O Filtro do Oriente Médio (8/12/23) - "Apocalipse" na Faixa de Gaza
Dois meses depois do ataque do Hamas e da consequente resposta israelense, é difícil encontrar novos argumentos ou fatos para explicar a situação no território palestino
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
“Apocalipse” na Faixa de Gaza
A situação humanitária na Faixa de Gaza continua a degringolar enquanto a humanidade apenas observa, inerte. É um cenário moral e político que renova a certeza de que há um desprezo pela vida árabe no mundo, como a guerra civil na Síria já havia deixado claro na última década.
Na quinta-feira 7, a agência Reuters publicou reportagem na qual tenta resumir o cenário. Os primeiros parágrafos estão traduzidos abaixo:
As pessoas estão com tanta fome que invadem os armazéns da ONU para levar tudo o que encontram. Crianças aterrorizadas com o barulho dos ataques aéreos. Famílias usam água do mar para se lavar. Homens cortando árvores em cemitérios para usar como combustível para assar pão. E pela manhã, nos dias em que os telefones funcionam, ligam para parentes e amigos para verificar se sobreviveram a mais uma noite na guerra de dois meses em Gaza entre Israel e o Hamas.
Este é um recorte do que 2,2 milhões de pessoas estão passando neste momento. Os números oficiais (abaixo, gráfico da ONU com dados dos governos locais) também ajudam a ilustrar a situação. São 16,2 mil mortos na Faixa de Gaza, incluindo 7,1 mil crianças e 4,8 mil mulheres. Há 1,9 milhão de deslocados (85% da população). Cerca de 50 mil unidades residenciais foram destruídas no território palestino. Não há energia elétrica na Faixa de Gaza. E o que resta do sistema de saúde está em frangalhos.
Na quinta-feira 7, Martin Griffiths, subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, afirmou em Genebra que a operação humanitária atual funciona de forma precária diante do caos. A ação é “errática, não é confiável e, francamente, não é sustentável”, disse ele.
Na terça-feira 5, em entrevista ao Guardian, Griffiths afirmou que se tratava de um cenário apocalíptico e renovou seus apelos para um cessar-fogo.
O governo de Israel sustenta a argumentação de que protege civis, desde a retomada da guerra por meio de um mapa que indicaria zonas seguras (safe zones) aos palestinos. Como contou o Guardian, múltiplos relatos apontam que tais avisos são confusos e inconsistentes. Há muitos casos, desde o 7/10, em que houve bombardeios contra locais em que supostamente não haveria ataques.
A Sky News visitou uma “zona segura” no litoral sudoeste de Gaza, chamada de Al-Mawasi. Trata-se de um antigo assentamento beduíno, onde não há nenhuma infraestrutura. As pessoas estão na praia, em barracas improvisadas, sem qualquer tipo de assistência.
Uma delas é Mahmood Afghani, que levou os seis filhos para este local para tentar salvar suas vidas. “Quero que o mundo inteiro sinta a nossa dor para que possam pressionar Israel a parar esta guerra", disse ele ao exibir o abrigo que montou para a família.
Em Rafah, cidade mais ao sul da Faixa de Gaza, a situação também é desoladora. O Guardian conta que as casas e abrigos que ainda não foram destruídos estão superlotados, enquanto muitas pessoas estão morando nas ruas. Shahd al-Modallal, uma das entrevistadas, revela a apreensão sobre o futuro e a total ausência de perspectivas: “Rafah será o último passo para nós, não há outro plano. Será a morte.”
Guterres aciona o Conselho de Segurança
Denunciando o “grave risco de um colapso no sistema humanitário”, na quarta-feira 6, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, acionou pela primeira vez em seu mandato o Artigo 99 da Carta da ONU.
Este artigo permite ao secretariado “chamar a atenção do Conselho de Segurança para qualquer assunto que, na sua opinião, possa ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais.”
Em sua declaração, Guterres afirmou que “a situação está se deteriorando rapidamente para uma catástrofe com implicações potencialmente irreversíveis para os palestinos no seu conjunto e para a paz e segurança na região”, um resultado que deve “ser evitado a todo custo”.
