Como o 11 de Setembro mudou os EUA e o Oriente Médio e moldou o mundo atual
Vinte e dois anos depois, os atentados só podem ser entendidos em toda a sua extensão se observarmos os efeitos em cadeia provocados por eles
O resumo do texto, em três pontos:
A ação da Al-Qaeda provocou uma onda de nacionalismo nos EUA, canalizada para justificar as invasões do Afeganistão e do Iraque;
A reação de Washington fez das duas últimas décadas as mais violentas da história moderna do Oriente Médio;
A postura norte-americana salientou o alto grau de hipocrisia de sua política externa e provocou reações cujos reflexos persistem até hoje.
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A importância do 11 de Setembro pode ser mensurada pelo impacto imediato causado por aqueles atentados. A imensa maioria das pessoas com idade suficiente para ter acompanhado os ataques se lembra exatamente onde estava e o que fazia quando recebeu a notícia naquele dia em 2001.
O 11 de Setembro é, também, um episódio cuja relevância cresce à medida que o tempo passa. Observado em retrospectiva, pode ser classificado como o evento geopolítico mais importante do século XXI. Suas consequências moldaram, em larga medida, o mundo contemporâneo.
A derrubada do World Trade Center e a destruição de parte do Pentágono provocaram uma reação em cadeia. Seu estopim foi o efeito profundo causado na sociedade e nas elites norte-americanas. O resultado foi uma guinada na política externa dos EUA, mais expansiva e unilateral a partir dali, aproveitando o espaço político existente – naquele momento, a Rússia ainda se recuperava do fim da União Soviética e a China estava na fase inicial de sua decolagem.
Ao longo das duas últimas décadas, o alargamento da presença norte-americana gerou uma série de reações na direção oposta, tanto por parte de governos como de atores não-estatais. A partir da interação entre essas forças, colocadas em movimento pelo 11 de Setembro, foram construídas várias das características da política internacional da atualidade.
Medo, raiva, nacionalismo e um poderio militar sem equiparação
O horror dos atentados engolfou a sociedade norte-americana em um ciclo de medo e fúria. A facilidade da ação terrorista e o tamanho do dano (e, posteriormente, as múltiplas falhas das agências de inteligência) criaram uma enorme sensação de vulnerabilidade.
Além disso, o ataque foi realizado quando os EUA se encontravam no auge de seu poder. Uma década depois do fim da Guerra Fria, o modelo norte-americano havia vencido o comunismo soviético e reinava sem disputa.
Neste clima, os EUA mergulharam em uma onda de nacionalismo. As disputas políticas e sociais entre democratas e republicanos ficaram de lado, a popularidade de George W. Bush explodiu e boa parte da imprensa deixou em segundo plano princípios básicos de ética e independência, comportamento emulado por muitos acadêmicos, artistas, empresários e outros setores das elites.
Para os neoconservadores instalados na Casa Branca, o 11 de Setembro ensejava não apenas uma oportunidade mas a necessidade de Washington exercer uma política externa intervencionista, com foco na “promoção da democracia”.
O primeiro alvo, obviamente, era o Afeganistão, controlado pelo Talibã, protetor de Bin Laden. O país foi atacado e posteriormente invadido em outubro de 2001, em uma ação militar chancelada pela maior parte do mundo em meio à onda de solidariedade pró-EUA.
A invasão do Iraque, 18 meses depois, tem uma outra história. Aqui, a obsessão de muitos integrantes do círculo íntimo de Bush com o país – parcialmente derivada do fato de terem atuado com seu pai, George H. W. Bush, que atacou o Iraque em 1990 – fundiu-se à arrogância da superpotência ferida.
Motivada por elementos econômicos, geopolíticos, ideológicos e religiosos, a Casa Branca de Bush construiu um caso falso contra Saddam Hussein. Apesar de muitas lideranças mundiais alertarem para os perigos de uma invasão do Iraque e para as mentiras que a justificavam, a opinião pública e a opinião publicada nos EUA eram majoritariamente favoráveis a ela, silenciando os poucos divergentes.
O ataque contra o Iraque foi uma ação praticamente unilateral, apoiada apenas por Reino Unido, Polônia e Austrália. Pior, era uma missão sem escopo definido, sem planejamento para a fase pós-Saddam, sem ideias a respeito do entorno regional iraquiano e sem um projeto de saída do país. Foi um fiasco, com muitos efeitos nocivos.
O 11 de Setembro e o Oriente Médio
Como se diz em inglês, é “difícil de subestimar” o tamanho do dano causado para o Oriente Médio pela reação dos EUA ao 11 de Setembro. As vidas de todas as centenas de milhões de pessoas da região foram impactadas, em especial no Iraque e no Afeganistão. Para os mais jovens nesses países, a totalidade, ou boa parte de suas existências, se deu sob a égide da presença norte-americana.
