F.Or.M. (15/3/24) - Paliativos não vão resolver a crise de fome na Faixa de Gaza
Qual seria a reação ocidental se o Estado Islâmico ou o regime iraniano estivessem, há cinco meses, realizando bombardeios indiscriminados e uma campanha de inanição contra civis?
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
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Corredor marítimo e ajuda aérea são inócuos diante do cenário
Todas as organizações humanitárias envolvidas com a crise de fome na Faixa de Gaza são unânimes em dizer que a única forma de evitar um agravamento ainda mais intenso do cenário é o reestabelecimento de corredores terrestres que permitam a entrada – rápida e em grande quantidade – de alimentos.
Ainda assim, as posturas dos governos de Israel e dos Estados Unidos continuam muito distantes de contemplar o sentido de urgência levantado pelas entidades. Em outras palavras, o governo Netanyahu está deliberadamente usando a fome como arma, com apoio de Washington.
Em 7 de março, Joe Biden anunciou a intenção de construir um píer temporário na Faixa de Gaza, por onde entrariam suprimentos vindos de um corredor marítimo no Chipre, onde seriam examinados antecipadamente.
O projeto pode ter rendido frutos eleitorais a Biden – talvez aplacando a fúria de setores que não querem a volta de Donald Trump, mas que desprezam a postura do atual presidente com relação a Gaza – porém terá pouca relevância no curto prazo. Trata-se de um projeto militar, que só deve começar a funcionar dentro de 60 dias.
Diante disso, informou a Reuters na terça-feira 12, Biden estaria contemplando um projeto privado, que seria financiado por doadores. Esta alternativa poderia ficar pronta na metade do tempo e seria um complemento à iniciativa militar. Ainda assim, não resolve o problema urgente.
Outra ação que prossegue é o envio de ajuda aérea, que vem sendo organizada por alguns países. No domingo 10, a Sky News acompanhou uma equipe da força aérea da Jordânia, que realizou o envio de oito pallets com suprimentos. A reportagem deixa claro que o esforço para essas missões é enorme e o resultado prático, ínfimo.
Na terça-feira 12, um comboio do Programa Mundial de Alimentos da ONU recebeu autorização de Israel para utilizar um novo corredor terrestre com o objetivo de entregar suprimentos na região norte da Faixa de Gaza. Seria um “projeto piloto” para testar o funcionamento desta rota.
Conforme informou a Reuters, a quantidade de alimentos entregue contempla apenas 25 mil pessoas (não fica claro por quanto tempo), o que está muito distante do necessário. Em fevereiro o Conselho de Segurança da ONU foi informado de que quase 600 mil pessoas estão à beira da inanição no norte da Faixa de Gaza. Ainda não está claro se essa rota continuará a ser utilizada e sob quais condições.
Na quinta-feira 14, o esloveno Janez Lenarcic, Comissário da União Europeia para Ajuda Humanitária e Gestão de Crise, foi claro ao culpar Israel pela situação, como contou a Reuters.
“Sobre as rotas marítimas e aéreas para ajuda humanitária a Gaza, serei muito claro: nós e outros estamos fazendo isso exclusivamente porque Israel não está abrindo abrir mais rotas terrestres. (…) Existe o risco de fome (…) Já temos uma indicação muito forte e crível de que já existem bolsas de fome na Faixa de Gaza."
Diante dessa frase, vamos refletir. Apenas imagine a reação do mundo ocidental se o Estado Islâmico, o regime chinês, o venezuelano ou o iraniano estivessem há cinco meses bombardeando 2,2 milhões de pessoas de forma indiscriminada e, ao mesmo tempo, atuando para matar ao menos parte delas de fome.
A diferença entre o que você pode imaginar e o que está acontecendo é o tamanho da hipocrisia das lideranças e das sociedades ocidentais.
"As pessoas esperam que Israel nos destrua com uma bomba nuclear para que nos livremos dessa dor"
A frase acima é de Mohammed Alshannat, morador da cidade de Gaza. Ele é doutorando em linguística por uma universidade da África do Sul e vinha trabalhando em sua tese quando o 7/10 foi realizado pelo Hamas.
A frase aparece em uma coluna publicada no domingo 9 por Nicholas Kristof, articulista do New York Times. Kristof selecionou algumas informações que Alshannat enviou para uma colega de doutorado, Lindsay Houghton, e as publicou com autorização.
O relato mostra a rotina de destruição à qual a população palestina da região vem sendo submetida por Israel. Alshannat relata como sua família conseguiu escapar dos bombardeios aéreos e de artilharia israelenses; que sua irmã, mãe de quatro crianças, precisa de uma cirurgia urgente, mas que não conseguiu realizá-la; que os remédios de diabetes de sua mãe acabaram e que ela está passando mal.
