Transição na Síria: um guia dos principais grupos armados e políticos
Entenda quem são e o que querem o Comando de Operações Militares, o Hayat Tahrir al-Sham, o Exército Nacional da Síria, as Forças Democráticas da Síria e outros
Após a remoção de Bashar al-Assad do poder, no dia 8 de dezembro, um processo de transição política foi iniciado na Síria. No momento, não é possível realizar nenhum diagnóstico certeiro a respeito do futuro.
Qualquer análise que procure, agora, assegurar o desfecho deste fase transitória é especulação, uma vez que a queda de Assad foi uma surpresa. Tanto no âmbito doméstico quanto regional, os formuladores de política estão, portanto, ainda assentando as conclusões a respeito de seus interesses e possibilidades. Assim, os próximos meses trazem grandes riscos, mas também oportunidades para a Síria.
No guia abaixo, estão informações a respeito dos principais grupos militares e políticos existentes na Síria neste momento. O conteúdo será atualizado à medida que novidades relevantes ocorrerem.
Se você precisa de um mapa para acompanhar a leitura, confira os disponíveis aqui.
Hayat Tahrir al-Sham (HTS): A “Organização para a Libertação do Levante” é o grupo que liderou a ofensiva realizada entre 29 de novembro e 8 de dezembro de 2024 e que culminou com a derrubada do regime Assad. O HTS foi formado em 2017, após a fusão de uma série de grupos islamistas que combatiam o governo sírio.
O HTS foi uma iniciativa da Jabhat al-Nusra, ou Frente al-Nusra. Este grupo surgiu em 2012 como o braço sírio da Al-Qaeda, criada por Osama bin Laden. Sua origem era a Al-Qaeda no Iraque, instalada no país com a anuência de Bin Laden após a invasão dos Estados Unidos, em 2003.
A disputa a respeito do controle da Frente al-Nusra levou a uma cisão no movimento jihadista internacional: a Al-Qaeda no Iraque se tornou o Estado Islâmico, enquanto a Frente al-Nusra foi, até 2016, fiel a Ayman al-Zawahiri, sucessor de Bin Laden. Em 2016, a Frente al-Nusra anunciou sua desfiliação da Al-Qaeda e, no ano seguinte, a criação do Hayat Tahrir al-Sham.
O HTS é um grupo muçulmano sunita, mas que tem em sua composição uma série de guerrilheiros estrangeiros, inclusive não-árabes. O líder do HTS é Ahmed Hussein al-Shar’a, conhecido pelo nome de guerra Abu Muhammad Al-Julani. Ele se juntou à Al-Qaeda após a invasão do Iraque em 2003, mas agora diz ter abandonado a perspectiva extremista do grupo em favor da construção de um sistema que preserve os direitos das minorias no país.
Dúvidas a respeito das práticas do HTS e de Al-Julani estão no centro das atenções atualmente, tendo em vista o poder exercido por ele.
Comando de Operações Militares (COM): É o corpo responsável pela coordenação militar na Síria pós-Assad. Na prática, é a mais importante instituição síria neste momento. É coordenado pelo Hayat Tahrir al-Sham e, portanto, por Al-Julani.
É por meio dos comunicados feitos por esse comando que as diretrizes de segurança estão sendo colocadas em prática nos territórios controlados por rebeldes.
Governo de Salvação Sírio (GSS): Foi criado em 2017 pelo Hayat Tahrir al-Sham para gerir a província de Idlib, no noroeste da Síria, então controlada pelo HTS. A partir de dezembro de 2024, com a derrubada do regime Bashar al-Assad, o GSS passou a ser o governo de transição de toda a Síria.
Desde 10 de dezembro, o primeiro-ministro do governo de transição sírio é o engenheiro e político Muhammad al-Bashir, ex-chefe do governo em Idlib.
Exército Nacional da Síria (SNA): Apesar do nome, não é a força armada regular da Síria ligada ao antigo regime. O SNA (sigla em inglês) é, na realidade, um guarda-chuva de mais de 40 facções que lutaram na guerra civil da Síria desde 2011. Apesar da rivalidade com o Hayat Tahrir al-Sham, o SNA atuou ao lado do HTS em dezembro de 2024 e também teve papel importante na derrubada de Bashar al-Assad.
O SNA abriga islamistas, como os do Ahrar al-Sham, mas também facções seculares, várias das quais atuaram sob o Exército Livre da Síria. A maioria dos integrantes é árabe, mas há turcomanos e também curdos.
