26/4/24 - O que se sabe sobre as valas comuns na Faixa de Gaza
A defesa civil palestina apresentou indícios que indicam execuções e mortes de civis durante as ocupações de Israel em dois importantes hospitais
Uma investigação independente é necessária, mas…
Nesta semana, o departamento de defesa civil da Faixa de Gaza informou ter encontrado, na área do hospital Nasser, na cidade de Khan Younis, 392 corpos em uma vala comum. Também foram achados mais corpos em uma vala no hospital Al-Shifa, na cidade de Gaza, cuja existência fora revelada no início do mês.
Antes, em janeiro, uma vala comum havia sido encontrada no terreno da escola secundária Hamad bin Khalifa, em Beit Lahia. Os relatos desta semana chamam atenção pois os dois hospitais foram, nos últimos meses, sitiados por Israel.
A presença de uma vala comum – lugar onde diversos corpos são enterrados simultaneamente – é um possível indicativo de cometimento de crimes de guerra e contra a humanidade. E a defesa civil da Faixa de Gaza alega exatamente isso: que há inúmeros civis, incluindo crianças, entre os mortos. Há, segundo o departamento, sinais de execução, como mãos amarradas às costas e tiros na cabeça.
De acordo com um porta-voz da organização, parte dos corpos estava enterrada a 3 metros de profundidade, o que acelera a decomposição – e pode ser, assim, uma tentativa de acobertar eventuais crimes. Além disso, um dos corpos encontrados pertence a uma menina que teve as duas pernas amputadas e que, segundo sua família, estava viva antes de a ocupação do hospital Nasser ter início.
A Al-Jazeera levou ao ar uma entrevista coletiva na qual fotos dos corpos foram apresentadas pelos integrantes da defesa civil palestina:
O governo israelense, por sua vez, chamou a acusação de “infundada”, ainda que Fleur Hassan-Nahoum, enviada especial do Ministério do Exterior de Israel, tenha dito à Sky News que os corpos pertenciam a “terroristas provavelmente.”
Compreender a extensão do que realmente aconteceu não é uma tarefa fácil. É verdade que a defesa civil na Faixa de Gaza é subordinada ao governo do Hamas, o que pode implicar um grau de pressão sobre sua atuação, mas não faltam evidências robustas de inúmeros crimes cometidos por Israel na Faixa de Gaza.
Ao mesmo tempo, as imagens mostradas pela defesa civil da Faixa de Gaza são, também, indícios relevantes.
Outro ponto importante é que, nos dois hospitais, antes de serem ocupados pelas forças israelenses, os próprios funcionários e pacientes foram obrigados a criar valas comuns para enterrar parte dos mortos, pois não era possível realizar enterros convencionais diante da guerra.
Houve ainda, ao menos em Khan Younis, familiares que enterraram seus entes separadamente nas dependências do hospital Nasser, de forma provisória, mas simplesmente não conseguiram encontrá-los nos lugares onde haviam sido deixados, como relatou a CNN. Isso aconteceu, ao que tudo indica, pois as forças israelenses removeram ao menos parte dos corpos dos lugares marcados.
Isso é fruto do que parece ser mais um ato de profanação de sepulturas, um crime do qual Israel já foi acusado em janeiro. O próprio governo israelense admitiu que examinou corpos nos hospitais em busca de reféns, mas afirma que eles foram devolvidos aos respectivos lugares “respeitosamente” e mantendo sua “dignidade”.
Uma investigação publicada pela Sky News na quarta-feira 24, porém, indicou que as valas improvisadas abertas no hospital Nasser foram reviradas e danificadas durante a ocupação israelense por escavadeiras como as utilizadas por Israel.
Além da defesa civil palestina, a União Europeia e a ONU pediram investigações independentes para estabelecer o que de fato ocorreu nesses lugares. A Anistia Internacional notou que preservar evidências é uma das obrigações impostas a Israel pela Corte Internacional de Justiça no caso em que o país é acusado de cometer um genocídio.
O governo dos EUA, no entanto, se recusou a apoiar o pedido e disse que solicitou mais informações ao governo de Israel. A postura é consistente com a proteção concedida a este país por Washington, o que fica mais claro a cada dia.
Na quarta-feira 24, Charles O. Blaha foi mais um ex-integrante do Departamento de Estado dos EUA a expor essa situação. Ele disse à Associated Press que Israel recebe “tratamento especial” por parte das autoridades dos EUA quando se trata da análise das alegações de abusos militares contra civis.
