O Filtro do Oriente Médio (22/12/23) - A fome em Gaza e os significados do Holocausto
A operação de Israel contra o território palestino é uma das mais intensas campanhas de punição civil da história, segundo especialistas
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
Masha Gessen, guetos e a Faixa de Gaza
Em 9 de dezembro, a escritora e ativista russo-americana Masha Gessen publicou um potente ensaio na revista New Yorker, intitulado “In the shadow of the Holocaust” (Na sombra do Holocausto). O texto teve sucesso imediato, mas ao longo dos dias sofreu uma saraivada de críticas.
Uma boa parte do artigo é dedicada à forma como a Alemanha tem lidado no âmbito doméstico com a guerra na Faixa de Gaza. Nos últimos anos, conta a autora, o governo alemão promoveu uma fusão entre as críticas a Israel e o antissemitismo, cerceando o debate não apenas sobre a questão palestina, mas também sobre o Holocausto.
Gessen relata que condenações às políticas israelenses são tratadas em patamar de igualdade ao de crimes violentos como ataques a sinagogas ou tentativas de assassinato. Isso criou uma grande dificuldade para manifestar solidariedade aos palestinos no momento atual.
As críticas se concentraram, porém, no fato de que a autora comparou a Faixa de Gaza a um gueto como os criados por nazistas na Europa Oriental para os judeus. A comparação foi duplamente impactante porque Gessen é judia e alguns de seus parentes passaram pelos guetos antes da morte.
A reação a seu texto provou que a autora estava no caminho certo ao mencionar os problemas de liberdade de expressão na Alemanha com relação a este tema. Após a publicação do ensaio, patrocinadores e a prefeitura de Bremen retiraram seu apoio ao Prêmio Hannah Arendt, com o qual Gessen seria agraciada.
O cancelamento foi simbólico a respeito dos tempos atuais. Arendt, como Gessen destaca em seu artigo, era uma pensadora judia, crítica do principal partido da direita israelense, o qual ela comparava aos partidos nazi-fascistas, e se notabilizou justamente por seus escritos sobre o totalitarismo. Arendt foi apenas uma entre inúmeros intelectuais judeus que, ao longo das últimas décadas, se dedicaram a alertar a humanidade a respeito dos riscos de repetição de cenários semelhantes aos do Holocausto, ainda que em proporções diferentes.
Na segunda-feira 18, a Fundação Heinrich Böll, que organiza o prêmio, acabou realizando uma cerimônia discreta para premiar Gessen. E a autora dobrou sua aposta. Ela afirmou que “a maior diferença entre Gaza e os guetos judeus na Europa ocupada pelos nazistas é que (…) a maioria dos habitantes de Gaza ainda está viva e o mundo ainda tem a oportunidade de fazer algo a respeito.”
O discurso de Gessen pode ser lido no site do Die Zeit e a íntegra de seus comentários, no vídeo abaixo:
Por que essa discussão importa?
O debate na Alemanha é importante por conta da influência que o país exerce internacionalmente e porque em muitos lugares do mundo há pessoas que temem criticar Israel para não serem acusadas de antissemitismo. Esta discussão precisa ser feita, portanto, porque o antissemitismo é real, mas as atrocidades cometidas pelo governo de Israel também.
No caso específico alemão, é preocupante que determinados temas sejam tratados como controversos, como por exemplo a conexão existente entre o genocídio dos povos Herero e Nama, no início do século 20, e o Holocausto.
Aquele genocídio, ocorrido entre 1902 e 1904, foi conduzido pelo Império Alemão no território da atual Namíbia, que na época era uma colônia alemã. Este é um dos eventos que fez diversos pensadores, ao longo das últimas décadas, conectarem a empreitada colonial europeia à emergência do fascismo e do nazismo.
Intelectuais como Michel Foucault, Hannah Arendt, Aimé Césaire e Achille Mbembe argumentam, cada um a seu modo, que as tecnologias de extermínio utilizadas na Segunda Guerra Mundial foram aperfeiçoadas na colonização. Esta, por sua vez, só foi possível por conta da ideologia supremacista branca que marca a construção ideológica da Europa. Em outras palavras: não havia outro continente em que poderia surgir um Adolf Hitler. Ele e o Holocausto são a epítome da história moderna europeia.
Segundo Masha Gessen, dois anos atrás, a atriz Candice Breitz e o professor Michael Rothberg perderam o financiamento para um evento sobre o Holocausto na Alemanha porque um dos painéis fazia essa conexão entre os Herero e os Nama e o Holocausto. “Algumas das técnicas da Shoah foram desenvolvidas naquela época”, disse Breitz usando o termo em hebraico para o extermínio de judeus. “Mas não é permitido falar sobre o colonialismo alemão e Shoah ao mesmo tempo porque é um ‘nivelamento’”.
