Reflexões sobre a qualidade do debate Israel-Palestina
A polarização da política doméstica e a campanha de intimidação israelense são fatores explicativos para a baixa qualidade das discussões
O resumo do texto, em três pontos:
Há uma dificuldade de realizar debates informados sobre o conflito Israel-Palestina;
Três fatores explicam isso: a associação automática das posições com divisões direita-esquerda, a influência de setores radicais e a intensa campanha pró-Israel que acusa críticas ao país de antissemitismo;
Este cenário prejudica o entendimento da complexidade da questão, favorecendo o status quo defendido pelo governo de Benjamin Netanyahu.
Desde que comecei a acompanhar a política do Oriente Médio, cada onda de violência entre israelenses e palestinos é acompanhada por uma sensação fortemente negativa a respeito da qualidade do debate. É muito pequena a possibilidade de realizar discussões informadas sobre a questão Israel-Palestina. O foco do raciocínio aqui é o Brasil, mas uma lógica semelhante afeta outros países.
Em uma primeira análise, me parece que ao menos três fatores se interligam para degradar o ambiente. O primeiro é o fato de que, em geral, as divisões entre apoiadores de Israel e da causa palestina coincidem com as divisões direita-esquerda nos debates políticos domésticos. Isso tem origem no período da Guerra Fria.
A proximidade da União Soviética com os movimentos anticoloniais, a importância de setores esquerdistas entre as lideranças palestinas naquele período e o aprofundamento da conexão entre EUA e Israel legaram ao mundo pós-Guerra Fria um quadro no qual, comumente, pessoas de direita apoiam o lado israelense e pessoas de esquerda, os palestinos. A causa palestina, basicamente, é uma causa das esquerdas no mundo (o que é uma péssima indicação das possibilidades de um eventual sucesso).
Mais recentemente, com o avanço da extrema-direita e do nacionalismo cristão, e da consequente transformação das visões políticas em identidades, este quadro se aprofundou. Em 2019, por exemplo, um estudo da Folha de S.Paulo sobre o debate político no Twitter e a utilização de emojis mostrou que as bandeiras da Palestina e de Israel eram as que mais demarcavam as posições de esquerda e direita, respectivamente, nesta rede social.
O segundo fator é o sequestro da política, tanto em Israel quanto nos territórios palestinos ocupados, pelos setores mais radicais de suas sociedades. Esta é uma tendência verificada a partir do fracasso do processo de paz de Oslo (anos 1990), que desaguou na segunda intifada (2000-2005).
O Likud, partido dominante em Israel, e o Hamas obtiveram ali uma vitória conjunta contra as negociações, o que ajudou a torná-los proeminentes. A radicalização das posições e a retomada da violência como principal ferramenta política entre essas sociedades radicalizou também os debates longe do Oriente Médio.
Isso é especialmente verdade quando observamos as diásporas árabe e judaica. Árabes e judeus estão sendo brutalizados de modo sistemático e de diferentes maneiras. Neste cenário, a empatia com o “outro lado” se torna escassa e as teorias conspiratórias avançam.
Intimidação é fator decisivo
Um terceiro fator que torna problemáticas as discussões sobre Israel-Palestina é a intensa campanha de intimidação feita por pessoas poderosas e instituições pró-Israel. O lobby político e as campanhas de convencimento setorial – como o artístico, o jornalístico, a academia e o empresariado – são comuns em qualquer tema e feitas por diversos países e empresas, mas muitas vezes é possível ver uma tendência dos setores pró-Israel a difamar e, no limite, destruir os críticos das ações do país (para um exemplo estrangeiro recente, leia sobre o caso da jornalista Antoinette Lattouf, demitida da emissora ABC da Austrália).
A estratégia mais comum para isso é a acusação de que críticas a Israel ou ao sionismo, movimento nacional judeu que deu origem a Israel, são equivalentes a antissemitismo. Há certos casos em que isso de fato ocorre, afinal o antissemitismo ainda é pervasivo em várias sociedades, inclusive na brasileira. No sábado 20, tivemos um exemplo disso quando o ex-deputado José Genoino (PT) sugeriu a realização de um boicote contra “empresas de judeus”.
Em muitos outros casos, porém, a acusação de antissemitismo é feita de forma leviana ou simplesmente desonesta. Em 17 de janeiro, Krishnan Guru-Murthy, principal âncora do britânico Channel 4, recebeu Eylon Levy, porta-voz do governo israelense que tem aparecido com frequência na imprensa local.
Ao dizer a Levy que a violência entre israelenses e palestinos “não começou no 7 de outubro”, Guru-Murthy foi ameaçado por Levy: “Eu seria muito cauteloso ao tentar de alguma forma contextualizar as atrocidades de 7 de outubro”, afirmou.
Levy estava ecoando as acusações feitas pelo ministro das Relações Exteriores de Israel e pelo embaixador do país na ONU ao secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres. Em outubro, quando disse que o ataque do dia 7 não ocorreu “em um vácuo”, Guterres foi acusado de justificar o assassinato de judeus.
Se os representantes de Israel ameaçam autoridades e jornalistas ao vivo e em público com a insinuação de antissemitismo, não é difícil imaginar o que acontece nos bastidores.
