O Filtro do Oriente Médio (12/1/24) - A regionalização avança e Israel enfrenta ação por genocídio
Em 2024, os EUA realizaram ataques contra os territórios do Iraque e do Iêmen, sinal de que o cenário político continua se deteriorando
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
Mundos paralelos
Há 15 anos, quando eu atuava como repórter do site da revista Época, fiz uma entrevista a respeito da sociedade israelense que me marcou. O entrevistado era Avraham Burg, um importante ativista pela paz no país, dono de um argumento poderoso, que foi resumido no título da entrevista: “Israel tem de superar o trauma do Holocausto”, argumentava ele.
Segundo Burg, as memórias do Holocausto legaram à sociedade israelense uma “mentalidade de cerco”, em que todas as ameaças são retratadas como existenciais e que ajuda a explicar a opção da liderança política do país pela guerra, feita sistematicamente nas últimas décadas. “Quando você escuta a retórica política, as argumentações, a estratégia nacional, os medos das pessoas, os problemas existenciais, ele está lá. Tudo vai em direção, começa ou termina com o Holocausto”, afirmou Burg na ocasião.
Infelizmente, eu nunca tive a oportunidade de visitar Israel para tirar minhas próprias conclusões a respeito do que ele disse. Como pesquisador do Oriente Médio, porém, tentei compensar isso lendo inúmeros livros, acompanhando diversos debates e o noticiário interno sobre Israel e cursando, na pós-graduação, disciplinas sobre a sociedade e a política israelenses.
Foi possível ver que há muitos especialistas, israelenses e estrangeiros, que concordam total ou parcialmente com Burg, ainda que construam seu argumento sem utilizar a analogia com o Holocausto, muito delicada para um não-judeu.
É fácil, também, ver como a “mentalidade de cerco” continua a vigorar nos debates internos em Israel, em setores da diáspora judaica e nos círculos de apoiadores não-judeus. “Os judeus sempre são as vítimas”, ouviu uma amiga recentemente em um debate familiar.
A permanência desta mentalidade é, me parece, um elemento central da enorme clivagem surgida desde o 7/10 entre o debate em Israel e o debate fora de Israel. É como se fossem dois mundos mentais paralelos.
No primeiro, Israel está se defendendo dos horrores perpetrados pelo Hamas. No outro, o governo israelense, comandado por fanáticos, aproveita-se dos horrores perpetrados pelo Hamas para continuar a impedir o surgimento de um Estado palestino por meio do assassinato sistemático de civis.
O maior símbolo desta clivagem é o julgamento da ação aberta pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça, o mais antigo e importante órgão judiciário da ONU, que acusa Israel de genocídio. Na quinta-feira 10 e nesta sexta-feira 11, os magistrados ouviram a acusação e a defesa. A íntegra do documento original sul-africano está aqui.
O julgamento traz algum alívio, ao menos no campo moral, a quem vive no segundo cenário exposto acima (que é o meu caso, se ainda não ficou claro). Pela primeira vez em décadas, algum órgão internacional poder fazer algo, mesmo que simbolicamente, para impedir a continuidade da limpeza étnica contra os palestinos iniciada em 1948.
Para boa parte da sociedade israelense, no entanto, a acusação liderada pela África do Sul é incompreensível. Na quarta-feira 10, no Haaretz, Dahlia Scheindlin escreveu um texto importante a respeito disso.
Scheindlin relembra os genocídios em Ruanda e na Bósnia e destaca o que é evidente: a resposta à violência, por mais cruel que tenham sidos os ataques do Hamas, também pode ser intolerável à luz das leis internacionais e da decência humana. “Mas a insistência de que nosso lado é único, unicamemente vitimizado, torna difícil ver isso”, diz ela, ecoando Burg.
Há algumas semanas, no Twitter, um político brasileiro criticou a opção de Netanyahu pela guerra. Uma acadêmica com uma postura favorável a Israel ironizou o comentário. Ao responder e ponderar que o argumento do político tinha sentido, recebi como resposta um ataque pessoal que procurava me desqualificar.
É compreensível. Foi provavelmente um impulso desta “mentalidade de cerco”, que acabou reforçada após os massacres do 7/10, tornando muitos impermeáveis a argumentos e mesmo a fatos. Este desfecho era um dos objetivos do Hamas, que compartilha com a direita israelense a rejeição a um acordo político.
Em pouco mais de três meses, Israel matou 23 mil palestinos, sendo 70% mulheres e crianças, enquanto políticos falam abertamente em extermínio e limpeza étnica e soldados acumulam ações desumanas, que são filmadas e divulgadas nas redes sociais. A fome se alastra pela Faixa de Gaza, onde as organizações humanitárias atuam com enorme dificuldade. Enquanto isso, a Cisjordânia é abertamente colonizada, com assentados cometendo crimes à luz do dia enquanto as forças de ocupação israelense nada fazem. Como alguém pode, em sã consciência, achar este cenário aceitável ou tolerável?
Scheindlin, Burg (que ainda sonha com a paz, como escreveu em novembro passado na revista Prospect) e muitos outros israelenses que têm se manifestado a favor de um cessar-fogo imediato não acham isso normal. Apesar do sofrimento imposto pelo Hamas, conseguem ver o episódio dentro de seu contexto e entender que não há solução militar para a questão Israel-Palestina.
O problema é que a posição representada por eles é minoritária na sociedade israelense e, pior, não mais encontra eco nas elites políticas. Isso é resultado de uma série de fatores, entre eles a atuação de Benjamin Netanyahu. Político camaleônico, Netanyahu, em sua mais recente faceta, serviu de conduíte para que fascistas e supremacistas judeus chegassem ao poder.
