Por que Israel colocou a UNRWA no alvo?
O órgão da ONU responsável por cuidar dos refugiados é parte do debate sobre o chamado direito de retorno, tema central da questão Israel-Palestina
Neste texto publicado no sábado 27 a respeito da decisão da Corte Internacional de Justiça no caso África do Sul x Israel, destaquei que estava nas mãos de Israel e dos Estados Unidos a decisão a respeito de que tipo de mundo poderíamos ter: um no qual o direito internacional tivesse uma chance de ser um elemento nas disputas geopolíticas ou um no qual vale a lei do mais forte.
A resposta foi dada rapidamente por ambos os governos. Em conjunto, orquestraram uma campanha contra a UNRWA, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo. Apenas horas depois da decisão da CIJ, o governo israelense divulgou informações que já estavam sob sua posse a respeito do suposto envolvimento de 12 integrantes da UNRWA no massacre de 7/10.
As acusações são realmente gravíssimas, como mostra este apanhado geral publicado pela Folha de S.Paulo. Imediatamente após receberem as informações de Israel, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e o diretor da UNRWA, Philippe Lazzarini, reagiram afastando nove dos acusados (um morreu e os outros estão desaparecidos) e prometeram uma investigação. Este não é o primeiro escândalo envolvendo a entidade, que, de fato, precisa de melhorias para manter sua legitimidade.
Apesar da reação rápida de Guterres e Lazzarini, os principais aliados de Israel optaram por uma caminho drástico. A União Europeia e mais 16 países, EUA à frente, suspenderam os repasses à entidade, um considerável revés que retirou de uma vez cerca de 80% de seu financiamento.
A medida causou preocupação e indignação na liderança da ONU, de agências humanitárias e de governos contrários à decisão, como o da Noruega, por configurar mais uma punição coletiva aos palestinos. A UNRWA provê serviços básicos de saúde e educação em 58 campos de refugiados, oito deles na Faixa de Gaza, que passa por uma crise humanitária de enormes proporções, em que a fome se tornou uma realidade.
O impressionante é que, conforme afirmou o secretário de Estado dos EUA, a suspensão se deu sem que os países examinassem as informações fornecidas por Israel. “Não tivemos a capacidade de investigar [as alegações] nós mesmos. Mas elas são altamente críveis”, disse Anthony Blinken.
Mais um aspecto espantoso da decisão é que outras missões da ONU já foram afetadas por denúncias graves, mas a opção da comunidade internacional é, em geral, de exigir investigações e reformas, afinal não há substitutos para as Nações Unidas. Cabe destacar que as agências da ONU na Síria, por exemplo, acabaram por desenvolver ligações muito problemáticas com o regime de Bashar al-Assad, e nem por isso seu financiamento foi cortado.
Na prática, ao menos nesta semana, o que a campanha de Israel-EUA conseguiu foi tirar o foco do noticiário da decisão da CIJ e jogar sobre a UNRWA, enquadrada como uma extensão do Hamas que deve ser exterminada junto com o grupo.
Direito de retorno
O mais notável aspecto deste processo é o fato de que ele concretiza, ao menos de modo temporário, uma das prioridades da elite política israelense, que é encerrar as atividades da UNRWA. Este objetivo é antigo e vem sendo documentado pela imprensa e por acadêmicos há um bom tempo.
A UNRWA se insere em um aspecto que está no âmago da questão Israel-Palestina. O órgão começou a operar em 1950, pouco depois da guerra de 1948 que deu origem a Israel e que provocou o Nakba, a “catástrofe” palestina.
Naquele episódio, cerca de 750 mil pessoas, algo em torno de 80% de toda a população palestina, deixou a região, em um processo que envolveu fugas por medo da guerra, intimidação e expulsão deliberada por parte das forças judaicas. A grande maioria dessas pessoas rumou para as então criadas Faixa de Gaza e Cisjordânia e para o Líbano, a Síria e a Jordânia.
Neste contexto, a UNRWA foi criada para cuidar deste contingente populacional. Ela deveria ser extinta quando os refugiados palestinos fossem reassentados. A Resolução 194 na Assembleia Geral da ONU, adotada em dezembro de 1948, previa que “os refugiados que desejam regressar às suas casas e viver em paz com os seus vizinhos devem ser autorizados a fazê-lo o mais cedo possível”, mas isto nunca aconteceu.
Imediatamente após a guerra, o governo israelense estabeleceu como prioridade impedir que os palestinos retornassem. Mais de 400 vilas foram apagadas ou substituídas, as tentativas de retornar foram violentamente rechaçadas e, sobre um território que anteriormente era majoritariamente palestino, Israel foi erguido.
Com a não-resolução da questão dos refugiados, o mandato da UNRWA vem sendo estendido pela ONU a cada três anos (atualmente é válido até 2026). Uma boa parte dos 750 mil refugiados originais morreu, mas seus descendentes herdaram este status e hoje formam um contingente de cerca de 6 milhões de pessoas. Enquanto isso, a UNRWA, hoje com 30 mil funcionários, a maioria palestinos, se tornou uma instituição-chave na vida desta comunidade.
Muitos dos palestinos que deixaram suas casas em 1948 acreditavam que voltariam a elas após a guerra. Essa expectativa não se concretizou, mas se tornou intergeracional e continua viva na sociedade palestina, que tem entre seus mais importantes símbolos as chaves das antigas casas. Na política internacional, este pleito é conhecido como o “direito de retorno”.
Na visão de quase toda a elite política israelense, o direito de retorno continua a ser entendido, como era em 1948, como uma ameaça existencial, pois, se concretizado, removeria o caráter judaico de Israel. A UNRWA, deste modo, é entendida como responsável por “perpetuar a questão dos refugiados.”
Nas negociações de paz dos anos 1990, este tema foi tratado entre as partes, mas se provou um grande obstáculo. Uma fórmula apresentada envolvia a transformação do direito de retorno em um objetivo simbólico, que seria compensado financeiramente pelas grandes potências. Por conta do fracasso das negociações, porém, este modelo também parou de ser debatido.
Com o domínio da direita sobre a política israelense e a recente ascensão da extrema-direita, o governo de Israel tenta “resolver” a questão de forma unilateral, buscando a desmobilização da UNRWA. No governo Donald Trump, a visão israelense foi adotada pelos EUA e Washington parou de financiar a UNRWA.
Biden retomou os repasses, mas agora se igualou a Trump. Seu governo reconhece que o trabalho da UNRWA é indispensável, mas, apesar da urgência em meio ao desastre na Faixa de Gaza, não está claro que tipo de exigências a entidade precisa cumprir para voltar a ser financiada. Para muitos palestinos, a decisão dos países liderados pelos EUA representa uma declaração de guerra conjunta em nome de Israel.
Este é mais um aspecto a demonstrar, assim como os ataques do Hamas e a resposta israelense, que a questão Israel-Palestina dificilmente voltará a ter a mesma configuração que tinha até 6 de outubro de 2023.