O efeito deste clima é palpável em muitos círculos, como a imprensa ou a academia, fazendo com que diversas pessoas tenham receio de opinar, compartilhar ideias, propor pautas ou mesmo de fazer determinadas colocações, por medo de serem taxadas de antissemitas. Nas redações da grande imprensa brasileira, por exemplo, vigora uma regra não-escrita: você só critica Israel se criticar ao mesmo tempo as lideranças palestinas.
O resultado é um debate público sempre polarizado e superficial, incapaz de educar a sociedade a respeito da história e da atualidade da questão Israel-Palestina.
Importante dizer, este é um cenário que favorece o grupo político liderado por Benjamin Netanyahu, dedicado a manter o status quo de forma indefinida e impedir a qualquer custo o estabelecimento de um Estado palestino.
Assim, contextualizar o 7 de outubro se tornou uma espécie de crime antissemita aos olhos do governo israelense e de seus apoiadores porque impede discussões a respeito da ocupação da Faixa de Gaza e de seus efeitos.
Do mesmo modo, a obrigação de sempre criticar os dois lados favorece Israel no momento atual, em que seu governo deliberadamente cria na Faixa de Gaza um desastre humanitário enquanto acumula crimes de guerra.
O apoio do Brasil à África do Sul
Esta busca por neutralizar as críticas a Israel ficou evidente na discussão sobre o apoio do Brasil à ação da África do Sul na Corte Internacional de Justiça que acusa o governo isrelense de genocídio. Na sexta-feira 19, um grupo de empresários e personalidades pró-Israel publicou um abaixo-assinado no qual clama para que o Brasil tenha uma “posição justa e equilibrada” no conflito.
No sábado 20, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, publicou na Folha de S.Paulo um artigo no qual defende a posição brasileira. Vieira expôs o óbvio: o principal motivo para o apoio do Brasil são as manifestações, feitas com “veemência inédita”, por organizações internacionais, peritos independentes e agências humanitárias competentes a respeito da possibilidade “de graves violações ao direito internacional em Gaza, inclusive à Convenção de Genocídio”.
Como sabe quem acompanha O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz, essas manifestações são contínuas, cada vez mais preocupantes, e seguem ignoradas pelas principais potências mundiais. O que consistiria ter uma “posição justa e equilibrada” diante de uma carnificina como a cometida por Israel?
No mesmo artigo, Vieira também contestou a acusação, feita por Israel, de que a ação consistia um libelo antissemita. “Tentar caracterizar a ação movida pela África do Sul como manifestação de antissemitismo é forma desafortunada de tentar mudar de assunto.”
André Lajst e o Grupo Globo
No sábado 20, o jornalista americano Glenn Greenwald publicou um artigo na Folha de S.Paulo com diversas críticas a um resumo dos 100 dias da guerra levado ao ar pelo Fantástico, da TV Globo, no dia 14. Eu não havia visto a reportagem e cheguei até ela por conta deste texto. De fato, ela foi editada de uma forma que a torna uma peça de propaganda pró-Israel.
Há erros de informação e afirmações que avançam argumentações do governo israelense, além de uma significativa discrepância em favor de Israel no peso dado ao drama das vítimas de lado a lado, apesar de o número de palestinos mortos ser 20 vezes maior. Em uma decisão altamente problemática, a ação por genocídio iniciada pela África do Sul é apresentada apenas com o ponto de vista israelense.
Greenwald destaca como ponto mais grave da reportagem o fato de um conhecido propagandista de Israel, André Lajst, ter sido apresentado apenas como “especialista em Oriente Médio”, dando a entender que se tratava de uma fonte independente. O espectador, destaca Greenwald, “sai da experiência convencido de que foi visitado por um sujeito que pode falar, com mediação e equilíbrio”, sobre a conjuntura.
Lajst, que é cidadão israelense e serviu à Força Aérea do país, é presidente-executivo do capítulo brasileiro da Stand With Us, uma entidade movida “pelo amor a Israel” e pelo “compromisso de defender Israel”. Seu papel é, de algum modo, equivalente ao de Eylon Levy no Reino Unido – quase toda a argumentação de Levy e Lajst parece saída da mesma fonte.
No domingo 21, Lajst publicou no jornal O Globo um artigo com a “visão israelense” do conflito e, ao menos na versão online, também não aparece identificado.
O texto de Lajst foi publicado em paralelo a um outro, de autoria de Zeina Latif, que traz a “visão palestina” da guerra. Filha de pai palestino, Latif é uma economista proeminente, com passagens por importantes instituições financeiras e muitos textos publicados em grandes jornais. Ela é, portanto, dona de uma visão econômica compartilhada pelos bancos e pela imprensa, o que torna razoável supor que seu perfil lhe permitiu a rara possibilidade de descrever na grande imprensa os inúmeros abusos cometidos por Israel na Faixa de Gaza.
A publicação do texto de Latif acompanhado pelo texto de Lajst é exemplo evidente da regra não-escrita citada acima. O que não fica claro, porém, é o que motiva a proeminência de Lajst dentro do Grupo Globo.
Há no Brasil muitos especialistas sobre a questão Israel-Palestina que poderiam esclarecer a visão da sociedade israelense, bem como dar a ela nuances importantes, mencionando, por exemplo, as severas críticas de determinados setores ao atual governo e à atuação das forças armadas locais. Qual é a vantagem para o jornal, e para seu leitor, em publicar especificamente a visão do governo de Israel?
Estamos a uma longuíssima distância de uma solução política para o conflito, que fica maior à medida que os debates domésticos também não conseguem avançar.