F.Or.M. (1/3/24) - Você sabe o que está acontecendo na Cisjordânia?
Enquanto a fome se alastra na Faixa de Gaza, governo israelense e colonos ampliam a violência e a pressão contra palestinos na Cisjordânia
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
Em junho de 2023, quando Tarkiz iniciou suas atividades, um dos temas principais no radar era a situação na Cisjordânia. Este território foi tomado por Israel em 1967 e, conforme os Acordos de Oslo nos anos 1990, deveria ser um dos núcleos de um Estado palestino, ao lado da Faixa de Gaza.
Os acordos não foram totalmente colocados em prática, porém, e a Cisjordânia ficou paralisada numa condição que deveria ser transitória. As áreas urbanas são, em tese, governadas pela Autoridade Palestina, o órgão criado para ser o futuro Poder Executivo do Estado palestino. O poder de fato, contudo, tanto nas cidades quanto nas áreas rurais, está integralmente nas mãos do governo de Israel.
A perenização deste cenário temporário serviu para fomentar um dos principais obstáculos à criação do Estado palestino: os assentamentos israelenses na Cisjordânia.
A ocupação iniciada em 1967 é ilegal segundo o direito internacional, mas a construção dos assentamentos na região, também. Trata-se de uma violação em separado da primeira, por consistir transferência de população para um território ocupado.
Não estamos falando de poucas pessoas. Segundo números oficiais, há 517 mil assentados vivendo na Cisjordânia em 279 assentamentos, sendo que 147 deles são ilegais não apenas conforme o direito internacional, mas também à luz das leis israelenses. A eles se somam os mais de 220 mil que vivem em Jerusalém Oriental (assunto para outro momento).
Este quadro é resultado de uma política deliberada levada a cabo através das décadas por todos os governos israelenses desde 1967. Gabinetes de direita, esquerda e centro facilitaram ou patrocinaram a construção e a ampliação dos assentamentos, alguns dos quais se tornaram, hoje, grandes cidades.
Os principais entusiastas do esbulho da terra palestina e da transferência populacional israelense são os partidos e movimentos políticos da direita secular e da direita religiosa de Israel.
O objetivo conjunto desses grupos é impedir o estabelecimento de um Estado palestino e anexar a Cisjordânia a Israel, preferencialmente expulsando os palestinos da região ou então mantendo-os como cidadãos de segunda classe.
A vitória de uma coalizão ultrarradical nas eleições de novembro de 2022 piorou a situação na Cisjordânia de forma drástica – e por isso o tema estava candente em 2023, quando Tarkiz teve início. A guerra na Faixa de Gaza tirou, no entanto, o foco dos eventos nesta região, o que é compreensível diante do escândalo que se verifica em Gaza, mas a deterioração das condições de vida dos palestinos se intensificou ainda mais, uma vez que o clima político encorajou os elementos mais extremistas entre os assentados.
Para ajudar a trazer a questão da Cisjordânia ao foco, esta edição do Filtro do Oriente Médio é dedicada especialmente a esta região.
Qual é o cenário na Cisjordânia?
Se você não conhece bem a história da Cisjordânia, recomendo que veja os vídeos abaixo, publicados em 2016 pelo site americano Vox.
Eles são, em minha avaliação, as melhores fontes audiovisuais para entender a situação, pois mostram de forma didática uma parte da realidade cotidiana na região.
Bloqueios, obstáculos e o famigerado “muro de separação” erguidos por Israel criaram uma vida tranquila e próspera para os assentados, enquanto a vida dos palestinos, em todas as suas dimensões – pessoal, profissional, econômica etc – vem sendo inviabilizada.
Como complemento aos vídeos, o mapa abaixo é um outro importante recurso visual. Produzido pelo Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA), ele mostra o que eram, em agosto de 2023, os 645 obstáculos criados por Israel para cercear a locomoção dos palestinos na Cisjordânia.
São postos de controle e barreiras físicas de tipos variados. Aqui, você pode ver o material em uma resolução mais alta.
Na segunda-feira 26, o Arab Center de Washington (um think tank financiado pelo governo do Catar) publicou artigo escrito pela professora Yara M. Asi, da Universidade Central da Flórida, no qual ela resume a história recente do agravamento dos bloqueios.
Ela mostra como a restrição da circulação dos palestinos tem relação com a primeira e a segunda intifadas – levantes populares realizados entre 1987 e 1993 e 2000 e 2005 – mas que seu escopo é muito mais amplo do que o objetivo alegado de garantir a segurança da população israelense.
