O ataque do Hamas a Israel: primeiras impressões
Reflexões sobre o que a ofensiva significa e o que ela pode significar para a questão palestina
O resumo do texto:
Quarenta e oito horas depois dos ataques do Hamas contra Israel, é cedo para dizer o que este episódio vai representar no longo prazo, mas parece seguro afirmar que o 7 de outubro de 2023 será um divisor de águas.
A ação do Hamas é um cartada arriscada, que pretende mudar o status quo da questão palestina, mas que deve ser retaliada com uma operação de longa duração por parte de Israel.
O problema de fundo que trouxe os dois lados até este ponto – a ocupação dos territórios palestinos – dificilmente será objeto de deliberação relevante de uma comunidade internacional desprovida de moralidade e vontade política.
A ação do Hamas no dia 7 de outubro de 2023 se caracterizou por seu caráter híbrido, derivado da própria natureza do grupo. Por um lado, teve um componente pura e simplesmente terrorista, evidenciado pelos ataques deliberados a civis – israelenses, inclusive crianças e idosos, foram caçados e mortos dentro de casa, nas ruas, nos carros, e até em um festival de música, em que 260 pessoas foram vitimadas.
Por outro lado, o Hamas mirou instalações militares israelenses, com o objetivo de obter armamentos e veículos e enfraquecer, ou atrasar, a retaliação por parte de Israel. As informações disponíveis até aqui, porém, indicam que o aspecto terrorista das ações foi muito mais amplo, o que diz muito a respeito das práticas deste grupo.
Ao mesmo tempo, o episódio teve claros contornos político-propagandísticos. Foram divulgados vídeos e fotos da ação, com detalhes das estratégias e dos veículos utilizados. Entre as imagens, várias enfatizam o rompimento de barreiras e muros erguidos por Israel para isolar a Faixa de Gaza, algo de forte peso simbólico não apenas para os palestinos, mas para muitos simpatizantes de sua causa.
Fica claro que a empreitada, multifacetada, foi preparada ao longo de muito tempo e pensada de forma a produzir um ponto de não retorno. Isso nos permite especular a respeito dos possíveis objetivos do Hamas com essa ação:
O primeiro deles é o de se firmar como principal movimento político palestino. Aqui, o alvo é o Fatah, partido dominante na Cisjordânia e que viu sua posição se deteriorar nos últimos 15 anos por conta da corrupção de seus integrantes, do autoritarismo e da subserviência ao governo israelense. Ao atacar Israel, e criar mecanismos para conseguir a soltura dos mais de 5 mil palestinos presos, o Hamas tentar demonstrar que é o único real representante dos palestinos.
O segundo objetivo do Hamas parece ser o de galvanizar sua posição no mundo árabe ao obter uma vitória, ainda que momentânea, contra Israel. Aqui, a intenção do Hamas parece ser emular o que os libaneses do Hizbullah fizeram em 2006.
O terceiro e mais importante objetivo, porém, é impedir que a questão palestina desapareça da lista de prioridades das lideranças no Oriente Médio. Nas duas últimas décadas, o confronto entre o bloco liderado pelo Irã e os diferentes aliados dos Estados Unidos se tornou a principal pauta política na região. Aos poucos, a questão palestina passou a perder importância, o que se concretizou nos diversos acordos de normalização firmados entre Israel e países árabes nos últimos anos. A recente aproximação entre Israel e Arábia Saudita seria a evidência de que a questão palestina estava prestes a ser ‘engavetada’ de modo definitivo.
Em suma, o que o Hamas buscava com sua ação era dar um recado claro de que não haverá qualquer tipo de estabilização enquanto a questão palestina permanecer em aberto. Para fazer isso, porém, o movimento apostou todas as suas fichas neste ataque e agora precisará sobreviver à retaliação de Israel para colher seus frutos.
O fato de ter apostado sua própria existência neste ato denota, portanto, o sentimento de urgência experimentado pelo Hamas diante dos desdobramentos mais recentes no Oriente Médio. Aos olhos da liderança do movimento, o risco de enfrentar uma guerra total com Israel compensa a possibilidade de ver a causa palestina ignorada.
O 11 de Setembro israelense
Para a sociedade israelense, o 7 de outubro de 2023 deve ter repercussão equivalente à que o 11 de Setembro teve para os Estados Unidos. A infiltração dos militantes dos Hamas é um dos maiores desastres de inteligência da história do país, comparável às falhas que possibilitaram o ataque surpresa de Egito e Síria em outubro de 1973.
Naquela ocasião, Israel conviveu com um risco existencial, o de ser ocupado por seus inimigos, mas o confronto ficou, em larga medida, circunscrito às forças militares de cada país. Desta vez, não há risco existencial, mas o alvo prioritário do Hamas eram os civis israelenses, que não foram protegidos pelos militares.
O número de mortos mostra a gravidade com que a situação é encarada pelo público e pelas elites políticas israelenses. A estimativa mais recente é de que 800 pessoas foram assassinadas pelo Hamas no dia 7 de outubro. Neste grupo há pelo menos 91 policiais e militares, mas este número deve ser comparado aos 881 civis israelenses mortos por palestinos entre os anos de 2000 e 2023, segundo levantamento da ONG B’Tselem. Em resumo: em um dia, Israel sofreu quase o mesmo número de baixas do que nos 23 anos anteriores.
Este quadro se explica pelo fato de que o aparato de segurança israelense foi pego de surpresa pelo ataque. Além de falhar ao prever o episódio, fracassou também na resposta a ele. No fim do domingo, ainda havia combates na região sul de Israel entre militares e homens do Hamas e familiares dos desaparecidos ainda buscavam informações sobre seus entes. São dois fatos que revelam a dificuldade de enfrentar a primeira ofensiva dentro do território israelense desde 1948.