A “agenda da liberdade” de Bush previa que o Afeganistão e, especialmente, o Iraque, se tornariam exemplos de democracia capazes de influenciar o entorno. Ao mesmo tempo, esperava-se, a pressão da Casa Branca sobre seus aliados promoveria uma paulatina democratização dos regimes autoritários. A expectativa era promover um ambiente de moderação e a redução da força dos terroristas. Nada disso aconteceu.
A campanha por democratização foi sustada após partidos islamistas – como a Irmandade Muçulmana no Egito e o Hamas nos territórios palestinos – obterem sucessos eleitorais. Já a lógica securitária da “Guerra ao Terror” se manteve firme, mas foi usada pelos regimes da região para reforçar a pressão contra adversários políticos, cada vez mais retratados como terroristas.
Vinte e dois anos depois, a sociedade iraquiana ainda luta para conseguir viver em um Estado capaz de prover dignidade, enquanto o Afeganistão voltou a ser controlado pelo Talibã. A implantação da democracia de cima para baixo naufragou, assim como a luta contra o terrorismo.
Bonança para a Al-Qaeda
Uma das mentiras usadas para justificar a invasão do Iraque foi a ideia de que Saddam Hussein tinha um elo com a Al-Qaeda, supostamente instalada no país. A derrubada de Saddam, argumentavam a Casa Branca e seus apologistas, seria o ponto final da organização terrorista no Iraque.
Na prática, Washington promoveu o contrário. A organização de Osama bin Laden se instalou no Iraque imediatamente após a invasão do país e viveu um período de bonança graças ao caos deflagrado pelas tropas norte-americanas.
A presença dos EUA na região fortaleceu tanto o recrutamento quanto o financiamento do terrorismo. Em parte, porque a ocupação destruiu as instituições iraquianas, jogando boa parte da sociedade em um cenário de descalabro, ideal para ser explorado pelos radicais religiosos.
Ao mesmo tempo, financiadores e recrutas dos extremistas foram encorajados pois a invasão reavivou um sentimento de impotência no mundo árabe diante dos estratagemas das grandes potências.
Como escreveu o jornalista libanês Samir Kassir, um homem que dedicou a vida a combater radicais religiosos, a invasão do Iraque foi mais uma ocasião, entre tantas outras, na qual os cidadãos do Oriente Médio tiveram seus destinos moldados externamente.
A “Guerra ao Terror” fez muitas vítimas no Ocidente, como por exemplo nos atentados em Madri (2004) e Londres (2005), mas muitas mais no Oriente Médio. Rapidamente, provou-se correta a análise do ditador egípcio Hosni Mubarak – em 2003, ele afirmou que, após a invasão do Iraque, o mundo não teria apenas um Osama bin Laden, mas cem Bin Ladens.
O Iraque invadido se esfacelou. É impossível saber exatamente quantos iraquianos morreram por conta da ocupação, mas algumas estimativas falam em centenas de milhares de mortes. Para o Afeganistão, o quadro não é muito melhor. Ao menos 66 mil policiais e 47 mil civis afegãos foram assassinados.
Hoje, a “Guerra ao Terror”, levada a cabo não com grandes operações militares, mas com drones e discretas ações de forças especiais, não afeta apenas o Oriente Médio, mas deixa um rastro de destruição e violência política também por boa parte da África.
Irã, “eixo do mal” e “mudança de regime”
É fácil encontrar em análises produzidas no Ocidente e mesmo no Brasil referências às políticas ‘malignas’ do regime iraniano. Sem dúvida, as ações do Irã são altamente problemáticas para o Oriente Médio e fazem da região um lugar mais violento. Aparece menos nos comentários políticos o contexto em que as decisões em Teerã são tomadas.
Quando o 11 de Setembro ocorreu, o regime iraniano passava por uma fase moderada para seus padrões, na qual a liderança naquele momento fazia importantes acenos para o entorno regional e o Ocidente, com vistas a melhorar as relações. O mais importante deles foi a cooperação militar com os EUA no pós-11 de Setembro, calcada na oposição comum ao Talibã.
A incipiente parceria ensejava um diálogo menos tenso entre Washington e Teerã, mas ela foi dinamitada por Bush. O presidente dos EUA conseguiu isso ao elencar o Irã (ao lado de Iraque e Coreia do Norte) no “eixo do mal” descrito por ele em um discurso feito no fim de 2002.
No debate sobre a política externa norte-americana, este discurso tem pouco valor, mas, para a política externa do Irã, trata-se de um episódio crucial. Para compreender isto, é preciso que nos coloquemos no lugar da liderança iraniana. Este exercício não tem o intuito de justificar as ações de Teerã, mas de compreendê-las.
A liderança no Irã é, por uma série de motivos, profundamente antiocidental e antiamericana. Após o 11 de Setembro, procurou aliviar as relações com EUA, mas se encontrou no seguinte cenário: Afeganistão e Iraque, seus mais importantes vizinhos, haviam sido invadidos pelos EUA, e eram ocupados por centenas de milhares de soldados norte-americanos e aliados.
