F.Or.M. (16/2/24) - Rafah e o apoio dos EUA à ofensiva israelense contra a Faixa de Gaza
A proximidade de uma grande operação militar contra o último refúgio de milhares de palestinos demonstra o papel decisivo de Washington em favor de Israel
Este é o O Filtro do Oriente Médio (F.Or.M.), boletim semanal de Tarkiz com materiais e análises que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link.
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Caos no maior hospital que ainda funciona na Faixa de Gaza
Na quinta-feira 15, forças especiais israelenses invadiram o hospital Nasser, na cidade de Khan Younis, após sitiar o local por uma semana. O governo de Israel alega que o local estava sendo utilizado pelo Hamas e, nesta sexta-feira 16, afirmou ter encontrado no local armas e munição, além de ter prendido 20 “terroristas”.
Segundo a Associated Press, pelo menos quatro pacientes morreram por conta da falta de oxigênio gerada pela queda de energia durante o ataque.
Horas antes da invasão, o cirurgião Khaled Al Serr deu um depoimento ao site Democracy Now em que narrou a situação caótica no local ainda durante o bombardeio. O vídeo pode ser visto abaixo. Este é mais um episódio pelo qual tanto o Hamas quanto Israel deveriam ser investigados pelo cometimento de crimes de guerra.
Rafah: bombardeios a alvos civis como “distração” para resgate
Entre a sexta-feira 9 e segunda-feira 12, o governo de Israel realizou uma série de bombardeios contra a cidade de Rafah, no sul da Faixa de Gaza. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, os alvos preferenciais foram, como de costume, civis: prédios residenciais e mesquitas.
Nesses ataques, pelo menos 98 pessoas morreram, incluindo mulheres e crianças, e dezenas ficaram feridas. Ao menos em parte, os bombardeios tinham como objetivo, informou o jornalista Barak Ravid, do Axios, criar uma “distração” para o resgate de dois reféns israelenses.
Um desses ataques diversionários matou a família inteira de Ibrahim Hasouna. Como contou a Associated Press, os pais de Ibrahim, seus dois irmãos, uma cunhada e três crianças, seu sobrinhos, foram mortos em casa, quando o local foi atingido por uma bomba israelense. Ibrahim, que não estava em casa, chegou na madrugada para recolher as partes dos corpos de seus familiares. Seu depoimento pode ser visto no vídeo abaixo.
A operação de resgate de fato ocorreu, e conseguiu livrar dois homens, de 61 e 70 anos, que foram sequestrados pelo Hamas em 7/10. Segundo o Times of Israel, esse foi apenas o segundo resgate realizado pelas forças israelenses neste período.
Situação em Rafah expõe a ambiguidade deliberada dos EUA
A possibilidade de que os bombardeios fossem o início de uma ofensiva maior contra Rafah criou grande preocupação porque a cidade, cuja população é de 280 mil pessoas, concentra atualmente cerca de 1,4 milhão.
Como mostram imagens de satélite obtidas pela Associated Press, muitas partes de Rafah foram tomadas por tendas improvisadas onde estão os deslocados internos. Essas pessoas não têm mais para onde ir, uma vez que o restante da Faixa de Gaza encontra-se devastado por Israel.
Por conta deste cenário, inúmeras organizações humanitárias vêm, há alguns dias, emitindo alertas a respeito do potencial desastroso que bombardeios sistemáticos e uma incursão terrestre teriam.
O sinal mais claro de que uma ofensiva contra Rafah deve ocorrer em breve foi a ordem, dada na sexta-feira 9, pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, para que fosse criado um plano de evacuação para a cidade. Como notou o New York Times, a determinação chamou atenção por ter sido emitida apenas horas depois de o presidente dos EUA, Joe Biden, fazer suas críticas mais duras em público à ação de Israel.
O ato de Netanyahu, assim, pode ser interpretado como mais um a demonstrar seu desprezo pelos pedidos da Casa Branca para que Israel poupe civis. Por outro lado, no dia anterior à ordem de Netanyahu, o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, havia dito que “qualquer operação militar que Israel realize precisa colocar os civis em primeiro lugar.”
O plano de evacuação da cidade, por este prisma, seria uma tentativa de contemplar essa posição norte-americana. No domingo 11, o próprio Biden mencionou a situação na cidade ao informar que reafirmou a Netanyahu “a sua opinião de que uma operação militar em Rafah não deveria prosseguir sem um plano crível e executável para garantir a segurança” dos civis.
O problema desta segunda interpretação é que, apesar de manifestar alguma preocupação com os palestinos, o governo dos EUA continua a ser o principal sustentáculo político e militar da campanha israelense que matou pelo menos 28,4 mil pessoas em quatro meses.
Esta clara contradição, escancarada pela iminente ofensiva a Rafah, tem sido motivo de questionamentos por parte da imprensa, em especial nas entrevistas coletivas dos porta-vozes do governo.
Na segunda-feira 12, Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado, admitiu que a resposta israelense aos apelos de Washington tem ocorrido “nem sempre da maneira que queremos, nem sempre na medida que queremos ou no nível que queremos”. Ao mesmo tempo, porém, ele afirmou que “as nossas intervenções, acreditamos, tiveram um impacto”.
Na sequência da entrevista, que pode ser lida e vista na íntegra, Miller disse que os EUA não têm uma “varinha mágica” para resolver a situação e citou a entrada de ajuda humanitária em Gaza para tentar se desvencilhar dos repetidos questionamentos acerca do auxílio militar a Israel – que seriam, segundo os repórteres, justamente essa “varinha mágica”.
