O golpe no Níger, a "Guerra ao Terror" e a instabilidade na África
A crise no Sahel tem entre suas causas a derrubada de Qadhafi na Líbia e a militarização da ajuda externa a países africanos após o 11 de Setembro
O resumo do texto, em três pontos
A desestabilização da região do Sahel já tem mais de uma década e a situação vem se agravando
As políticas ocidentais e também as da Rússia apenas pioram os cenários
Forças regionais e globais empurram os países da região para um conflito cujas consequências serão desastrosas
A derrubada do presidente Muhammad Bazoum, no Níger, em 26 de julho, expôs a gravidade da situação política no Sahel, região ao sul do Saara cujas dinâmicas sociopolíticas estão fortemente conectadas com as do norte da África. Foi o nono golpe ou tentativa de golpe nos últimos três anos na África Ocidental e Central, um sinal da deterioração das condições políticas em meio à crescente violência e a uma cada vez mais clara disputa entre as grandes potências.
Entender essa questão é pertinente aqui para compreendermos os impactos da “Guerra ao Terror”, cujos efeitos nocivos são compartilhados pelo Oriente Médio e pela África e para refletirmos sobre como o Oriente Médio – e a ‘crise’ de refugiados – não podem ser entendidos sem que observemos sua inserção na geopolítica mundial.
Para isso, é preciso analisar as interações entre as forças globais e regionais que influenciam a conjuntura na África.
A crise na Líbia e no Mali
O ponto de partida desta análise é a ação militar da Otan na Líbia, em 2011, que culminou na derrubada do regime de Muamar Qadhafi. Antes daquela operação, diversas lideranças africanas alertaram EUA, França e Reino Unido sobre uma possível desestabilização do Sahel, mas os avisos foram ignorados. Com Qadhafi fora do poder, a análise se provou correta.
Para contrapor seus adversários, o ditador líbio recrutara mercenários Tuaregue, grupo tradicionalmente nômade que habita diversos países da região. Derrotados pelas forças ocidentais, mas armados por Qadhafi, muitos desses mercenários chegaram ao Mali e se juntaram a um grupo separatista local.
Uma ofensiva contra a capital Bamako foi realizada entre 2012 e 2013 e, desde então, deixou o Mali em estado crítico. Duas forças globais se instalaram na região: a França, que organizou uma intervenção militar, e grupos jihadistas, que miram tanto civis quanto forças estatais e se aproveitam do caos para recrutar homens para sua causa.
Na última década, o conflito exacerbou divisões sociais, étnicas e religiosas pré-existentes e, mais recentemente, se espalhou para Burkina Faso e Níger. A violência em larga escala provocou o deslocamento de grandes contingentes populacionais e deixou milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. A retração das instituições estatais que poderiam mediar os conflitos locais levou a uma militarização das relações intercomunitárias, pois muitos grupos étnicos se armaram.
Hoje, a tríplice fronteira entre Mali, Burkina Faso e Níger, conhecida como a região de Liptako-Gourma, é uma das áreas mais violentas da África. O número de ataques atribuídos a milícias islâmicas quadruplicou entre 2019 e 2022.
Foi justamente a violência jihadista, e a dificuldade do governo Bazoum de mitigá-la, que serviu como justificativa para os militares golpistas tomarem o poder no Níger.
Como a “Guerra ao Terror” agrava o problema
Os problemas no Mali foram intensificados pelo fato de terem ocorrido em meio à “Guerra ao Terror”. Os atentados do 11 de Setembro de 2001 nos EUA, bem como ataques contra cidades europeias em anos posteriores, mudaram a mentalidade de muitas lideranças ocidentais.
As novas políticas externas passaram a funcionar em uma lógica de guerra, o que se viu por meio de invasões como as do Afeganistão e do Iraque e da militarização da ajuda externa a países em desenvolvimento. Nesta lógica, o subdesenvolvimento passou a ser visto como uma ameaça e a África, afetada por muitas guerras civis desde os anos 1990, se tornou um dos palcos da “Guerra ao Terror”.
No caso dos EUA, o Pentágono (o Departamento de Defesa) rapidamente assumiu protagonismo no fornecimento de ajuda externa por meio de iniciativas que buscavam criar bases militares, fornecer equipamentos e treinamento e estabelecer alianças com países africanos engajados no combate ao terrorismo.
A iniciativa dos EUA acoplou-se às da França, que já funcionavam por meio de uma lógica militar há décadas. Desde a descolonização, Paris realizou mais de 50 intervenções armadas na África, quase sempre para proteger seus interesses nas ex-colônias.
Para piorar, cientes da importância da “Guerra ao Terror” para o Ocidente, muitas lideranças africanas passaram a usar a infiltração jihadista em seus países como uma forma de obter fundos e assistência militar. Rapidamente, programas de desenvolvimento social e econômico ficaram em segundo plano.
O resultado da interação entre essas forças foi uma dinâmica que, ao invés de servir para minimizar o problema do terrorismo, acabou por agravá-lo. A prática mostra que as soluções militares são quase sempre incapazes de acabar com levantes terroristas e, em muitas situações, pioram o cenário. É o caso do Mali e de outros países do entorno.
