O Estado Islâmico nunca foi embora
Ataques contra o Irã e a Rússia são a face visível de uma atividade contínua que causa enormes danos à África e ao Oriente Médio sem que o mundo se importe
Em 22 de março, o Estado Islâmico realizou, em Krasnogorsk, nas cercanias de Moscou, o maior atentado em território russo em 20 anos, deixando 133 vítimas. Em 3 de janeiro, o grupo explodiu bombas na cidade de Kerman, no Irã, matando 94 pessoas, o pior ataque no país em mais de quatro décadas.
Nos dois episódios, uma parte das reações foi de surpresa com o fato de que o EI continua existindo. Outra parte reanimou as teorias conspiratórias de que o Estado Islâmico seria um agente dos Estados Unidos ou do Mossad, o serviço secreto israelense. A conspiração é reforçada pelo regime de Vladimir Putin, que tentou atrelar o ataque à Ucrânia.
A retomada do debate é interessante pois nos ajuda a refletir a respeito da realidade geopolítica e da forma como ela é retratada pela imprensa internacional e brasileira.
Podemos começar por um artigo que publiquei há quase 10 anos, em setembro de 2014. O título era “O Estado Islâmico veio para ficar”. Transcrevo abaixo o primeiro parágrafo:
Em 22 de setembro, os EUA estenderam à Síria a operação contra o Estado Islâmico (EI), iniciada no Iraque em agosto e oficializada no início deste mês em discurso de Barack Obama. Com os bombardeios e o apoio a forças terrestres locais, tanto na Síria quanto no Iraque, Washington busca “degradar e destruir” o autoproclamado califado. O primeiro objetivo é factível, mas o segundo é claramente impraticável. Sem lidar com o autoritarismo, o sectarismo, o desemprego, a pobreza, o analfabetismo e outros problemas que fazem vicejar o radicalismo religioso no Oriente Médio, a ideia por trás do Estado Islâmico não será destruída. Quando, e se, o EI recuar e perder território, o ideal vai simplesmente aguardar, encubado, uma possibilidade de manifestar seu barbarismo novamente.
Este diagnóstico era reflexo da observação a respeito do histórico de organizações semelhantes e de leituras sobre a forma de agir do grupo. Com o tempo, ele se provou correto.
Após tomar grandes territórios no Iraque e na Síria em 2014, o Estado Islâmico sofreu um derrota militar entre 2018 e 2019, mas seus integrantes jamais deixaram de atuar.
Em primeiro lugar, porque a ideia não foi destruída: o Estado Islâmico se tornou a ponta-de-lança do movimento jihadista internacional, suplantando a Al-Qaeda. Em segundo lugar, porque há muitos lugares no mundo cujas condições políticas e socioeconômicas permitem a instalação do Estado Islâmico.
Ocorre que muitos desses lugares estão em regiões, em geral, desprezadas pelas elites políticas, pela opinião pública e pela imprensa do mundo ocidental. Como consequência, a violência perpetrada pelo Estado Islâmico tem pouca repercussão nesses países, o que se reflete na imprensa local e, portanto, na brasileira.
O gráfico abaixo mostra, na ferramenta Google Trends, o nível de interesse dos usuários brasileiros pelo termo ‘estado islâmico’. Há um pico em setembro de 2014 (quando os EUA lançam sua missão contra o EI), outro em fevereiro de 2015 (mês marcado pela divulgação de vídeos de assassinatos e de destruição de estátuas milenares em Mosul) e o auge se dá em novembro de 2015, quando Paris sofreu um grande ataque.
O mesmo fenômeno, com algumas nuances, pode ser observado no Google Trends pela busca “islamic state” no mundo todo.
Desde os atentados na capital francesa, o interesse pela atuação do grupo é muito pequeno. Isso não significa, porém, que o Estado Islâmico deixou de existir. O que deixou de existir foi a cobertura maciça a respeito dos atos do EI, porque suas vítimas carregam um passaporte que importam muito pouco em Nova York, Londres ou Paris.
Atualmente, a melhor ferramenta para se ter dimensão da atuação do Estado Islâmico é a Islamic State - Select WorldWise Activity, liderada pelo pesquisador Aaron Y. Zelin, do thinktank Washington Institute for the Near East Policy.
É uma curadoria de atividades diversas realizadas pelo EI, como ataques e divulgação de propaganda, e por quem o combate, como designação de pessoas como terroristas, prisões ou julgamentos. Como se vê pela captura de tela abaixo, que mostra as atividades do EI desde 2014, a atuação é vasta, mas a violência (em vermelho) é concentrada na África – hoje o principal palco da chamada “Guerra ao Terror” – no Oriente Médio e na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão.