O choque do 11 de Setembro fez com que lideranças políticas dos EUA levassem devastação e sofrimento para boa parte do mundo, em especial ao Oriente Médio e à África. É de se esperar que o 7 de outubro promova o mesmo ímpeto na liderança israelense.
Se a história recente serve de guia para o que acontecerá nas próximas semanas, podemos esperar mais uma retaliação desproporcional de Israel à Faixa de Gaza. Os comentários do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que falou em “vingança”, e o apelo de seus aliados por uma limpeza étnica de palestinos, também são indicadores de que uma carnificina se avizinha.
Desta vez, porém, além da ação de bombardeiros, que começou no próprio sábado, uma incursão terrestre é bastante provável. Elemento complicador para isso é o fato de que o Hamas e a Jihad Islâmica (grupo auxiliar que também participou do ataque) capturaram dezenas de reféns israelenses. Estamos na iminência, portanto, de uma operação de grandes proporções e longa duração na Faixa de Gaza.
Alguém se importa com o real problema?
Nos anos 1990, em um cenário geopolítico completamente diverso do atual, as principais lideranças palestinas e israelenses conseguiram travar acordos que encaminhavam uma solução para a disputa entre os dois lados: a criação de um Estado palestino contíguo a Israel, englobando a Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
Yitzhak Rabin, o então primeiro-ministro de Israel, e Yasser Arafat, o principal líder palestino, fizeram um acordo que, apesar de suas muitas imperfeições, tinha o mérito de ser uma novidade pacífica em uma história de violência sistemática. Mais que isso, ali Israel reconheceu a Organização pela Liberação da Palestina (OLP) como representante dos palestinos e a OLP reconheceu a existência de Israel.
Este processo de paz descarrilou rapidamente. Os Acordos de Oslo foram sistematicamente sabotados pela direita israelense e pelo Hamas, em uma ‘união’ entre essas duas elites políticas contra suas populações.
Os primeiros atentados terroristas do Hamas foram registrados em 1993, em meio às negociações. Já Benjamin Netanyahu ganhou proeminência política como um dos principais incitadores de ódio contra o Yitzhak Rabin, que acabou assassinado por um extremista judeu em 1995.
Nos vários governos que comandou ao longo dos últimos anos, Netanyahu repetidamente minou a autonomia da Autoridade Palestina, em uma campanha que teve como resultado engrandecer o Hamas como força política.
A guerra que se avizinha, portanto, entre o governo Netanyahu e o Hamas, é uma guerra dos que derrotaram a paz nos anos 1990. Para ambos, é preferível um conflito interminável a ver dois Estados na região. O Hamas e a direita israelense, assim, se retroalimentam em um turbilhão de extremismo.
Esta situação só pode ser contornada com mediação internacional, mas vivemos hoje em uma ‘comunidade internacional’ com déficit significativo de moralidade e pensamento estratégico para resolver os diversos problemas existentes.
No Ocidente, engolfado por uma onda de extrema-direita, esta carência é muito saliente. No caso atual, percebe-se isso nas notas oficiais de lideranças europeias e dos EUA que, de forma acrítica, apoiam “o direito de Israel de se defender” mesmo sabendo que, na prática, isso significa chancelar outro massacre na Faixa de Gaza.
Na raiz dos eventos deste fim de semana está a brutal e contínua usurpação dos direitos mínimos dos palestinos ao longo de décadas. Dentro de Israel, os palestinos que não foram expulsos em 1948 são cidadãos de segunda classe. A Faixa de Gaza foi ocupada por 40 anos e está cercada por todos os lados há 16 anos, um processo sistemático e violento de destruição de vidas. Já a Cisjordânia encontra-se ocupada há 56 anos, com efeitos devastadores para sua população.
No último ano – enquanto Netanyahu transformou em ministros um autoproclamado fascista e um homem condenado por incitação ao terrorismo – se tornaram comuns pogroms de assentados judeus contra bairros e vilas palestinas, muitas vezes com armas e proteção do Exército. O objetivo é um só: terminar de apagar a existência palestina.
Neste cenário, nos âmbitos local, regional e global, as rotas para o ativismo pacífico palestino vêm sendo fechadas. Entre 2018 e 2019, ativistas em Gaza (inclusive alguns ligados ao Hamas) organizaram a Grande Marcha para o Retorno, um protesto em larga medida pacífico com objetivo de denunciar o bloqueio de Israel.
A iniciativa foi retratada pelo governo israelense como um risco securitário e duramente reprimida: 214 palestinos (sendo 46 crianças) foram assassinados, enquanto outros 36 mil, (incluindo 8,8 mil crianças) ficaram feridos.
Se as vias pacíficas estão fechadas, o que sobra, então? A violência. Assim, o Hamas se sobressai enquanto liderança política. É um desfecho favorável à elite israelense que, liderada por Netanyahu, quer continuar equiparando a causa palestina a terrorismo para impedir o estabelecimento de um Estado palestino.
Em meio a tanta violência, prática e discursiva, parece impossível vislumbrar uma saída pacífica para essa questão. Mas ela existe, e passa obrigatoriamente pela emancipação dos palestinos. Enquanto este momento não chegar, não haverá paz para nenhum dos lados.
Excelente análise, José. Traz profundidade e clareza ao mesmo tempo. Foi a melhor análise que vi até o momento sobre os acontecimentos. Obrigado!