Smotrich, Ben-Gvir, expulsões e mortes
A situação na Cisjordânia piorou após a formação de um novo governo por Benjamin Netanyahu, em novembro de 2022, porque ele deu papel proeminente a duas figuras ultrarradicais.
São eles Bezalel Smotrich, autoproclamado fascista, que se tornou ministro das Finanças, e Itamar Ben-Gvir, um homem condenado por apoio ao terrorismo, escolhido ministro da Segurança Nacional.
Ambos são defensores da limpeza étnica da Cisjordânia e de sua anexação a Israel. Investidos em seus cargos, passaram a colocar essas ideias em prática.
Em fevereiro de 2023, Smotrich recebeu grandes poderes sobre a Cisjordânia e assumiu funções que antes eram dos militares, como a alocação de terras e a regularização de construções na região. Mostrei neste texto de julho de 2023 que esse foi um dos mais importantes passos na anexação da Cisjordânia por Israel.
Ben-Gvir, por sua vez, usa seu cargo para exercer uma grande influência sobre a polícia israelense. Como mostra este relatório da Associação para Direitos Civis em Israel, ele procura dar à polícia a “capacidade de agir livremente, limitando a supervisão legal e o escrutínio público” sobre suas ações. Seus alvos prioritários são os palestinos.
O efeito da proeminência política de Smotrich e Ben-Gvir a partir do fim de 2022 foi uma onda de violência contra palestinos na Cisjordânia, organizada pelos setores radicais dos colonos israelenses, acoplada a um aumento da pressão estatal sobre esta mesma população.
O resultado disso? Em 2023, 4 mil palestinos foram expulsos de suas casas na Cisjordânia, o maior número desde 2009, quando as estatísticas começaram a ser compiladas pelo OCHA da ONU.
Após o 7/10, a situação degringolou. Desde os ataques do Hamas, mais de 7,2 mil palestinos foram presos pelas forças israelenses na Cisjordânia. Além disso, até quinta-feira 29, o conflito deixou 404 palestinos mortos na Cisjordânia e em Israel, incluindo 102 crianças, e 4.592 feridos, sendo 708 crianças.
O número de vítimas israelenses é bem menor: são 13 mortes, sendo quatro de militares, e 86 feridos.
A dinâmica do roubo de terra em Hebron
Materiais publicados nesta semana colocam uma lente de aumento sobre alguns casos que ilustram a violência e a campanha para expulsar palestinos de suas terras remanescentes.
Na segunda-feira 26, o Channel 4, canal britânico, publicou uma reportagem fruto de 14 meses de visitas ao distrito de Masafer Yatta, na região de Hebron, cidade no sul da Cisjordânia.
Os jornalistas acompanharam a família beduína de Hafez Huraini, que há décadas resiste à expansão da ocupação. Na primeira parte da reportagem, em novembro de 2022, os assentados tentavam roubar a terra dos Huraini ocupando-a com animais e contando com a anuência da polícia e do exército israelenses.
Cinco dias após o 7 de outubro, a situação muda. Os colonos continuam avançando, mas agora fardados e armados com fuzis automáticos. A polícia não apenas faz vistas grossas às ações como participa delas, invadindo a casa de Hafez Huraini, onde ele é espancado.
Pior sorte teve seu primo, que levou um tiro no abdome (foto acima), disparado à queima-roupa por um assentado que carregava uma arma automática. O homem foi identificado, mas não foi preso. Sua punição foi perder a arma.
Em janeiro, última vez que jornalistas estiveram no local, Hafez contou que a região estava basicamente sitiada pelos assentados, que agora funcionam como se fossem a polícia local, impedindo o deslocamento dos palestinos.
Na quarta-feira 28, o Washington Post publicou uma reportagem também sobre Hebron, mas focada no perímetro urbano da cidade. Dividida pelos Acordos de Oslo, Hebron tem uma realidade distópica.
Há postos de controle por toda a cidade, alguns colocados em frente a residências de palestinos; ruas e trechos de ruas são proibidos para palestinos; colonos israelenses, instalados em casas erguidas em relevo mais alto que as residências palestinas, hostilizam, jogam pedras e lixo em seus vizinhos; tudo isso sob os olhares e o apoio dos militares israelenses.
Esta realidade foi retratada na reportagem abaixo, publicada pela Al-Jazeera em 2022, que mostra a jornalista palestina-americana Dena Takruri visitando a cidade, onde nasceu seu pai.