Conflitos socioeconômicos têm sido interpretados pelos governos locais e ocidentais apenas pelas lentes do combate ao terrorismo, tornando impossível a busca por compromissos com determinados grupos. Como consequência, certas comunidades passaram a ser inteiramente estigmatizadas como terroristas, o que bloqueia eventuais soluções políticas.
Em 2016, um acordo de paz capitaneado pela França sob a ótica da “Guerra ao Terror” naufragou pois deixou de fora muitos grupos que eram entendidos como ligados ao jihadismo internacional. Desde então, a violência vem aumentando de forma significativa em toda a região.
O papel do Níger e a infiltração da Rússia na África
A ansiedade manifestada pelos países ocidentais desde o golpe no Níger tem relação com dois fatores. Dois mapas podem nos ajudar a compreender a situação.
O primeiro deles, abaixo, foi produzido pelo Africa Center for Strategic Studies, ligado ao Pentágono. Mostra, com pontos coloridos, os ataques atribuídos a grupos jihadistas na África em 2023. Em vermelho e azul, estão os atentados na região de Liptako-Gourma e, em verde e marrom, os ataques na Bacia do Lago Chade, que congrega Chade, Camarões, Níger e Nigéria.
Como fica evidente, o Níger tem uma localização estratégica para que as forças ocidentais possam lidar com as filiais da Al-Qaeda e do Estado Islâmico e também com o Boko Haram e seus desdobramentos (ativos na Bacia do Lago Chade).
O país, assim, se tornou um aliado de primeira ordem de EUA e França. Até o golpe, Washington fornecia treinamento e inteligência ao Níger, enquanto Paris mantinha tropas em seu território.
O segundo fator é a crescente influência da Rússia na África, que se dá em detrimento da influência Ocidental.
O mapa abaixo, disponível na Wikipedia, nos ajuda a compreender o panorama. Os países destacados em verde são os integrantes da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao), conhecida também por sua sigla em inglês, Ecowas.
Os países em verde escuro são os membros ativos da comunidade: Nigéria, Benin, Togo, Gana, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, Guiné-Bissau, Gâmbia, Senegal e Cabo Verde. No tom claro estão os integrantes do bloco atualmente suspensos: Guiné, Mali, Níger e Burkina Faso.
Neste último grupo, Guiné, Mali e Burkina Faso são governados por juntas militares que chegaram ao poder nos últimos dois anos por meio de golpes de Estado. Todas essas lideranças surfaram ondas antiocidentais, em especial anti-França, que miram o fracasso do combate ao terrorismo e a perene (e justificada) sensação de que os países ocidentais têm pouco ou nenhum interesse em auxiliar no desenvolvimento das nações africanas, mas sim em explorá-las.
No vácuo produzido pela hostilidade ao Ocidente, entrou a Rússia, mais especificamente o Grupo Wagner, formado por mercenários que, apesar da bizarra tentativa de golpe em junho, continuam a atuar como a ponta-de-lança da política externa de Moscou.
Aproveitando-se do discurso anti-imperialista da era soviética e de uma intensa campanha de desinformação por meio das redes sociais, o Grupo Wagner e o Estado russo vêm estreitando laços com as novas elites políticas e ganhando influência junto às sociedades locais, extenuadas diante da violência, apesar das atrocidades cometidas, como o massacre de 500 pessoas em Moura.
No caso do Níger, como explicou o jornalista Garé Amadou ao Guardian, a cúpula golpista não tem uma tendência pró-Rússia, mas vem acenando a Moscou com o intuito de driblar o isolamento imposto pela Cedeao e pelos países ocidentais.
A opinião pública no Níger, por sua vez, é significativamente favorável a uma aproximação com a Rússia, de acordo com ele. Como em muitos outros lugares do mundo, a guerra cultural entre conservadores e progressistas afeta a África. Disse o jornalista:
Apesar das acusações contra Wagner, [a população do Níger] têm em alta conta os russos e certa admiração por Putin. Ele é visto como um homem forte que luta contra o que a maioria [das pessoas] vê como valores negativos do Ocidente – atitudes em relação à homossexualidade, rejeição da religião e suposta islamofobia. É o mesmo sentimento de boa parte da população [dos países da Cedeao]. O Ocidente é visto como decadente, enquanto a Rússia é vista como a última defensora dos valores morais caros aos africanos, como o casamento entre homens e mulheres e o respeito à religião.
Todo este quadro levanta preocupações sobre um eventual conflito que teria, sem sombra de dúvida, consequências desastrosas para as populações africanas.
No âmbito regional, os governos da Cedeao enxergam no golpismo da vizinhança uma ameaça existencial grave, que precisa ser estancada, talvez até por meio da força. As novas ditaduras pró-Rússia, por sua vez, reagem na mesma medida, alegando elas próprias se sentirem ameaçadas.
Enquanto forma-se um dilema de segurança na África Ocidental, a região também se torna ponto focal da disputa geopolítica entre o Ocidente e a Rússia. Os países ocidentais vêm perdendo influência por conta das políticas empregadas nas últimas décadas à medida que Moscou desfruta do espaço deixado. As elites locais, enquanto isso, tentam se equilibrar na disputa, aproveitar as oportunidades existentes e diluir as ameaças.
Em comum, as grandes potências compartilham o desinteresse em ajudar a promover um real desenvolvimento do continente africano e a equivocada percepção de que a força bruta é capaz de acabar com o terrorismo. É a receita para a contínua deterioração do cenário.