O mandado de prisão do TPI contra Netanyahu: quais os impactos da decisão?
O primeiro-ministro de Israel agora é procurado por crimes de guerra e contra a humanidade. É um pequeno passo em uma história de injustiças contra os palestinos
Em 20 de novembro, minutos após os Estados Unidos vetarem pela quinta vez uma resolução do Conselho de Segurança que pedia um cessar-fogo na Faixa de Gaza, o embaixador da Palestina na ONU, Majed Bamya, fez um discurso para expor sua indignação com a inoperância da entidade.
Bamya listou vários dos abusos cometidos por Israel e salientou sua incredulidade com a incapacidade da comunidade internacional de agir. “Vocês estão testemunhando a tentativa de aniquilar uma nação, de destruir uma nação. Não é nem escondido, está à vista de todos”, afirmou. “E, ainda assim, as ferramentas desenhadas para responder a essas situações não estão sendo usadas. Então qual é [o motivo disso]? Nossas vidas palestinas são vidas que não valem a pena salvar, ou Israel tem uma licença para matar?”
Na quinta-feira 21, o Tribunal Penal Internacional (TPI), uma dessas ferramentas, finalmente agiu. A Câmara de Pré-Julgamento I do TPI, responsável pelo encaminhamento dos casos antes dos julgamentos finais, acatou uma boa parte dos pedidos feitos em maio pelo procurador britânico Karim Khan.
Como consequência, expediu mandados de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, seu ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, e contra Mohammed Deif, líder das brigadas Al-Qassam, o braço armado do Hamas. Khan havia pedido a prisão de Yahia Sinwar e Ismail Haniyeh, outras lideranças do Hamas, mas eles perderam o efeito pois ambos foram assassinados por Israel – Deif também estaria morto, mas o Hamas não confirmou tal informação.
Netanyahu e Gallant são agora procurados pelo cometimento dos crimes de guerra de realizar ataques deliberados contra uma população civil e uso da fome como arma de guerra e pelos crimes contra a humanidade de assassinato, perseguição e outros atos desumanos. A decisão tem repercussões práticas relevantes.
Os mandados implicam que os 125 países-signatários do Estatuto de Roma, que instituiu o tribunal em 1998, são obrigados a prender Netanyahu e Gallant caso eles entrem em seu território. É a mesma situação de Vladimir Putin, procurado desde março de 2023 pelos crimes de guerra de deportação e transferência ilegal de população na guerra da Ucrânia. A existência deste mandato impediu recentemente o líder russo de vir ao G-20 no Rio de Janeiro.
Os mandatos tornam os Estados Unidos o único país ocidental que pode receber Netanyahu e Gallant sem infringir o Estatuto de Roma, pois o governo em Washington retirou sua assinatura do documento. Todos os outros países do Ocidente geopolítico (Canadá, a maior parte da Europa, Austrália, Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul) são signatários.
A decisão também expõe as divisões dentro do Ocidente a respeito da campanha israelense. Alguns governos, como os de Canadá, França, Holanda, Noruega e Suécia indicaram que, se necessário, cumprirão a decisão do TPI, mas outros manifestaram reservas. É o caso de Áustria, Itália e República Tcheca.
Essa divergência é significativa pois demonstra como o Ocidente, ao mesmo tempo em que busca reger a “ordem internacional baseada em regras”, atua como defensor de um governo que é, ao lado da Rússia, o principal violador desta mesma ordem. Receber Netanyahu e não prendê-lo, ou mesmo simplesmente recebê-lo, significa jogar por terra o que resta desta “ordem”.
Este problema será renovado a partir de 2025, com a volta de Donald Trump à Casa Branca. Em seu primeiro mandato, diante de investigações sobre o Afeganistão e a Palestina, Trump emitiu uma série de sanções contra integrantes do TPI. Elas foram revertidas por Joe Biden, mas devem ser refeitas e aprofundadas, a julgar pelo desprezo que o círculo de Trump tem pelas instituições internacionais e pelo apoio dado por este mesmo círculo a Netanyahu e às suas práticas contra a sociedade palestina.
