"Renda-se ou morra de fome": a nova fase do extermínio em Gaza está em vigor
O arquiteto do projeto é o general israelense Giora Eiland, um "centrista" bem-articulado que defende táticas genocidas há pelo menos dez anos
Em 16 de outubro, as forças armadas de Israel anunciaram a entrada de 50 caminhões com suprimentos na região norte da Faixa de Gaza. A liberação do comboio se deu após manifestações de integrantes do governo dos EUA, como a vice-presidente e candidata Kamala Harris e os secretários de Estado e Defesa, Anthony Blinken e Lloyd Austin. Os três indicaram que Israel estaria violando leis humanitárias.
No mesmo dia, a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, disse ao Conselho de Segurança da entidade que seu governo está monitorando as ações de Israel para que o país não aplique uma "política de fome" no norte da Faixa de Gaza, o que seria "horrível e inaceitável”.
Moral e politicamente, os EUA são corresponsáveis por todas as ações de Israel desde o 7 de Outubro. Inclusive por usar a forme como arma de guerra ao longo dos últimos meses, o que está fartamente documentado. Parece impossível que a Corte Internacional de Justiça não condene Israel por genocídio quando chegar a hora do veredito.
Ainda assim, a ação orquestrada da cúpula governamental norte-americana nesta semana chama atenção. Evidentemente, ela é motivada pela proximidade das eleições para a Casa Branca – Harris não deseja que a reta final de sua disputa com Trump seja marcada por mais ações escandalosas de Israel.
Ao mesmo tempo, a “pressão” sobre Israel ocorre também porque está claro que o governo israelense colocou em prática um projeto atroz.
Desde 1º de outubro, a região norte da Faixa de Gaza está sob um forte cerco. Os corredores de ajuda humanitária nas cercanias de Erez foram fechados e a passagem de suprimentos a partir do sul foi bloqueada (veja mapa abaixo).
Nos dias 7, 10 e 12 de outubro, as forças armadas israelenses emitiram comunicados solicitando a evacuação da área com o argumento de que estão “operando com grande força” e “continuarão a fazê-lo por muito tempo”. O núcleo das operações é o campo de refugiados de Jabalia, um dos mais importantes da região. Há novos relatos de fome, falta de água e medicamentos na região.
Ao mesmo tempo em que ordenou a evacuação, Israel renovou os bombardeios no norte de Gaza. Mais uma vez, eles estão sendo realizados de forma incessante. No dia 14, o escritório do Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos disse avaliar que “o exército israelense parece estar isolando completamente o norte de Gaza do resto da Faixa de Gaza e conduzindo as hostilidades com total desrespeito às vidas e à segurança dos civis palestinos”.
O documento informa, ainda, que soldados israelenses posicionados em montes de areia e bloqueios erguidos em um cruzamento crítico entre o norte de Gaza e a cidade de Gaza estariam atacando aqueles que tentavam fugir. A rede Al-Jazeera e a ONG Médicos sem Fronteiras confirmaram os mesmos relatos.
“Fomos atingidos pelo ar e pelo solo, sem parar, durante uma semana. Eles querem que a gente saia, querem nos punir por nos recusarmos a deixar nossas casas”, disse Marwa, de 26 anos, à agência Reuters no dia 14. Ela foi uma das que conseguiu escapar do cerco, sorte que outros palestinos não tiveram.
“Minha esposa precisa de uma cadeira de rodas; é muito difícil para ela se mover, e ela está doente. As pessoas estão morrendo de fome; não há comida, nem água potável. Tenho medo de ficar, e tenho medo de [sair]. Todo lugar no norte está sujeito a esses perigos; todo lugar está em risco”, disse Haydar, um motorista da Médicos Sem Fronteira ao site da organização.
Deixar a região norte de Gaza, além disso, não é sinônimo de segurança. Nos comunicados de evacuação, Israel aponta como “zona segura” uma área perto de Rafah conhecida como Al-Mawasi. No dia 10 de outubro, dezenas de pessoas foram mortas ali após a força aérea israelense despejar três bombas norte-americanas, de 900 quilos cada uma, sobre um acampamento de tendas.
A tática israelense envolve ou pode envolver uma série de práticas que consistem crimes de guerra e contra a humanidade: ataques indiscriminados, ataques deliberados contra civis, extermínio, execução, uso da fome como arma de guerra, transferência forçada de população e limpeza étnica.
