Primavera Árabe na Síria: quase 14 anos depois, a queda de Assad
A revolução síria foi bloqueada, desprezada e esquecida pela "comunidade internacional", mas, ainda assim, triunfou
Em março de 2011, inspirados pelos levantes na Tunísia e no Egito, um grupo de adolescentes da cidade de Daraa, no sul da Síria, pichou nas ruas do distrito de Al-Balad uma frase que viria a se tornar o lema da luta contra as ditaduras árabes: "o povo quer derrubar o regime" (الشعب يريد إسقاط النظام – lê-se Ash-shaʻb yurid isqat an-nizam).
Os garotos foram detidos pelas forças de segurança de Bashar al-Assad e ferozmente torturados. A brutalidade destinada a intimidar os oposicionistas teve o efeito contrário: aquele episódio galvanizou a opinião pública e serviu como ignição para a versão síria da Primavera Árabe.
Neste 8 de dezembro de 2024, 13 anos e nove meses depois, a revolução conseguiu, finalmente, seu objetivo número 1: derrubar Bashar e, com ele, um regime totalitário de mais de cinco décadas, instaurado por seu pai, Hafez al-Assad.
Captar os sentidos deste momento será uma tarefa de longo prazo. As imagens e os relatos nas redes sociais, porém, exprimem ao menos uma parte do êxtase dos opositores de Assad, a imensa maioria da população síria. Prisões políticas, inclusive a de Saydnaya, o “abatedouro humano” nas cercanias de Damasco, foram esvaziadas. Pessoas que passaram décadas atrás das grades e sob tortura estão livres. Muitos escaparam de condenações à morte, inclusive iminentes. Famílias estão se reunindo. Refugiados estão retornando ao país. Um amigo sírio, pelo WhatsApp, descreve o momento como um “sonho”. No Twitter, uma ativista resume o significado do momento: “Não sou mais uma refugiada síria. Sou síria. Apenas síria.”
Com a fuga de Assad para Moscou, a Síria se livrou de um dos maiores criminosos da história do Oriente Médio, um homem cujo regime bombardeou – com bombas-barril improvisadas e armas químicas –, matou, estuprou, torturou e sequestrou um número incontável de pessoas, criando um rastro de destruição que atingiu a sociedade como um todo.
Mas a vitória da revolução síria não é apenas um triunfo contra Assad. É uma vitória contra – e à revelia da – “comunidade internacional”. Imediatamente após o início dos protestos contra seu regime, Assad adotou táticas atrozes que foram repetidamente denunciadas por ativistas sírios e organizações humanitárias.
Ainda assim, dos principais governos estrangeiros do mundo e de seu entorno, a sociedade síria não recebeu nenhum tipo de suporte a favor de uma transição pacífica.
O governo dos EUA flertou com uma pressão sobre Assad, mas se concentrou apenas em armar rebeldes de forma indiscriminada. Os regimes de Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos fomentaram, de forma ainda mais aberta, essa oposição armada problemática, repleta de criminosos, que retirou o protagonismo dos atores moderados sírios. O governo da Turquia, que também insuflou a oposição jihadista, ainda invadiu a Síria quatro vezes entre 2016 e 2020.
O regime do Irã, auxiliado pelo Hezbollah, fez da defesa de Assad um pilar de sua política externa. Em 2015, quando essa estratégia estava no limite, o regime da Rússia interveio e salvou Assad, também graças ao cometimento de inúmeras atrocidades.
Os estratagemas das potências mundiais e regionais, em busca de satisfazer seus interesses estratégicos, mergulharam a Síria em um conflito fratricida e sectário. Do vácuo criado pelas ações de todos esses atores, emergiram a Al-Qaeda e, na sequência, o Estado Islâmico. Ao longo desses quase 14 anos, o país foi devastado, e o fardo foi carregado pela sociedade síria.
A Síria era um país de 22 milhões de pessoas em 2011. A ONU parou de registrar o número de mortos oficialmente em 2014, quando a contagem atingiu 100 mil nomes. Em 2021, o Observatório Sírio de Direitos Humanos, uma ONG com sede no Reino Unido, estimou o número de vítimas fatais em 606 mil.
Cerca de 14 milhões de sírios (63% da população) foram obrigados a deixar suas casas: 7 milhões deslocados internamente e outros 7 milhões em refúgio no exterior. Muitos dos que conseguiram fugir do país, deixando para trás suas famílias, amigos, patrimônio e história, encontraram as portas da “comunidade internacional” fechadas, em especial as da Europa.
A morte de Alan Kurdi – o menino de 3 anos cujo corpo foi encontrado em uma praia da Turquia em setembro de 2015 – causou comoção mundial, mas ela durou tanto quanto dura a atenção das pessoas em uma sociedade vidrada na rapidez das informações e inundada de entretenimento digital.
Em 2020, após um cessar-fogo entre os aliados da Rússia e da Turquia, as áreas de influência do conflito foram congeladas. Assad sobreviveu, assim como seu regime – na realidade um amálgama de milícias e quadrilhas sustentado pelo contrabando e pelo tráfico de drogas, especialmente de captagon, um tipo de anfetamina.
Desde 2023, como se a destruição da Síria fosse algo banal a ser esquecido, o principal responsável por ela passou a ser reintegrado à mesma “comunidade internacional” que abandonou a população síria à própria sorte.
Israel e os Estados Unidos acenaram com um alívio de sanções e uma melhora de relações caso Assad deixasse a esfera de influência iraniana. A vizinhança reconduziu o líder sírio à Liga Árabe. A Europa, liderada por Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, buscava uma aproximação com Assad para viabilizar a deportação de mais imigrantes.
De forma repentina, porém, a revolução síria mostrou que ainda estava em curso. Com uma ofensiva surpresa, em dez dias desmantelou os domínios de Assad. Quase um quarto de século após chegar ao poder, Bashar caiu de podre. E fugiu, revelando o covarde que sempre foi.
O regime da família Assad foi finalmente extinto, mas os desafios para a sociedade síria persistem. O fato de que a fase final da revolução foi liderada por um ex-integrante da Al-Qaeda, agora supostamente regenerado, é simbólico das dificuldades que virão pela frente.
Resta saber se, desta vez, os sírios terão, se não a ajuda do exterior para sua transição, ao menos algum espaço para decidir seu destino. O presente de países como Egito, Líbia e Tunísia, cujos ditadores foram derrubados bem antes de Assad, mostra que as chances não são muito grandes. Mas, quem sabe, a reorganização securitária pela qual passa o Oriente Médio pode trazer novidades.