Esta última região, também conhecida como Korasan, é a que abriga o ISIS-K, braço do Estado Islâmico que atacou o Irã em janeiro e a Rússia agora. Este grupo vem, desde 2023, ampliando sua atuação global e tem em sua composição um significativo número de tajiques (grupo étnico que dá nome ao Tajiquistão).
Não por coincidência, tanto no caso do ataque ao Irã quanto no caso do ataque à Rússia, pessoas de origem tajique estavam entre os envolvidos.
A mesma ferramenta ajuda a minar o argumento de que o Estado Islâmico é operado pelos Estados Unidos ou por Israel. Em primeiro lugar, porque há uma multiplicidade de atividades do EI nos dois países. Em segundo lugar, porque o grupo também está ativo em diversos países aliados de Washington, como Austrália, Bélgica, França e Jordânia, entre vários outros.
Ao mesmo tempo, porém, o Estado Islâmico continua agindo contra o Irã e a Rússia. É pueril tentar encaixar este movimento num mundo dicotômico onde só há duas posições possíveis, uma pró-Ocidente e outra anti-Ocidente. Para o EI, Estados Unidos, Rússia e Irã desempenham um papel semelhante: são inimigos.
ISIS-K x Irã e Rússia: o ódio ao xiismo
Há, porém uma especificidade importante no tange a relação entre o Estado Islâmico, o Irã e a Rússia. Ao contrário da Al-Qaeda, que tinha no Ocidente o seu principal e mais importante alvo, o EI reputa os xiitas como inimigos primordiais.
Uma discussão longa a respeito disso está no capítulo que escrevi para o livro Para Começar a Entender o Estado Islãmico (Editora UFRJ), mas podemos aqui resumir da seguinte forma: a hostilidade aos xiitas é um elemento central na ideologia e na prática do EI. Esta característica emerge ainda quando o EI era um braço da Al-Qaeda no Iraque e fica patente após o ‘califado’ ser declarado em julho de 2014.
O regime xiita do Irã, portanto, é um alvo óbvio. Além disso, este regime é odiado pelas lideranças do EI por ter desempenhado um papel central nos combates aos grupo tanto no Iraque quanto na Síria. Do mesmo modo, a Rússia atraiu a ira dos jihadistas ao salvar o regime de Bashar al-Assad, aliado do Irã, em detrimento do Estado Islâmico.
Assim, a base de dados do Washington Institute mostra que o ‘front’ entre o EI, o Irã e a Rússia está plenamente ativo. Isso se deve à proximidade geográfica e ao fato de que os serviços de inteligência e de segurança iranianos e russos são claramente mais frágeis que os existentes nos EUA e na Europa.
Em outubro de 2022, um agente do EI metralhou quase 20 pessoas na cidade iraniana de Shiraz. Em maio de 2023, um dos líderes do ISIS-K foi preso na província de Fars, sudoeste do Irã. Em outubro de 2023, apenas dois meses antes do ataque em Kerman, um integrante do EI foi preso na província Sistão-Baluquestão pela inteligência iraniana.
Em abril de 2022, o FSB, serviço secreto russo, prendeu sete homens de uma célula do Estado Islâmico que pretendia explodir a sede da entidade. Em fevereiro deste ano, um estudante russo que enviou medicamentos para combatentes do EI na Síria foi preso. Em 7 de março, menos de duas semanas antes do atentado em Krasnogorsk, dois agentes do EI foram mortos em uma troca de tiros com o FSB na cidade de Kaluga quando se preparavam para atacar uma sinagoga.
Todos esses episódios – documentados e validados como realizados pelo Estado Islâmico por pesquisadores sérios de instituições respeitadas – mostram que era alta a possibilidade de o Irã e a Rússia sofrerem um ataque de larga escala. Eles receberam, porém, pouca atenção da imprensa internacional.
Mesmo situações mais chamativas ligadas ao EI encontram dificuldades para chegar ao noticiário. Em janeiro deste ano, por exemplo, células do Estado Islâmico atacaram a prisão Al-Sina, na Síria, onde estão cerca de 5 mil dos mais experientes soldados do movimento jihadista. Dois anos antes, o mesmo local foi alvo de um ataque ainda maior, que deflagrou uma batalha de dez dias entre as Forças Democráticas Sírias (SDF), que fazem a segurança da prisão, e integrantes do EI.
Desde 2019, há na Síria uma espécie de campo de concentração em que dezenas de milhares de parentes de integrantes do Estado Islâmico – e também muitas de suas vítimas – aguardam por uma decisão sobre o qual será seu destino. Esse descalabro tem aparecido no noticiário recentemente, mas esse contingente de pessoas, a maioria de mulheres e crianças, encontra-se abandonado pela comunidade internacional.
Infelizmente, quase tudo o que envolve o Estado Islâmico transcorre “abaixo do radar”. É o cenário perfeito para florescerem a desinformação e a manipulação política, enquanto os problemas de fundo se perpetuam.