Apesar deste tabu na Alemanha, a conexão entre a ideologia supremacista, o colonialismo e o Holocausto é feita até na cultura popular. Essa é a tese central da minissérie “Exterminate All the Brutes” (Exterminem todos os brutos), que pode ser acompanhada na HBO (veja o comentário de Raoul Peck abaixo).
Tal conexão não minimiza o Holocausto. Ao contrário, ele continua a ser exemplo destacado de quão baixo o ser humano pode descer. Ao mesmo tempo, é exemplo do ponto final de um caminho que mesmo sociedades “normais” e pessoas “comuns” podem trilhar em determinadas condições.
Observar os sinais do passado, assim, permite que estejamos alertas a respeito da (re)emergência do fascismo e também de práticas potencialmente genocidas. É por conta disso que o mundo deve, ou deveria, estar alerta.
O tamanho da devastação
Na quinta-feira 21, a Associated Press publicou uma reportagem na qual ouviu especialistas para comparar o cenário atual a outros paradigmáticos. De acordo com eles, a campanha israelense é mais devastadora que a organizada pela Rússia contra Aleppo, esta com apoio dos regimes do Irã e da Síria, entre 2012 e 2016, e contra Mariupol, em 2022.
No norte da Faixa de Gaza, mais de dois terços das edificações foram destruídas ou danificadas. Ao redor de Khan Younis, segunda maior cidade da região, o índice é de 25%. “Gaza tem agora uma cor diferente [vista] do espaço. É uma textura diferente”, afirmou Corey Scher, que examina imagens feitas por satélite.
Proporcionalmente, a campanha também é mais devastadora que a infligida pelos aliados à Alemanha na Segunda Guerra. “Gaza é uma das campanhas de punição civil mais intensas da história”, disse o historiador Robert Pape à AP. “Agora está confortavelmente no quartil superior das campanhas de bombardeio mais devastadoras de todos os tempos.”
Fome usada como arma?
Quem acompanha Tarkiz, está ciente de que há sobre a elite política israelense uma série de acusações de crimes de guerra e contra a humanidade. Mas a feita pela Human Rights Watch na segunda-feira 18 é de um outro nível.
Segundo a ONG, Israel está deliberadamente usando a fome como arma contra a população civil de Gaza. A acusação tem como base as múltiplas declarações de autoridades israelenses, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, que falaram expressamente em privar a população da Faixa de Gaza de comida e água.
Agora, o cenário ventilado pelas lideranças está se concretizando, diz a HRW. A ajuda humanitária, que já existe e está nas fronteiras da Faixa de Gaza, entra na região de forma extremamente lenta e insuficiente para atender uma população que vive há 56 anos sob ocupação, 16 deles de cerco total.
Na quarta-feira 20, o Programa Mundial Alimentar (WFP), ligado à ONU, informou que metade da população de Gaza passa fome, com nove em cada dez palestinos fazendo menos de uma refeição por dia. Das 25 padarias da Faixa de Gaza que cooperavam com o WFP, 24 foram destruídas. O dono de uma fábrica de laticínios parceira do programa foi morto por um bombardeio israelense, junto com a família.
“Estes não são apenas números – há crianças, mulheres e homens por trás destas estatísticas alarmantes”, disse na quinta-feira 21 o economista-chefe do WFP, Arif Husain. “A complexidade, magnitude e velocidade com que esta crise se desenrolou não têm precedentes.”
O governo de Israel, por sua vez, acusa a ONU de incompetência e atribui à entidade a demora na entrada dos suprimentos. “Hoje é possível fornecer três vezes mais ajuda humanitária a Gaza se a ONU – em vez de reclamar o dia todo – fizesse o seu trabalho”, disse o presidente do país, Isaac Herzog, segundo o Times of Israel.
Investigações jornalísticas também implicam Israel em potenciais crimes
Reportagens publicadas nesta semana pelo Washington Post e pelo New York Times colocam sob foco as práticas das forças israelenses na Faixa de Gaza. E reforçam o diagnóstico de que a campanha militar é sublinhada por violações da legislação internacional.
Na quinta-feira 21, o Post mostrou que as evidências apresentadas pelos militares de Israel não comprovam a alegação de que o hospital Al-Shifa, na cidade de Gaza, estava sendo utilizado como base de operações do Hamas. A instalação foi sitiada e atacada por Israel.
Hospitais são protegidos pela lei internacional e só podem se tornar alvo em situações muito específicas, em que representam uma ameaça direta. Como as evidências não sustentam as alegações israelenses, a legalidade e a proporcionalidade da ação contra o hospital estão sob suspeita.