No mesmo dia, a delegação dos Emirados Árabes Unidos apresentou uma resolução de cessar-fogo humanitário pedindo ação “decisiva” do Conselho. É uma nova chance de o órgão mais importante da ONU voltar a funcionar, mas diante dos acontecimentos dos últimos anos e dos últimos meses, essa parece ser uma expectativa otimista demais. Uma votação deve ocorrer ainda nesta sexta.
A posição emirati é muito influenciada pelo temor de uma escalada da violência para o âmbito regional. Nesta semana, a Reuters informou que o governo da Arábia Saudita voltou a pedir parcimônia aos Estados Unidos na retaliação aos Houthis, que tem realizado ataques no Mar Vermelho contra interesses israelenses. Já o Wall Street Journal informou que Washington fez o mesmo alerta ao governo de Israel.
Os objetivos de Israel com a guerra
Em texto que publiquei na terça-feira 5 em Tarkiz, fiz algumas ponderações a respeito dos objetivos de Israel na guerra contra o Hamas. Sobram motivos para duvidar da meta estabelecida pelo governo Benjamin Netanyahu, de “destruir o Hamas”.
Há muitas indicações de que a intenção do primeiro-ministro israelense é apenas avançar a agenda do bloco de direita e extrema-direita que ele comanda, em especial impedir, a qualquer custo, a retomada de negociações e o estabelecimento de um Estado palestino.
Reforça esta linha de pensamento a análise de Sarah Parkinson, professora da Universidade Johns Hopkins, que foi entrevistada no podcast do Project on Middle East Political Science, uma rede de pesquisadores sobre o Oriente Médio.
No programa, ela discorre a respeito de sua pesquisa sobre a ocupação do Líbano por Israel e demonstra como, naquele caso, o governo israelense também tinha metas genéricas que não apenas não foram cumpridas como agravaram o conflito.
Em 1982, Israel invadiu o Líbano com o objetivo de “acabar com a Organização pela Libertação da Palestina”, análogo à meta atual de “acabar com o Hamas”. A OLP continuou a existir, inúmeros massacres foram cometidos, a guerra civil libanesa se aprofundou e o Hezbollah surgiu a partir daquela ocupação.
Parkinson também faz um outro alerta importante. Durante e depois da ocupação do Líbano, foram criadas as chamadas buffer zones para separar as forças israelenses de seu adversários. A analista destaca que essas zonas são difíceis de administrar, promovem violações de direitos e são foco de repetidos conflitos.
O podcast pode ser ouvido aqui. E na Foreign Affairs há um texto de Parkinson sobre esses aspectos, intitulado The Ghosts of Lebanon.
Investigação conclui que Israel matou jornalista da Reuters
As agências Reuters e AFP e as organizações Human Rights Watch e Anistia Internacional publicaram, na quinta-feira 7, relatórios que apontam a responsabilidade das forças armadas de Israel sobre o ataque que matou o videojornalista Issam Abdallah, no Líbano, em 13 de outubro.
Inúmeros vídeos, mapas e depoimentos indicam que os militares israelenses sabiam ou deveriam saber que o grupo alvo de sua ação era composto por jornalistas, que estavam identificados. A prova mais forte das investigações é o fato de que a munição responsável pelo ataque pertence aos tanques de guerra israelenses. O vídeo abaixo, da Anistia Internacional, detalha o episódio.
Além da morte de Abdallah, que atuava pela Reuters, o ataque provocou ferimentos graves na fotógrafa Christina Assi, da AFP. Ainda havia jornalistas da Al-Jazeera no grupo.
Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), a atual ofensiva de Israel na Faixa de Gaza já deixou 63 jornalistas mortos.
Também de acordo com o CPJ, assassinatos de jornalistas não são uma novidade na atuação militar israelense. Em maio, um relatório do grupo mostrou que, em 22 anos, Israel matou pelo menos 20 jornalistas.
Para além da questão palestina
Entre 10 e 12 de dezembro, serão realizadas as eleições no Egito. A Reuters tem um material sobre os candidatos à presidência. O vencedor será Abdel Fattah al-Sissi. Este texto que escrevi em outubro traz uma análise do cenário.
Como conta a France24, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, fez uma visita à Grécia nesta semana, que teve um surpreendente tom ameno. Os dois governos buscam reiniciar suas relações diplomáticas após anos conturbados. É um evento importante pois a política externa turca influencia muito as dinâmicas no Oriente Médio.