Não há uma liderança central no SNA. Quem toma as decisões são os líderes de cada um desses grupos. Formado em 2017, o SNA se concentrou majoritariamente na região norte da Síria, na fronteira com a Turquia, uma proximidade geográfica que tem também um aspecto político: algumas das brigadas do SNA carregam nomes de sultões do Império Otomano (antecessor da Turquia atual) e há acusações de que o SNA tem uma agenda turca e não realmente síria.
Dois aspectos serão decisivos daqui para frente para avaliar o SNA. O primeiro é seu grau de coesão, uma vez que a união foi gerada apenas pela oposição comum a Assad. O segundo é justamente o seu grau de ligação e responsividade às demandas do governo da Turquia.
Sala de Operações do Sul: É a união de grupos rebeldes que atuou a partir das províncias de Daraa, Suwayda e Quneitra, no sul da Síria, após o início da ofensiva do HTS contra o regime de Bashar al-Assad. Alguns desses grupos, inclusive, chegaram à capital Damasco antes das forças do HTS.
Durante a operação, surgiram muitas dúvidas a respeito da configuração dessas facções e da relação delas com o HTS. Em 11 de dezembro, Al-Julani se encontrou com os líderes desses grupos, em uma aparente tentativa de garantir cooperação.
Entre esses líderes estava Ahmed al-Awdah, líder da Oitava Brigada, um grupo formado sob os auspícios da Rússia após Moscou obter, em 2018, um acordo de convivência entre diversas milícias do sul e o regime de Bashar al-Assad.
Estado Islâmico: Anteriormente conhecido como ISIS ou ISIL (siglas em inglês), o grupo segue ativo na Síria, mas com uma capacidade bem reduzida em relação à que demonstrou entre 2014 e 2019, quando controlou diretamente grandes territórios.
Ainda assim, o Estado Islâmico continua a representar um grave risco de segurança. Segundo dados do monitor de atividades do Estado Islâmico organizado pelo pesquisador Aaron Z. Yelin, entre novembro e dezembro de 2024, os militantes do grupo realizaram 103 ataques na Síria que deixaram 310 mortos.
Há prisões na Síria que abrigam milhares de homens com suspeitas de ligação com o Estado Islâmico. Esses locais já foram palco de tentativas de fuga, inclusive com ajuda militar externa. Há ainda dois campos de prisioneiros do Estado Islâmico, chamados Al-Hol e Roj. Eles abrigam quase 60 mil pessoas, de dezenas de nacionalidades, a maioria mulheres e crianças.
Se trata de um dos maiores escândalos humanitários do mundo atualmente, que transcorre sem que a comunidade internacional dê muita atenção. A responsabilidade sobre esse contingente populacional recai sobre as forças curdas sírias (ver abaixo).
Partido da União Democrática (PYD): O PYD (sigla de Partiya Yekîtiya Demokraté) é um partido político sírio, fundado em 2003 e que não era reconhecido pelo regime de Bashar al-Assad. O PYD é intrinsecamente ligado ao Partidos dos Trabalhadores do Curdistão, o PKK (Partiya Karkerên Kurdistanê), um grupo designado como terrorista pela Turquia, pelos EUA e pela UE que luta pela formação de um Curdistão independente.
Unidades de Proteção Popular (YPG): O YPG (da sigla Yekîneyên Parastina Gel) é o braço armado do PYD. Foi fundado em 2011 no contexto do levante contra Bashar al-Assad e, depois, do combate ao Estado Islâmico. Seu grupo irmão são as Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ, da sigla Yekîneyên Parastina Jin), que foi criado em 2013 e também teve papel importante no enfrentamento ao ISIS.
Administração Autônoma do Norte e do Leste da Síria (AANES): É o governo de facto da porção nordeste do território da Síria, conhecida como Rojava. Foi criado em 2013, também no contexto da guerra civil e da retirada das forças do regime de Bashar al-Assad, que se concentraram na defesa de Damasco e das cidades na costa mediterrânea do país. As lideranças curdas defendem o estabelecimento de um Estado federal na Síria, o que traria autonomia oficialmente à região.
Forças Democráticas da Síria (SDF): É o braço armado da região de Rojava. A liderança militar do grupo cabe aos curdos da YPG, mas há uma série de diferentes facções em sua composição, incluindo árabes, assírios, armênios e turcomanos. As SDF são consideradas um grupo terrorista pela Turquia, mas receberam e recebem apoio dos Estados Unidos.
Durante os combates ao Estado Islâmico, as SDF foram a principal força terrestre aliada a Washington. Como mencionado acima, as SDF são as principais responsáveis pelo controle dos prisioneiros e das populações que outrora integraram o Estado Islâmico. O líder da SDF é Mazloum Abdi.