A investigação do Times é igualmente grave. Segundo o jornal, “durante as primeiras seis semanas da guerra em Gaza, Israel usou rotineiramente uma das suas maiores e mais destrutivas bombas em áreas que designou como seguras para civis.” Em resposta ao jornal, os militares israelenses afirmaram que “questões deste tipo serão analisadas numa fase posterior” e que tomam “precauções viáveis para mitigar os danos civis.”
Governo israelense não quer acordo político
Como escrevi neste texto de 5 de dezembro, o objetivo primário de política externa de Benjamin Netanyahu é impedir a criação de um Estado palestino. Esta sempre foi sua intenção, mas o cenário começou a ficar mais claro em 2015, quando ele conseguiu formar uma coalizão que compartilhava seu objetivo.
Desde então, os atos e as declarações da classe política israelense se tornaram mais transparentes. Atualmente, os níveis de sinceridade estão em seu ápice, o que é bom, pois permite que análises mais acuradas sejam feitas.
Na semana passada, Tzipi Hotovely, embaixadora de Israel em Londres, foi clara em uma entrevista à Sky News a respeito da posição de seu governo, contrária à solução de dois Estados. Hotovely é uma conhecida extremista, que pelo menos desde 2013 defende a anexação da Cisjordânia a Israel.
No sábado 16, o próprio Netanyahu fez questão de deixar as coisas evidentes. Em um comentário direcionado a sua base de direita e extrema-direita, o premiê israelense disse estar “orgulhoso por ter impedido o estabelecimento de um Estado palestino”, como relatou o Times of Israel.
Morte de reféns é consequência de brutalidade sem restrição
O assassinato de três reféns, na sexta-feira 15, foi mais um episódio a expor, tragicamente, os abusos cometidos pelas forças de Israel na Faixa de Gaza.
Como contou a BBC, os israelenses Yotam Haim, Samer Talalka e Alon Shamriz conseguiram o que parecia impossível: escaparam do Hamas, chegaram até a linha de frente e, desarmados e com uma bandeira branca, encontraram soldados israelenses. Foram mortos a tiros na mesma hora.
A notícia chocou muitas pessoas dentro e fora de Israel, mas só surpreendeu quem não acompanha a questão Israel-Palestina. Atirar em pessoas desarmadas não é uma prática exatamente incomum das forças israelenses.
“É comovente, mas não é surpreendente”, disse Roy Yellin, diretor da ONG israelense B’Tselem à Associated Press. “Documentamos ao longo dos anos inúmeros incidentes de pessoas que claramente se renderam e que ainda assim foram baleadas.” O que mudou desta vez foi a nacionalidade das vítimas.
No dia seguinte às mortes dos reféns, o Patriarcado Latino de Jerusalém divulgou uma nota oficial denunciando o assassinato de duas mulheres cristãs dentro de uma paróquia em Gaza, onde não há combatentes. Segundo a entidade, um atirador de elite israelense foi o responsável pelo crime. Outras sete pessoas ficaram feridas.
O balanço do massacre do 7/10
Uma apuração da AFP revelou dados oficiais da agência de seguro social de Israel que mostram que o ataque realizado pelo Hamas em 7 de outubro deixou 1.139 pessoas mortas. Foram 695 civis israelenses, 373 integrantes de variadas forças de segurança e 71 estrangeiros. Os números são consistentes com os que o Haaretz vem computando desde então.
Vale relembrar que, entre o ano 2000 e 5 de outubro de 2023, o número de civis israelenses mortos em conflitos diversos com palestinos era de 881 pessoas (segundo levantamento da ONG B’Tselem). Isso ajuda a explicar o tamanho do impacto que o massacre teve em Israel.
Os números reafirmam as atrocidades cometidas pelo Hamas. Entre os civis mortos, estão 36 crianças. No kibbutz Nir Oz, uma família inteira, com três crianças entre 2 e 6 anos, foi morta. No kibbutz Beeri, uma bebê de 10 anos foi assassinada a tiros. O mesmo destino tiveram dois garotos, de 5 e 8 anos, mortos junto com a família dentro de um carro.
Outros assuntos importantes
O Kuwait tem um novo emir. O Washington Institute for Near East Policy traz uma interessante análise sobre a mudança.
Como esperado, Abdel Fattah al-Sissi foi reeleito presidente do Egito, com 89,6% dos votos, como contou o Mada Masr na terça-feira 19. Em outubro, publiquei uma análise sobre o quadro político egípcio que continua válida.
O confronto entre forças de segurança da Jordânia e traficantes baseados na Síria teve, na segunda-feira 18, um de seus episódios mais relevantes, que envolveu troca de tiros na fronteira e um ataque aéreo dentro do território sírio. Foram apreendidos quase 5 milhões de pílulas de captagon, uma poderosa droga que tem sido consumida em larga escala no Oriente Médio. Também foram apreendidas armas, que conectam os traficantes ao regime Bashar al-Assad e ao regime do Irã.