A fome é, porém, a parte central do relato. O primo de Alshannat foi morto enquanto buscava comida. A família encontrou seu corpo, parcialmente devorado por cães, ainda segurando potes de atum enlatado deixados para trás por soldados israelenses; a prima, uma neurocirurgiã de 45 anos, perdeu seu filho único, um bebê de dois meses, por não conseguir amamentá-lo – desnutrida, não tinha leite para a criança.
Em determinado momento, a família de Alshannat comeu folhas de árvores; em fevereiro, ele e sua mulher passaram a fazer uma única refeição a cada dois dias para preservar o que conseguiam para as crianças; essa refeição era pão feito de feno, o que fez o casal começar a defecar sangue.
Quando a coluna foi publicada, a última mensagem de Alshannat era de 29 de fevereiro. Não se sabe se ele está vivo. Dias antes do último texto, após informar que seus filhos não paravam de chorar de fome, ele escreveu que "as pessoas esperam que Israel nos destrua com uma bomba nuclear para que nos livremos dessa dor."
Como escreve Kristof, este é apenas o relato de um dos 2 milhões de palestinos da Faixa de Gaza.
Outro material interessante neste sentido foi publicado na quinta-feira 14 pela New Lines Magazine. É um relato, em forma de diário, escrito por Talat Qudaih, crítico literário palestino que mora em Gaza: Um Diário da Destruição de Gaza. Fica claro que Israel está destruindo não apenas a infraestrutura e as vidas em Gaza, mas também o espírito dos que conseguem escapar.
Mais fragmentos de histórias semelhantes aparecem na reportagem abaixo, levada ao ar na segunda-feira 11 pelo Channel 4.
Até médicos foram torturados pelas forças israelenses
Em 8 de março, a BBC publicou uma reportagem baseada em um relatório da UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinos, que mostra como os abusos cometidos por forças israelenses contra prisioneiros palestinos são uma prática corriqueira.
O relatório é interno e não foi divulgado, mas a emissora teve acesso a ele. Os relatos foram obtidos a partir de entrevista com 100 pessoas que estiveram entre os mil prisioneiros a quem a UNRWA teve acesso após sua libertação de instalações militares israelenses na Faixa de Gaza.
Os abusos incluem “ser despido e espancado, ser forçado a ficar em gaiolas e atacado por cães, forçado a posições de estresse por longos períodos e submetido a "traumas contundentes", incluindo coronhadas de armas e botas, resultando em alguns casos em "costelas quebradas, ombros separado e lesões duradouras".
Ainda segundo a BBC, “tanto homens como mulheres relataram ‘ameaças e incidentes de violência e assédio sexual’, incluindo toques inadequados nas mulheres e espancamentos nos órgãos genitais dos homens.”
Na terça-feira 12, a mesma BBC revelou imagens que obteve da ação militar de Israel no hospital Nasser, em Khan Younis. O padrão de atuação é o mesmo. Os vídeos mostram a prática israelense de despir, vendar e enfileirar prisioneiros palestinos, mas o detalhe deste vídeo específico é que os prisioneiros da vez são médicos e funcionários do hospital.
De acordo com as testemunhas, a equipe médica foi mantida nessas condições por horas, torturada e parte foi libertada após alguns dias. Alguns estão desaparecidos. Ahmed Abu Sabha, um médico entrevistado pela BBC, teve a mão quebrada por um soldado israelense.
O Estado israelense autoriza a violência cotidiana
Duas histórias, uma ocorrida na Faixa de Gaza e outra na Cisjordânia, mas ambas nesta semana, ilustram como o aparato estatal israelense se configurou em uma máquina de destruição da sociedade palestina, incapaz de colocar limites às ações criminosas de seus integrantes.
Na segunda-feira 11, o Times of Israel contou que o general Barak Hiram foi censurado pelo Exército de Israel por implodir o prédio da Universidade Israa, na Faixa de Gaza. Essa foi apenas uma das várias edificações civis destruídas por Israel desde outubro, outro descalabro que gera pouca ou nenhuma indignação no mundo ocidental.
Hiram disse que determinou a implosão do prédio porque suas tropas se sentiam em perigo devido à inteligência de que o Hamas tinha uma rede de túneis sob a universidade e temia que seus agentes pudessem emboscá-los.
O caso foi “minuciosamente investigado” e Hiram foi censurado. Mas não por ter implodido um prédio civil, que seria fundamental na reconstrução de Gaza. Ele foi punido por não ter pedido autorização. “Se você tivesse apresentado o pedido de demolição da universidade para minha aprovação, eu o teria aprovado”, disse o general Yaron Finkelman, seu superior, segundo o jornal.