Na reportagem desta semana, o WPost mostra que o quadro geral na área urbana de Hebron piorou consideravelmente. A casa de um homem de 57 anos foi cercada com arame farpado; os postos de controle estão funcionando de forma mais intensa; soldados e colonos patrulham as ruas em conjunto; escolas e comércios foram fechados.
O nível de arbitrariedade, segundo os depoimentos, também é outro desde o 7/10, com soldados provocando crianças e adolescentes e esperando uma reação para prendê-los.
O resultado desta política é um aprofundamento do esvaziamento da cidade, com inúmeros imóveis residenciais e comerciais deixados para trás por palestinos que foram embora. “Eles não despejam você fisicamente, mas tornam impossível que você fique”, disse ao jornal o ativista Issa Amro.
Colonos falam abertamente sobre a colonização
Na segunda-feira 26, a revista New Yorker publicou uma reportagem de teor semelhante. Ela é centrada na figura de Bashar Ma’amar, um ativista que atua documentando o roubo de terras palestinas nas cercanias da vila de Qaryut, ao norte de Ramallah, sede da Autoridade Palestina. Os perpetradores são moradores dos assentamentos de Shilo e Eli, que cercam Qaryut.
Shilo foi construído sobre terras expropriadas do avô de Ma’amar. Eli, por sua vez, sobre outras áreas de Qaryut. A reportagem descreve um fenômeno que o sociólogo israelense Baruch Kimmerling chama de “anexação judicial”. Cada novo posto de ocupação informal estende o alcance do Estado de Israel por meio de proteção militar, alocação de terras, subsídios diretos ou indiretos e instalações de água, luz e rodovias.
Dois pontos são emblemáticos na reportagem. O primeiro é que a violência dos assentados, apoiada pela polícia e pelo exército e agravada após o 7/10, vem minando as lideranças palestinas que defendem uma resistência pacífica a Israel.
“Pessoas como eu, que defenderam a paz durante toda a vida, já não somos respeitados”, afirmou Hani Odeh, prefeito de Qusra, cidade na vizinhança. Segundo ele, os mais jovens questionam os protestos pacíficos. “Não há nada de pacífico na situação em que nos encontramos.”
Na quinta-feira 29, três dias após a reportagem ir ao ar com essas declarações, um palestino matou dois cidadãos israelenses nas cercanias de Eli – um homem de 57 anos e um adolescente de 16 anos – antes de ser morto.
O outro ponto é o alto nível de extremismo da vanguarda do movimento de assentados. Em determinado momento, o repórter narra sua visita a uma fonte de água que pertencia à vila de Qaryut e foi tomada pelos assentados. A conversa é emblemática pois mostra que os próprios assentados enxergam a sua atuação como uma empreitada colonial, à semelhança do que fazem os críticos de Israel.
Cerca de dez rapazes trabalhavam para transformar uma das bacias de concreto numa piscina. “Venha dentro de uma semana com shorts e você poderá aproveitar”, disse-me [Ariel] Elmaliach [o prefeito de Eli]. Ele perguntou ao grupo por que eles estavam fazendo esse trabalho. “Para ter mais espaço no assentamento”, disse um menino de cerca de quinze anos.
“Pela nossa pátria”, disse Nadav Levy, um homem barbudo de vinte e poucos anos. Ele acrescentou que não entendia por que as pessoas em Qaryut estavam chateadas com o seu projeto: “Na minha perspectiva, tudo isto é nossa terra”.
Ory Shimon, de 20 anos, disse sentir que Israel estava sendo injustamente examinado: “[Os Estados Unidos vieram] com navios e mataram todos os índios e os tornou escravos. É terrível, mas agora a América não diz: ‘Lamentamos, pegue a sua terra de volta’”.
(…)
A fonte, disse Elmaliach, pertencia a eles, não a Qaryut. Mostrei-lhe um mapa da Administração Civil, o órgão governamental de Israel na Cisjordânia, mostrando que a fonte estava bem fora dos limites dos assentamentos. Eventualmente, ele disse: “Vou lhe dar uma resposta real. Se você está vindo para uma nova terra e agora é o proprietário dessa terra, então você coloca nessa terra as regras que deseja.”
Massacre em Gaza: mais de 100 morrem após ataque israelense
Na madrugada de quinta-feira 29, ao menos 104 pessoas morreram no bairro Rimal, na cidade de Gaza, após forças israelenses dispararem contra uma multidão que buscava farinha levada por um comboio de caminhões.
