O futebol, a Copa do Mundo e a luta palestina
A busca da seleção da Palestina por uma vaga no mundial de 2026 reforça a resistência às tentativas de apagamento da identidade nacional palestina
Em meio à carnificina organizada por Israel contra a Faixa de Gaza, as comunidades palestinas tiveram em 6 de junho um pequeno momento de alegria: a seleção masculina de futebol empatou por 0 a 0 com o Líbano e, pela primeira vez, se classificou para a fase decisiva das eliminatórias asiáticas da Copa do Mundo.
A partida foi disputada em Doha, no Catar, porque a seleção palestina está impedida de mandar jogos em casa devido à guerra – situação similar à de Israel e do Líbano. Ao longo da campanha, a Palestina perdeu por 1 x 0 para Austrália, empatou com o Líbano em outro 0 x 0 e obteve duas vitórias sobre Bangladesh (por 5 x 0 e 1 x 0). A fase atual será encerrada nesta terça-feira 11, em outra partida contra a Austrália (Às 9h10 da manhã no horário de Brasília).
Com a classificação, a Palestina estará entre as 18 seleções que disputam uma vaga no mundial de 2026. Essas equipes serão divididas em três grupos de seis, com primeiro e segundo colocados garantindo vaga para a Copa.
As seis equipes que ficarem em terceiro e quarto lugares formarão dois triangulares e os respectivos vencedores também vão diretamente ao mundial. Os vice-líderes dos triangulares ainda se enfrentam em busca de uma vaga na repescagem.
A seleção palestina está em um patamar inferior ao de favoritos como Arábia Saudita, Irã, Coreia do Sul e Japão, mas pode, a depender do sorteio, ter chances reais de classificação. Na Copa da Ásia de 2023 (encerrada em fevereiro de 2024), a Palestina obteve um surpreendente empate com os Emirados Árabes Unidos, que eram amplamente favoritos, e conseguiu chegar às oitavas-de-final, fase na qual foi eliminada pelo Catar em um jogo apertado.
A ida à Copa do Mundo seria um feito de enormes proporções, mas o simples fato de estar disputando com a elite do futebol asiático traz à seleção, e à luta nacional palestina, uma visibilidade importante em um momento decisivo de sua história. Com a elite política de Israel disposta a tentar extinguir a identidade palestina, o futebol e a busca por um lugar na Copa do Mundo podem ser um bastião de resistência.
O futebol árabe-palestino e o reconhecimento internacional
A história do futebol palestino se confunde com a história da luta nacional palestina. As primeiras décadas do período pós-Primeira Guerra Mundial foram marcadas pela tentativa do movimento sionista de, sob a guarida da colonização britânica, criar uma maioria na Palestina. Esta empreitada envolvia todas as dimensões da vida, incluindo o esporte, e produziu o antagonismo entre árabes e judeus que marca a região até hoje.
O futebol foi introduzido na Palestina ainda sob o Império Otomano (desmontado após a guerra), mas a chegada dos britânicos e de muitos judeus da Europa Oriental fomentou a atividade.
Em 1928, uma Associação Palestina de Futebol foi criada. O fato de contar com integrantes árabes e, portanto, ser percebida como representativa de toda a população do então Mandato Britânico, garantiu o reconhecimento pela FIFA em 1929.
A Associação Palestina de Futebol era, porém, controlada por dirigentes sionistas, o que dificultava a atuação dos clubes árabes. Muitos se recusaram a integrar a associação e, em 1931, criaram uma entidade separada, que passou a boicotar as equipes ligadas ao movimento sionista.
O reconhecimento internacional estava com a associação filiada à FIFA, no entanto. Ela utilizava seu status para tentar legitimar a causa sionista e, com a anuência da federação internacional, impedia os clubes não associados de enfrentar times de países como o Líbano e o Egito que passavam pela região. Nas eliminatórias das Copas do Mundo de 1934 e 1938, a Palestina esteve presente, representada por seleções formadas exclusivamente por atletas judeus.
Em 1948, com a criação de Israel e o Nakba – a catástrofe que provocou uma limpeza étnica dos árabes – a associação futebolística árabe foi extinta. Clubes palestinos passaram a jogar nas ligas da Jordânia e do Egito, que ocupavam a Cisjordânia e Faixa de Gaza, respectivamente. Já a Associação Palestina de Futebol se tornou a Associação de Futebol de Israel – que existe até hoje e, atualmente, disputa competições pela UEFA, a federação europeia.
Por quatro décadas a partir dali, entidades esportivas palestinas buscaram o reconhecimento de suas atividades pela FIFA e pelo Comitê Olímpico Internacional, mas esbarravam no status indefinido da Palestina.