Além disso, o Irã havia sido incluído no “eixo do mal” e, portanto, na alça de mira da política de “mudança de regime” da Casa Branca. Para completar, no mesmo período, começaram a vazar as primeiras informações a respeito do programa nuclear clandestino do Irã, o que inflamou ainda mais a retórica da elite política dos EUA contra o Irã.
Diante deste quadro, a linha-dura do regime iraniano se fortaleceu internamente e passou a colocar em prática uma política externa dedicada a obter capacidade retaliatória contra os EUA e seus aliados no Oriente Médio, de modo a desencorajar uma eventual invasão. A relação entre Teerã e Washington pelas duas décadas seguintes, assim, foi diretamente guiada por essa questão.
Fundamental é destacar que a busca iraniana por obter tal capacidade retaliatória contra os EUA ensejou, em outras lideranças do Oriente Médio, temores análogos aos experimentados pelo regime iraniano. Foram os casos, entre outros, de Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Israel. Assim se formou a lógica geopolítica do Oriente Médio atual: para diluir a ameaça norte-americana, o regime do Irã expande seu alcance, mas essa expansão ameaças outros países, que reagem.
Após o terremoto político da Primavera Árabe, em 2011, essa dinâmica geopolítica perversa se acentuou. E, ao mesmo tempo, uma outra dinâmica deflagrada pela presença norte-americana e pelas reações a ela continuava a ganhar corpo: a expansão e a proliferação do terrorismo. Como se sabe, é no caos e no desespero que o terror floresce, e o resultado das múltiplas ações militares realizadas no Oriente Médio não é outro a não ser este: o caos.
A fusão dessas duas dinâmicas resultou na emergência, em 2015, do Estado Islâmico. Responsável por elevar ainda mais o nível de tensão e violência no Oriente Médio, o grupo perdeu os territórios obtidos, mas continua a ser uma ameaça, tanto no Oriente Médio quanto na África.
Direitos humanos e geopolítica
Para além do Oriente Médio, as ações dos EUA no rescaldo do 11 de Setembro tiveram efeitos sobre a política internacional também no nível global. As invasões do Afeganistão e do Iraque foram facilitadas pela grande margem de manobra norte-americana no início do século XXI, mas tiveram como resultado encerrar esta fase de domínio geopolítico inquestionável.
Por um lado, isso se deu no campo moral. As elites norte-americanas estão acostumadas a retratar sua política externa como uma força positiva para o mundo, por defender ideias de liberdade e direitos humanos. O Oriente Médio é, porém, a região onde a hipocrisia norte-americana fica mais exposta.
As múltiplas e atrozes violações cometidas nas ocupações do Afeganistão e do Iraque, além de Guantánamo e dos black sites da CIA, demonstraram como a bandeira dos direitos humanos é usada, em larga medida, apenas quando é conveniente aos interesses norte-americanos. Na prática, o resultado disso é a deslegitimação de uma causa fundamental para o mundo. Os EUA poderiam ser seus principais defensores, mas a prática demonstra que este não é o caso.
Por outro lado, a invasão do Iraque ajudou a criar resistências no campo prático à ordem dominada pelo EUA. Isso é real no caso da China, mas principalmente quando se trata da Rússia. No caso específico do regime de Vladimir Putin, 2003 foi um alerta importante a respeito das políticas de mudança de regime, que se tornaram uma obsessão de Moscou desde então.
A relação entre EUA e Rússia começou a se deteriorar intensamente após a Revolução Laranja na Ucrânia, em 2004, interpretada por Putin como uma versão atenuada do que ocorrera no Iraque. Nos anos seguintes, outros episódios, como a derrubada de Muamar Qadhafi, em 2013, foram entendidos como exemplos ainda mais evidentes de que, sem resistência, os EUA continuariam a realizar ataques e invasões quando conveniente. A reação russa teve início com a operação a favor do regime de Bashar al-Assad na Síria, em 2015, e chegou ao auge com a invasão da Ucrânia, em 2022.
Ao observadores mais atentos, não passaram despercebidas as semelhanças entre esta última operação militar e a ocupação do Iraque: ambas são baseadas em mentiras clamorosas, feitas à revelia das leis internacionais e responsáveis por inúmeros abusos.
Curiosamente, a semelhança não escapou nem mesmo a George W. Bush. Em maio de 2022, ao criticar Putin e denunciar “a decisão de um único homem de lançar uma invasão completamente injustificada e brutal”, Bush citou o Iraque e não a Ucrânia como objeto da invasão. Um ato falho que resume boa parte dos últimos 22 anos e sua enorme parcela de responsabilidade – a maior de todas, diga-se – nas mazelas de nosso mundo.
O 11 de Setembro e as invasões do Afeganistão e do Iraque não explicam na totalidade a política internacional que temos hoje, mas esta é incompreensível se não olharmos com atenção para os impactos naquele dia em 2001.