Também na segunda-feira 12, um colega de Miller, o almirante John Kirby, porta-voz de segurança nacional da Casa Branca, foi mais claro. Após um jornalista perguntar se Biden havia ameaçado reter a ajuda militar em caso de uma ofensiva que não busque proteger os civis, Kirby foi peremptório: “Vamos continuar a apoiar Israel. Eles têm o direito de se defender contra o Hamas. E continuaremos garantindo que tenham as ferramentas e os recursos para fazer isso."
A confirmação da carta branca a Israel em Rafah veio por meio de integrantes do governo. De forma anônima, três fontes da administração norte-americana afirmaram ao site Politico que a Casa Branca “não planeja punir Israel se este lançar uma campanha militar em Rafah sem garantir a segurança civil”.
Antes mesmo de a ofensiva a Rafah ter início, ela serviu para revelar de forma ainda mais intensa que o governo Netanyahu, a despeito de sua retórica e ações extremas, conta com a anuência de Biden e do Congresso norte-americano – na terça-feira 13, o Senado dos EUA aprovou mais US$ 14,1 bilhões para Israel, o que equivale ao custo estimado de todo o conflito para Israel.
Além de pagar pela ofensiva israelense, o governo dos EUA não aplica para Israel suas regras que previnem o cometimento de violações de direitos humanos e estaria, inclusive, auxiliando diretamente na obtenção de alvos.
Sozinhas, as críticas e recomendações norte-americanas têm efeito praticamente inócuo sobre o comportamento de Israel. No máximo, essa ambiguidade deliberada tem como objetivo aplacar setores à esquerda na política e na sociedade norte-americanas que têm feito críticas a Biden, um perigo diante da chegada do período eleitoral.
Até aqui, a ofensiva israelense serve aos interesses de Washington – na leitura que Biden e seu assessores fazem de tais interesses – e eles são percebidos como mais importantes do que as vidas dos civis na Faixa de Gaza.
Borrell escancara a hipocrisia dos EUA
Na segunda-feira 12, o espanhol Josep Borrell, chefe de política externa da União Europeia, saiu do script da diplomacia internacional e fez duras críticas aos Estados Unidos justamente por conta da questão de Rafah. Em uma entrevista coletiva em Bruxelas, Borrell não mediu as palavras.
“Sejamos lógicos. Quantas vezes vocês ouviram os mais proeminentes líderes e ministros do Exterior pelo mundo dizendo 'pessoas demais estão morrendo'? O presidente Biden disse: ‘isso é demais, isso é excessivo, não é proporcional’. Bem, se você acha que pessoas demais estão sendo mortas, talvez você deveria prover menos armas para prevenir que tantas pessoas sejam mortas. Não é lógico?”
Borrell, então, lembrou que em 2006, quando Israel devastou partes do Líbano em uma guerra contra o Hezbollah, foi a postura dos EUA que freou a ofensiva israelense. E comparou as situações. “Todo mundo vai a Tel Aviv implorando, 'por favor, não faça isso, proteja os civis, não mate tanto’. Quantas pessoas são pessoas demais? Qual é o padrão? Mas Netanyahu não ouve ninguém”, disse.
As frases de Borrell certamente não refletem uma unanimidade na União Europeia, pois muitos países têm postura exatamente igual à dos EUA. O espanhol também está longe de ser um conhecido humanista. Em 2022, como escrevi em Tarkiz em julho passado, ele se tornou famoso por comparar a Europa a um “jardim” e o resto do mundo a uma “selva que quer invadir o jardim.”
Borrell, porém, está com 76 anos e vê se aproximarem tanto o fim de sua carreira política quanto de seu mandato. Aparentemente, ele decidiu não encerrar sua trajetória com o peso de ter patrocinado o que pode vir a ser um genocídio.
Outros desdobramentos sobre Rafah e a ofensiva israelense
Na terça-feira 13, como conta a AP, África do Sul entrou com um pedido de análise urgente na Corte Internacional de Justiça para que o tribunal examine se os bombardeios contra Rafah significam uma violação das determinações anteriores da corte sobre prevenção de genocídio.
No mesmo dia, uma corte na Holanda determinou a paralisação da exportação de peças do caça F-35 para Israel, por considerar que elas podem estar sendo usadas para violar as leis internacionais. Segundo a BBC, a decisão é derivada do parecer da CIJ.
O Washington Post publicou reportagem na quinta-feira 15 informando que os EUA e seus aliados árabes aguardam um acordo de cessar-fogo para lançar um novo plano de paz, que poderia envolver até mesmo o reconhecimento do Estado palestino por Washington. O empecilho é o governo Netanyahu e também a ofensiva contra Rafah, que, se concretizada, pode acabar com qualquer possibilidade de um cessar-fogo.
A rigidez do posto de fronteira de Rafah, manejado pelo Egito, mas controlado por Israel, proporciona há tempos inúmeras oportunidades de corrupção, mas a situação se agravou desde o 7/10. O jornal egípcio Mada Masr conta essa história numa longa e impressionante reportagem.
Segundo a Reuters, o governo egípcio está construindo uma área de contingência para receber refugiados palestinos caso o governo de Israel, de fato, inicie uma nova operação terrestre contra Rafah.
Seguem as conversas entre os governos dos EUA e do Iraque para modificar o acordo militar entre as partes. Os políticos curdos, aliados de Washington, passaram a contestar publicamente a possibilidade de retirada de tropas, como conta o jornal emirati The National.