No campo de refugiados de Shuafat, em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia, Rami Hamdan Al-Halhouli, de 12 anos, foi assassinado na terça-feira 12 por um policial de fronteira israelense com um tiro no coração. O menino foi morto porque o policial avaliou que ele “colocou as forças em perigo ao disparar fogos de artifício aéreos em sua direção".
O Times of Israel, escreveu que o garoto estava envolvido um distúrbio no qual foram arremessados coquetéis molotov contra a polícia e o “muro de separação” erguido por Israel duas décadas atrás.
O vídeo do episódio, que está na mesma reportagem do ToI, não traz evidências de envolvimento com qualquer turba ameaçadora. Mostra o garoto com o fogo de artifício na mão, indo em direção à barreira. O tiro o acerta antes de os fogos dispararem. A afirmação do governo e do jornal israelenses também são contrapostos pelos depoimentos dos familiares do garoto. À BBC, seus pais disseram que ele estava brincando com os amigos após quebrar o jejum do Ramadã.
Após o episódio, Itamar Ben-Gvir, ministro da segurança de Israel, manifestou apoio ao policial que deu o tiro. Afirmou que ele era um “herói” e fez um “trabalho exemplar” ao matar o “terrorista” de 12 anos.
“A Síria também precisa desesperadamente de um cessar-fogo”
Na segunda-feira 11, a Comissão de Inquérito sobre a Síria apresentou um novo relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e informou que os níveis de violência no país são os mais altos desde 2019/2020. A comissão é presidida pelo brasileiro Paulo Sergio Pinheiro, autor da frase que intitula esta seção.
A ampliação da violência tem relação com o fato de que todos as frentes de batalha estão atualmente ativas.
Forças israelenses, norte-americanas e iranianas se enfrentam no país desde que teve início a ação militar de Israel na Faixa;
Remanescentes do Estado Islâmico continua atuando, em especial nas zonas rurais, onde seus alvos são os civis;
No sul, há ataques esporádicos entre as forças da Jordânia e traficantes de captagon, um tipo de anfetamina que se tornou fonte de renda para o regime Assad
Na região norte, a Turquia e seus aliados aceleraram os ataques contra as majoritariamente curdas Forças Democráticas da Síria (SDF);
No nordeste do país, os jihadistas do Hayat Tahrir el-Sham (HTS) enfrentam as forças do regime de Bashar al-Assad e seus aliados russos e iranianos;
Segundo a comissão, há rgistros de crimes de guerra cometidos recentemente por forças do regime sírio, da Rússia e da Turquia. Enquanto os dois primeiros bombardearam recentemente hospitais, escolas, mercados e campos de refugiados internos, as forças turcas atacaram estações de energia, deixando 1 milhão de pessoas sem água e energia por semanas
Além da violência, o país enfrenta ainda o rescaldo do devastador terremoto de fevereiro de 2023. Atualmente, 16,7 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária na Síria e 90% da população vive na pobreza.
Por fim, o relatório “lembra” à comunidade internacional que dezenas de milhares de parentes, e vítimas, de guerrilheiros do Estado Islâmico, a maioria mulheres e crianças, de 50 nacionalidades diferentes, continuam detidos nos campos de refugiados de Al-Hol e Roj, transformados em prisões a céu aberto. É um escândalo de proporções gigantescas que foi alvo de reportagem publicada na segunda-feira 11 pela revista New Yorker.
Eleições no Irã aprofundam domínio da linha-dura
No dia 1º, o Irã foi às urnas para eleger os novos membros do parlamento e da Assembleia do Peritos, órgão responsável por supervisionar a atuação do líder supremo. O pleito teve o menor comparecimento desde 1979, quando a República Islâmica foi fundada: apenas 41% dos eleitores apareceram.
O número é revelador da crescente ilegitimidade do regime islâmico diante da sociedade iraniana. O jugo dos clérigos e dos militares sobre a população, porém, está arraigado em uma rede de apoio ao regime que dificilmente será removida em um curto espaço de tempo.
Esta análise publicada pelo site Amwaj Media na terça-feira 12 mostra como os resultados fortaleceram o bloco linha-dura, que agora vai buscar espaço em detrimento de conservadores tradicionais que também estão na base do regime.
A disputa entre a linha-dura e os conservadores se segue aos movimentos anteriores da política iraniana, que viram a remoção dos reformistas e, depois, dos conservadores pragmáticos da política iraniana.
Para quem se interessa em conhecer os meandros da política do Irã, recomendo a leitura do capítulo 2 de minha tese de doutorado.