A ação sul-africana é um evento grave para Israel, como destacou Jeremy Sharon no Times of Israel na quarta-feira 10. Falta saber se ela pode servir para desmobilizar a sensação de cerco experimentada por muitos israelenses e judeus da diáspora. Sem que isso ocorra, dificilmente uma solução política, seja ela de dois Estados ou de um Estado, terá alguma chance.
A guerra já é regional?
Nesta sexta-feira 12, forças aéreas e navais dos Estados Unidos e do Reino Unido atacaram 12 alvos no Iêmen. Eram instalações utilizadas pelo Ansar Allah, movimento político religioso conhecido como Houthis.
Desde 2015, os Houthis combatem a Arábia Saudita e, por conta disso, passaram a receber significativo apoio do regime iraniano. O conflito, patrocinado por Washington e Londres, principais fornecedores de armas da Arábia Saudita, criou um cenário desastroso no Iêmen, o mais pobre dos países árabes.
A guerra arrefeceu recentemente e há um processo de paz em curso, mas os Houthis emergiram como uma força militar considerável graças ao apoio iraniano.
Desde o 7/10, o movimento iemenita passou a utilizar sua nova capacidade militar em retaliação contra Israel e os interesses dos EUA, demonstrando um alinhamento com a política externa iraniana. Nesses três meses, foram 26 ataques no Mar Vermelho, o que vêm provocando grande instabilidade no comércio mundial.
O mais grave deles ocorreu na quarta-feira 10. Como detalhou a Associated Press, os Houthis lançaram drones e mísseis antinavio de cruzeiro e balísticos, cujos alvos eram embarcações militares norte-americanas e britânicas. Os ataques não geraram danos pois foram abatidos, mas colocaram as forças ocidentais em uma posição que as obrigava a responder, o que ocorreu nesta sexta-feira.
Este cenário era esperado. Muitos analistas destacaram que o apoio norte-americano a Israel, além de colocar Washington contra as leis internacionais, contrariava os interesses securitários do país ao expor seus militares a forças hostis e facilitaria a expansão do conflito.
No comunicado oficial divulgado após os ataques, a Casa Branca nem mesmo citou Israel ou a Faixa de Gaza. Tentou retratar a operação como uma dedicada a proteger a “liberdade de navegação.” A estratégia é pueril. Não foi comprada nem mesmo por aliados.
O Ministério das Relações Exteriores de Omã, importante parceiro dos EUA e do Reino Unido, afirmou que acompanhava “com grande preocupação a ação militar de países amigos, enquanto Israel continuava a sua guerra brutal e o cerco à Faixa de Gaza sem responsabilização ou punição.” No Bahrein, que faz parte de uma coalizão liderada pelos EUA para “proteger” o Mar Vermelho dos Houthis, houve protestos contra o governo, informou o New York Times.
A arrogância ocidental e o potencial desastroso de suas ações para os povos do Oriente Médio são cristalinos na região, mas parecem incompreensíveis em Washington, Londres e outras capitais do Atlântico Norte.
A partir de agora, a tensão entre EUA e os Houthis se junta com a instabilidade na fronteira entre Israel e o Líbano como grandes pontos a serem observados. O Oriente Médio segue caminhando rumo à beira do precipício.
Mais uma vitória para o Irã no Iraque
A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, é um ponto de inflexão na história moderna do Oriente Médio. Ela inaugurou a atual dinâmica securitária da região, em que temos, a grosso modo, dois blocos de países, um alinhado a Washington e outro alinhado ao Irã.
Este desenho tem como origem o temor, por parte do regime iraniano, de que seria o próximo alvo dos Estados Unidos após as mudanças de regime forçadas sobre seus vizinhos – o Afeganistão e o Iraque. A partir dali, Teerã procurou criar capacidade de retaliação contra os interesses e os aliados regionais dos EUA, e conseguiu. O chamado “eixo da resistência” é a concretização disso.
No caso particular do Iraque, o regime iraniano trabalhou para evitar que o país se tornasse uma plataforma de ataque contra si. Não apenas teve sucesso como passou a exercer muita influência em Bagdá. Ao longo dos últimos 20 anos, foram várias as vitórias estratégicas sobre os EUA e a mais recente delas começa a se concretizar por conta da guerra na Faixa de Gaza.
Na quarta-feira 10, Mohammed Shia al-Sudani, primeiro-ministro do Iraque, confirmou à agência Reuters que vai atuar para que as tropas norte-americanas remanescentes no país sejam retiradas. Segundo ele, não há prazo para isso ocorrer, mas o desfecho deve ser “rápido”.
A confirmação se dá apenas dias depois de os EUA assassinarem, em Bagdá, o líder de uma das várias milícias iraquianas pró-Irã. O assassinato foi uma resposta aos mais de 100 ataques realizados por grupos como esses, com foguetes e drones, contra tropas estadunidenses estacionadas no Iraque e na Síria, desde o início das hostilidades entre Israel e o Hamas.
O ataque, que viola a soberania iraquiana, reforçou a pressão contra a presença dos soldados americanos, legitimando uma das principais pautas dos movimentos políticos alinhados ao Irã. A eventual saída do Iraque, segundo a Reuters, deve ensejar a retirada do contingente norte-americano também da Síria.
Se a remoção total finalmente se confirmar, representará uma derrota estratégica significativa para os EUA e a concretização de uma campanha de duas décadas por parte do Irã.