Israel diz que não teve culpa no episódio, mas múltiplos relatos de testemunhas obtidos por diversos veículos indicam exatamente o contrário. Coletei esses depoimentos e juntei todos neste outro post também enviado nesta sexta-feira 1º aos leitores.
Meio milhão de pessoas a um passo da inanição
As cenas da cidade de Gaza são mais uma evidência da calamidade na região em meio à inércia da comunidade internacional. Na terça-feira 27, mais uma vez, o Conselho de Segurança das Nações Unidas foi alertado a respeito da precariedade da situação.
Desta vez, o porta-voz do informe foi Ramesh Rajasingham, diretor da Divisão de Coordenação do OCHA. Ele destacou que, em dezembro, o conselho foi avisado de que, em fevereiro, toda a população da Faixa de Gaza – 2,2 milhões de pessoas – enfrentariam “elevados níveis de insegurança alimentar aguda”.
Segundo Rajasingham, esta é a maior quantidade já registrada de pessoas enfrentando este nível de insegurança alimentar. E completou: “E aqui estamos nós, no final de fevereiro, com pelo menos 576 mil pessoas em Gaza – um quarto da população – a um passo da inanição.”
Um dia antes da fala de Rajasingham, o canal britânico ITV levou ao ar uma reportagem com imagens da cidade de Gaza. Elas mostram milhares de pessoas na região costeira da cidade, esperando a chegada de algum tipo de suprimento. Desesperado, um homem diz:
“Eu desejo que as crianças morram, porque não consigo dar pão a eles. Não consigo alimentá-los. Não consigo alimentar meus próprios filhos. Todos os dias há morte. Não há arroz, não há comida, não há farinha. O que nós fizemos para merecer isso?”
Uma reportagem publicada na quarta-feira 28 pelo jornal emirati The National traz mais relatos que descrevem o quadro de crise de fome criado por Israel na Faixa de Gaza. O veículo entrevistou mulheres grávidas e lactantes que vêm tendo grande dificuldade de se manterem nutridas para alimentarem seus bebês.
Seus depoimentos são corroborados pelas falas de um médico e uma enfermeira do hospital Kamal Adwan, localizado no campo de refugiados de Jabalia.
“Recebemos muitos casos de crianças com sinais muito claros de desidratação e desnutrição (…)”, disse o Dr. Hussam Abu Safia, diretor do hospital (…). Ele disse que a desidratação afetou a maioria dos cidadãos no norte de Gaza nas últimas semanas devido à desnutrição, e que sofrem de fraqueza e perda significativa de peso.
“Há muitas crianças que chegam ao hospital com sinais de palidez, amarelamento da pele, fraqueza geral e emagrecimento devido à desnutrição”, disse. “A falta de fórmula infantil disponível agrava o sofrimento, especialmente dos recém-nascidos, devido à escassez de leite de mães completamente privadas de nutrição”, disse.
Amira Abu Nada, enfermeira, relatou que casos de desmaios e fraqueza avassaladora são uma ocorrência diária, em grande parte atribuíveis à má nutrição e à escassez de alimentos, agravados por complicações de saúde enfrentadas pelas pessoas deslocadas em abrigos.
“Recebemos crianças, mulheres e idosos, alguns dos quais passaram dias sem comida”, disse ela. “Tragicamente, a nossa capacidade de cuidar deles é severamente prejudicada pela falta de suprimentos, particularmente de suplementos nutricionais e vitaminas que poderiam mitigar a sua fome”, disse.
Israel não cumpriu determinação da Corte Internacional de Justiça
Na decisão provisória sobre a ação por genocídio aberta pela África do Sul contra Israel, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) determinou, entre outras coisas, que Israel deveria tomar “medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária urgentemente necessários para fazer face às condições de vida adversas enfrentadas pelos palestinos na Faixa de Gaza.”
A CIJ determinou, também, que em um mês o governo israelense deveria apresentar um relatório indicando como implementou essa e outras medidas do tribunal. Até a publicação desta edição, não havia informações a respeito do envio deste documento ou não.
Na segunda-feira 26, quando o prazo se esgotou, algumas organizações se pronunciaram, informando que o governo de Israel não apenas não seguiu a determinação da CIJ como as condições de entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza pioraram. Foram os casos da UNRWA, da Human Righs Watch e da Anistia Internacional.