No campo simbólico, a decisão do TPI também tem repercussões importantes.
Antes de emitir os mandados de prisão, a Câmara de Pré-Julgamento 1 rejeitou uma petição israelense de que a corte não tem jurisdição sobre Israel. O argumento era de que o país não é signatário do Estatuto de Roma.
Os juízes Nicolas Guillou (França), Reine Alapini-Gansou (Benin) e Beti Hohler (Eslovênia) consideraram, porém, que o TPI pode examinar o caso pois a Palestina é parte do Estatuto de Roma desde 2015. Na decisão, eles reafirmaram uma posição tomada pela mesma Câmara em 2021 (sob outra composição de juízes) segundo a qual sua jurisdição alcança a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e a Faixa de Gaza.
Esses são os territórios ocupados por Israel em 1967 e que deveriam ser a base de um Estado palestino. A decisão é, assim, uma reafirmação jurídica da existência da Palestina em um momento no qual o roubo de terras por parte de Israel está em seu auge: a Cisjordânia deve ser oficialmente anexada nos próximos meses enquanto o Norte da Faixa de Gaza presencia uma campanha de limpeza étnica.
Também significativo do ponto de vista simbólico é o recado dado pelo TPI a respeito do quadro atual. Em um comunicado à imprensa, a corte informou que os mandados de prisão são secretos para proteger as testemunhas e a investigação. Mas disse ter decidido divulgar as informações sobre o caso “já que conduta semelhante à abordada no mandado de prisão parece estar em andamento”.
Isso significa que os juízes, além de se debruçarem sobre o período até maio de 2024 – quando a procuradoria fez a denúncia – estão alertando o mundo a respeito da continuidade dos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos por Israel desde então.
O ponto mais importante da decisão é o fato de ela trazer, ainda que de forma tardia e, talvez, inócua, algum sentido de justiça ao drama dos palestinos. Parece pouco, mas é algo extremamente significativo para uma história de mais de um século de pura injustiça.
Poucos observadores esperavam que o tribunal realmente mirasse Netanyahu. Isso porque, ao longo de sua existência, o TPI se notabilizou como um bastião da ordem internacional liderada pelo Ocidente: uma multiplicidade de lideranças africanas foram julgadas ali, mas a corte jamais conseguiu avançar contra aliados do Ocidente.
Por este ponto de vista, o caso contra Netanyahu é, também, uma tentativa do TPI de expandir o escopo de sua atuação e de dar alguma vitalidade ao Direito Internacional. Certamente, os juízes sabiam do risco que corriam. Em 2025, estarão na mira de Washington e de outras capitais ocidentais, o que pode levar, inclusive, à eventual extinção do tribunal. Talvez os juízes avaliem este desfecho como mais interessante do que o “suicídio” da corte, que seria o silêncio.
O mesmo dilema terá a Corte Internacional de Justiça (ICJ), que examina as acusações da África do Sul contra Israel pelo cometimento de genocídio contra os palestinos. Para qualquer observador minimamente atento do conflito, a condenação de Israel nesses termos é certa e líquida.
O grande problema deste cenário é o fato de que, enquanto os palestinos aguardam as decisões do TPI e da ICJ, seu extermínio continua. O Direito Internacional é, sem dúvida, um recurso importante nas relações internacionais, mas são os atores geopolíticos que têm a capacidade de cessar os abusos de Israel, em especial do Conselho de Segurança da ONU.
Neste ponto, podemos retornar às palavras de Majed Bamya para o Conselho de Segurança. “Essa impotência autoinfligida tem que acabar. Repetimos, as resoluções deste conselho são vinculativas. Seu papel é ser aplicado. O objetivo é mudar a realidade, não registrar violações para fins históricos e então permitir que continuem.”