Na década de 1980, com o relevante ganho de legitimidade internacional obtido pela causa palestina, a situação começou a mudar. Ali, a sociedade palestina adquiriu novas capacidades de se estruturar. Em 1988, a atual Associação Palestina de Futebol (APF) foi criada. Em 1995, ela ganhou status de integrante provisória da FIFA e, em 1998, no cinquentenário do Nakba, a entrada se tornou oficial.
“Quando a seleção palestina foi admitida na FIFA em 1995, aquele evento teve um significado profundo para os palestinos de todo o mundo”, disse o escritor Ramzy Baroud, em 2021, à revista britânica Tribune. “Não foi apenas mais uma notícia do futebol, mas um símbolo da nossa autoafirmação coletiva como uma nação que luta por reconhecimento, liberdade e, o mais importante, contra todas as tentativas que visam o nosso apagamento.”
Dificuldades para o campeonato local
Apesar da entrada na FIFA, o estabelecimento de um campeonato nacional sempre enfrentou uma série de obstáculos, como as muitas restrições impostas por Israel para a vida cotidiana palestina e a separação física entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
Um torneio que terminava com uma final entre os campeões de Gaza e da Cisjordânia chegou a ser disputado, mas este modelo foi encerrado no ano 2000, quando estourou a Segunda Intifada (2000-2005). A guerra civil Fatah-Hamas (2006-2007), a tomada de poder pelo Hamas na Faixa de Gaza em 2007 e as restrições israelenses ainda mais intensas depois disso encerraram as possibilidades de clubes dos dois territórios se enfrentarem.
Atualmente, há duas ligas nacionais palestinas, uma na Cisjordânia e outra na Faixa de Gaza. A primeira vem sendo disputada ininterruptamente desde 2008, oferece salários maiores e uma chance melhor de atuar em ligas mais fortes no exterior.
A segunda é quase amadora e sofreu por mais de uma década com as repetidas ondas de violência entre Israel e o Hamas.
Desde o 7/10, ambas estão paralisadas. A liga da Faixa de Gaza, na realidade, deixou de existir, assim como qualquer vestígio de uma vida normal na região. A operação israelense destruiu a infraestrutura esportiva de Gaza e matou diversos esportistas – entre eles Hani al-Masdar, técnico da seleção olímpica de futebol masculino.
A seleção é parte da resistência
Nas últimas décadas, a despeito da existência de dois campeonatos, a seleção nacional palestina continuou a aglutinar jogadores da Faixa de Gaza, da Cisjordânia e da diáspora. No início dos anos 2000, a equipe era dominada por sul-americanos de origem palestina, mas atualmente é composta majoritariamente por atletas nascidos na Palestina histórica.
Nesta trajetória, a seleção se firmou como um importante elemento unificador em meio à separação física e política entre os territórios. Em um primeiro momento, bons resultados esportivos não apareceram, mas a seleção está em uma trajetória ascendente na última década.
Como escreveu em janeiro Bassil Mikdadi, editor da newsletter Football Palestine, muitos jogadores que estiveram sob o comando do técnico Jamal Mahmoud entre 2011 e 2014 formaram a espinha dorsal de uma seleção que conseguiu participar das últimas três Copas da Ásia (e que já está classificada para a próxima).
Alguns deles seguem no elenco, que foi renovado pelo treinador Abdel Nasser Barakat entre 2015 e 2017. Hoje, com a seleção comandada pelo tunisiano Makram Daboub, a principal estrela é o atacante Oday Dabbagh, de 25 anos. Nascido em Jerusalém, Dabbagh passou pelo Arouca, da primeira divisão de Portugal, se tornando o primeiro jogador formado na Cisjordânia a atuar nas grandes ligas europeias. No ano passado, ele foi vendido ao Charleroi, da Bélgica.
Em meio à guerra na Faixa de Gaza e ao bom resultado na Copa da Ásia, a Palestina recebeu nas últimas semanas três reforços da diáspora. Wessam Abou Ali, do Al-Ahly (Egito), que nasceu na Dinamarca, foi titular do ataque ao lado de Dabbagh no jogo contra o Líbano. Já o atacante Omar Faraj, do AIK (Suécia), e o meia Moustafa Zeidan, do Hatta (Emirados Árabes Unidos), nascidos na Suécia, estrearam nos minutos finais da partida.
Emular o feito de Marrocos, que chegou às semifinais da Copa do Mundo de 2022 com uma seleção repleta de jogadores nascidos na Europa, é um objetivo ambicioso demais para o futebol palestino em seu estágio atual, mas a mesma estratégia pode ajudar a equipe a sonhar com o mundial, o que seria uma façanha esportiva e política.
"Com tudo o que está acontecendo na Palestina neste momento, conseguir a classificação seria uma grande conquista para os jogadores e para todo o país”, disse o meia Mohammed Rashid ao site da FIFA, em março. “Em termos do nosso lugar no cenário internacional, seria a melhor coisa que poderia acontecer para o nosso país”, afirmou.