Nenhuma dessas práticas é exatamente uma novidade na campanha israelense. Chama atenção, porém, como o passo a passo das ações realizadas desde 1º de outubro remete a um projeto montado por um general reservista conhecido por seu discurso genocida. Se aplicado com sucesso na região norte, ele pode ser reproduzido em toda a Faixa de Gaza.
Giora Eiland, o arquiteto
Em 2014, durante o conflito travado naquele ano por Israel e Hamas, o major-general aposentado Giora Eiland ganhou algumas manchetes por conta de textos que escreveu em importantes veículos da imprensa israelense.
Em abril daquele ano, Eiland articulou a ideia de que “não existem civis inocentes” na Faixa de Gaza. Em agosto, escreveu que a maneira correta de pressionar o Hamas era “cortar completamente” todos os suprimentos para a região, “não apenas eletricidade e combustível, mas também alimentos e água”.
A retórica de Eiland em 2014 não causou danos a sua reputação. Ex-conselheiro de segurança nacional de Israel e dono de uma carreira militar respeitável, o general continuou a escrever em jornais e a proferir palestras. Se manteve, também, como uma fonte frequente para a imprensa sobre assuntos estratégicos e de segurança.
Depois do ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023, a estratégia do general avançou para incluir recomendações explícitas para o cometimento de crimes de guerra e contra a humanidade. Em 12 de outubro, ele defendeu, em artigo na versão em inglês do Yedioth Ahronoth, maior jornal do país, que Israel deveria “criar condições nas quais a vida em Gaza se torne insustentável” e fazer da região “um lugar onde nenhum ser humano pode existir.”
Israel deveria fazer isso, advogou Eiland, para “criar uma crise humanitária em Gaza, obrigando dezenas de milhares ou mesmo centenas de milhares a buscar refúgio no Egito ou no Golfo”. Essa limpeza étnica era “um meio” para permitir a derrota do Hamas, afirmou.
Cerca de um mês depois, em um artigo na versão impressa em hebraico da mesma publicação, Eiland defendeu a matança de mulheres palestinas na Faixa de Gaza pois elas são “as mulheres, irmãs e esposas dos assassinos do Hamas”. E completou seu raciocínio afirmando que Israel não deveria lamentar o estouro de epidemias, “afinal, epidemias graves no sul da Faixa de Gaza deixarão a vitória mais perto.”
Gideon Levy – um dos comentaristas israelenses que manteve a lucidez após o 7 de Outubro – reagiu escrevendo que “a monstruosa proposta de Giora Eiland para Gaza é o mal à vista de todos”. E destacou como ideias genocidas estão perpassando não apenas a direita e a extrema-direita israelenses, mas também o centro e a centro-esquerda.
“O Plano dos Generais"
Giora Eiland não é um integrante do governo de Israel e não toma decisões a respeito da conduta da guerra. Em uma primeira análise, portanto, suas palavras seriam mais um reflexo do tipo de argumentos que o debate público israelense aceita do que provas de crimes cometidos pela liderança Israel.
Ocorre que as ideias do general estão sendo colocadas em prática no norte da Faixa de Gaza. Reportagens publicadas nos últimos meses e, principalmente, nos últimos dias, mostram como suas ideias chegaram ao processo de formulação da tática israelense e estão sendo aplicadas.
Em abril de 2024, um grupo chamado Fórum de Comandantes e Combatentes da Reserva, composto por dezenas de militares e liderado por Eiland, divulgou ao público a existência de um documento chamado “O Plano dos Generais”, no qual estaria detalhado seu projeto para a região norte da Faixa de Gaza.
Conforme reportagem publicada pelo Yedioth Ahronoth na época, o fórum “apresentou o plano aos membros do gabinete de segurança de Israel e a altos funcionários do governo, instando a liderança política a instruir os militares a implementar a estratégia rapidamente.”
Em setembro, o jornal voltou ao assunto. Desta vez, para informar que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse à Comissão de Assuntos Exteriores e Defesa do parlamento estar considerando “O Plano dos Generais”. Ainda segundo a publicação, os Estados Unidos não aprovavam tal projeto (este ponto é interessante e remete à pressão feita por Kamala Harris e mencionada no início do texto).