Na segunda-feira 26, Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, afirmou que o mês de fevereiro registrou uma redução de 50% na quantidade de ajuda humanitária entrando em Gaza em comparação com janeiro.
A Anistia Internacional trouxe outros números. Segundo a entidade, nas três semanas seguintes à decisão da CIJ, o número de caminhões que entraram na Faixa de Gaza diminuiu cerca de um terço, de uma média de 146 por dia nas três semanas anteriores para uma média de 105 por dia nas três semanas seguintes.
A Anistia divulgou, ainda, o depoimento de um homem que tenta manter vivos a mulher e os quatro filhos, um deles recém-nascido, no norte da Faixa de Gaza, onde a fome é um problema ainda mais grave, como destaquei na edição do Filtro do Oriente Médio da semana passada.
O relato é desalentador:
Hamza, um residente do norte de Gaza, cuja esposa Kawthar deu à luz o seu quarto filho no dia 17 de fevereiro, disse à Anistia Internacional no dia 20 de fevereiro que a sua família de seis pessoas mal conseguia garantir meia refeição por dia devido à grave escassez de alimentos e água. Depois que os suprimentos de farinha e milho acabaram, eles recorreram à moagem de cevada e ração animal para fazer pão. “Agora até a forragem [animal] está se tornando escassa”, disse ele.
Sua esposa deu à luz no hospital Kamal Adwan, já não operacional, em Beit Lahia. Ela não tinha leite materno após o parto e tem lutado para alimentar seu bebê recém-nascido. “Depois de uma busca ansiosa pelo hospital, uma mulher nos deu uma pequena quantidade de leite com a qual alimentamos o bebê através de uma seringa. Minha tia conseguiu hoje um pouco de leite para nós, não sei como, e ela não disse quanto custou. Não há arroz, nem carne. Ontem fui ao mercado procurar comida e voltei para casa de mãos vazias: sem carne, sem grão de bico, nada.”
Autoimolação mostra que o problema é, também, dos EUA
No domingo 25, Aaron Bushnell, um militar da Força Aérea dos Estados Unidos, colocou fogo no próprio corpo em Washington, em frente à embaixada de Israel. Ele morreu horas depois, por conta dos ferimentos sofridos.
A autoimolação foi um ato de solidariedade com os palestinos em meio à carnificina perpetrada por Israel na Faixa de Gaza com apoio político e militar do governo de Joe Biden e do Congresso norte-americano.
No vídeo que transmitiu ao vivo, Bushnell filma sua caminhada até a embaixada e diz que “não será mais cúmplice de um genocídio”. Ele diz que vai realizar um “ato de protesto extremo”, mas que não é extremo em comparação com os que enfrentam os palestinos não mãos de “seus colonizadores”.
Após iniciar o fogo, Bushnell grita “Free Palestine” seis vezes enquanto seu corpo é consumido pelas chamas.
Podemos analisar esta situação por diversos prismas, mas o que mais chama atenção é o fato de que o ato de Bushnell sublinha de forma indelével que o massacre dos palestinos na Faixa de Gaza é um problema dos Estados Unidos.
Por mais que tentem, Biden e seus assessores não podem se livrar da responsabilidade objetiva pelos atos do governo israelense, uma vez que Washington apoia essa campanha militar, política e financeiramente.
O ato de Bushnell é reminiscente de outras autoimolações famosas, como a do monge budista Thích Quảng Ðức, em 1963, contra a política religiosa do governo vietnamita, e a de Mohammad Bouazizi, em 2010, contra a repressão do governo tunisiano, que deflagrou a Primavera Árabe.
Apesar disso, o caso simplesmente desapareceu do noticiário mundial, e alguns veículos trataram o caso não como uma questão política, mas como uma de saúde mental. O canal norte-americano MSNBC chegou a colocar números de telefone de auxílio a pessoas que pensam em suicídio ao noticiar o ato de Bushnell.
A impressão é de que um homem branco se solidarizar e se desesperar com o drama de um povo não-branco é um sentimento inconcebível, que só pode ser entendido por meio do olhar da “loucura”. Não há dúvidas de que este será um episódio estudado no futuro, como um dos episódios mais simbólicos a respeito do comportamento da imprensa nos Estados Unidos.
Um dos poucos veículos a tentar dar alguma dignidade a Bushnell foi o Democracy Now!, que entrevistou um amigo do militar norte-americano e tentou colocar a situação sob sua real perspectiva.