alfranji, que hoje mora na Jordânia.