Também em setembro, pesquisadores e acadêmicos israelenses manifestaram apoio ao plano liderado por Eiland, e deram suas próprias ideias a respeito de como a operação poderia ser feita, enquanto políticos da extrema-direita passaram a pressionar Netanyahu por um processo de limpeza étnica no norte de Gaza.
Mais recentemente, ficou mais clara a conexão entre o projeto de Eiland e as práticas do governo. Em 12 de outubro, a BBC publicou uma entrevista com o general. Ele confirmou que sua proposta era dar alguns dias para os civis deixarem a região norte da Faixa de Gaza e, depois disso, “selar” a área. Ninguém mais poderia sair ou entrar e quem permanecesse seria tratado como combatente. “E todo o povo do Hamas ainda terá, sejam alguns deles combatentes, alguns deles civis... duas escolhas: render-se ou morrer de fome”, afirmou Eiland.
Em 13 de outubro, outro importante jornal israelense, o Haaretz, publicou reportagem a respeito da operação militar no norte de Gaza. Integrantes do establishment de defesa israelense afirmaram ao jornal que o governo Netanyahu não está mais preocupado em obter um acordo para salvar os reféns, mas sim atuando para anexar partes da Faixa de Gaza.
Comandantes militares que estão na Faixa de Gaza, por sua vez, informaram que a decisão de ampliar as operações no norte de Gaza “foi tomada sem nenhuma discussão aprofundada”. Ainda segundo esses comandantes, a impressão era de que “as operações tinham como objetivo principal pressionar os moradores locais, que foram novamente instruídos a evacuar a área.”
É possível, afirma o jornal, que “a operação esteja lançando as bases para a decisão do governo de colocar em prática o chamado plano ‘renda-se ou morra de fome’ do major-general Giora Eiland.”
No dia 14, a Associated Press publicou reportagem segundo a qual um integrante do governo israelense confirmou que Netanyahu “leu e estudou o plano”. O próprio Eiland disse à agência que representantes do premiê o procuraram para saber mais detalhes de seu projeto. Um integrante de um outro governo “com conhecimento do assunto” – provavelmente os Estados Unidos – afirmou à AP que “partes do plano já estão sendo implementadas”.
No mesmo dia, quatro das principais ONGs israelenses ligadas a questões de direitos humanos chegaram à mesma conclusão. Em um comunicado conjunto, disseram ver “sinais alarmantes de que os militares israelenses estão começando a implementar discretamente o Plano dos Generais, também conhecido como Plano Eiland, que apela à transferência forçada completa dos civis do norte da Faixa de Gaza através do reforço do cerco à área e de submeter a população à fome.”
Em 15 de outubro, mais uma vez o Haaretz registrou informações sobre o caso. Ao jornal, três soldados discutiram o Plano dos Generais como um fato consumado. “Os comandantes falam abertamente que o plano Eiland está sendo promovido pela IDF [sigla para as forças israelenses]”, disse um deles. “O objetivo é dar aos residentes que vivem no norte um prazo para irem ao sul da Faixa. Depois dessa data, qualquer um que continuar no norte será considerado inimigo e será morto”, afirmou outro.
As forças armadas de Israel reagiram informando ao jornal que nenhum plano deste tipo está em vigor e que a distribuição de ajuda humanitária não sofreu interrupções. Sabe-se pelos órgãos da ONU e pela pressão norte-americana que a segunda parte da manifestação oficial de Israel é mentirosa. Os fatos e depoimentos coletados por ONGs e por jornalistas indicam fortemente que a primeira parte também não é verdadeira.
Todo esse conjunto de elementos reforça a ideia de que o projeto do governo israelense para o norte da Faixa de Gaza envolve despovoar a região por meio de uma limpeza étnica e, possivelmente, reocupar a área com o envio de colonos. A ideia é ficar ali por tempo indeterminado, de modo a afastar o Hamas de seus centros urbanos. É o mesmo projeto que está sendo levado a cabo no sul do Líbano.
Para chegar mais rapidamente a seu objetivo, o governo de Israel espera a vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos. Seu retorno à Casa Branca acabaria de uma vez com a hipocrisia na política externa norte-americana, permitindo que Israel promovesse sua campanha de extermínio sem se preocupar em fingir que cumpre as regras das leis humanitárias.