“Essas são as crianças que poupamos em 2014”
A reportagem abaixo, do Channel 4, é impressionante e, ao mesmo tempo, didática. Baseada em um depoimento anônimo, de um soldado que serviu na Faixa de Gaza, ela expõe de forma cristalina a mentalidade das forças armadas israelenses.
Segundo ele, a presunção básica de seus colegas era de que todos os palestinos são membros do Hamas. Além disso, a preocupação em diferenciar combatentes de civis era mínima e assassinatos de pessoas que não pareciam combatentes não geravam qualquer tipo de comoção.
Mais importante: de acordo com ele, era difundida entre os militares a percepção de que os combatentes de hoje eram as crianças que, na guerra de 2014, foram deixadas vivas. Novamente: é chocante e didático.
No site do Middle East Research and Information Project, Lisa Hajjar, professora da Universidade da Califórnia, compara a situação dos palestinos na Faixa de Gaza aos campos de extermínio cambojanos dos anos 70. Ela afirma que a região se tornou um um enclave de morte, deslocamento e destruição e destaca que a ação da África do Sul contra Israel por genocídio é, ao mesmo tempo, um embate entre o Norte e o Sul globais. Para ela, será decisivo no futuro do Direito Internacional.
No Boston Globe, Kenneth Roth, ex-diretor da Human Rights Watch e hoje em Princeton, alerta que a jurisprudência da Corte Internacional de Justiça pode ser um impeditivo para a condenação de Israel por genocídio, o que não minimiza outros diversos crimes cometidos pelas forças israelenses desde o 7/10.
Hamas usa refém para pressionar Israel
Na quinta-feira 24, o Hamas divulgou um vídeo que mostra o americano-israelense Hersh Goldberg-Polin, de 23 anos, feito refém no 7/10. Ele faz diversos ataques a Benjamin Netanyahu, pede que trabalhe para soltar os reféns e exige sua renúncia.
A divulgação, feita em meio às negociações por um cessar-fogo, é uma clara tentativa do Hamas de pressionar Netanyahu ao atingir a opinião pública israelense, que está há 6 meses obcecada com a situação dos reféns. Rachel Goldberg, a mãe do rapaz, se tornou uma das principais vozes entre os familiares dos sequestrados. Parece ser, também, um indicativo de que o Hamas está acuado.
Mais que tudo isso, o uso político do refém é outra violência absurda, reveladora da natureza do Hamas. É bastante razoável supor que o rapaz foi pressionado a fazer tal discurso, sabe-se lá sob quais condições. Durante o famigerado ataque à rave no 7/10, Goldberg-Polin perdeu a mão esquerda, o que fica claro no vídeo.
Os ataques contra Rafah continuam
Israel segue realizando ataques indiscriminados contra a cidade de Rafah, próximo alvo de sua ofensiva. No domingo 21, 19 pessoas morreram em um bombardeiro contra duas casas. Sabreen Al-Sakani, o marido e a filha pequena, Malak, estavam entre eles. O bebê de 30 semanas que Sabreen gestava foi retirado de seu útero. A garotinha nasceu órfã, como mostrou a Reuters, porém morreu na quinta-feira 25, conforme informou a BBC.
Na New York Review of Books, o jovem médico Omar al-Najjar descreve a rotina intensa de salvar vidas, o desespero ao enfrentar a falta de recursos e ataques constantes e as tentativas de salvar sua própria família. Apesar dos planos interrompidos pela guerra, seu foco agora é reconstruir a vida de seus familiares.
No Guardian, Arwa Mahdawi reflete sobre a destruição de 4 mil embriões que estavam armazenados na maior clínica de fertilização in vitro da Faixa de Gaza, atingida por Israel em dezembro.
Para além da questão Israel-Palestina
Oriente Médio
Ótimo texto de Mar Lynch na Foreign Affairs reflete sobre a importância da opinião pública no Oriente Médio, apesar de a região ter uma série de regimes autoritários. Ele argumenta que a abordagem dos EUA de desconsiderar essas dinâmicas sociais e políticas afeta a estabilidade regional e mina a legitimidade da políticas externa dos Estados Unidos.
Irã
Na New Lines Magazine, Arash Azizi escreve um “obituário” da oposição iraniana na diáspora, mostrando como as divisões internas são tão grandes que impedem o surgimento de uma frente única contra o regime. Apesar da enorme insatisfação com Ali Khamenei e seu círculo íntimo, a brutal repressão contra a oposição e ausência de alternativas políticas permitem a manutenção do regime.
Turquia
Na New Lines Magazine, a escritora Merve Pehlivian reflete a respeito da vitória de Ekrem İmamoğlu nas eleições de Istambul e como elas podem impactar a vida política na Turquia nos próximos anos.