O Filtro do Oriente Médio (10/11/23) - "Uma guerra contra as crianças"
A ampliação do drama humanitário prossegue sem ação da comunidade internacional. E o futuro político da Faixa de Gaza começa a ser debatido
“Esta é uma guerra contra as crianças”
Muitas pessoas têm evitado ver o noticiário a respeito da Faixa de Gaza por conta das cenas terríveis. Uma alternativa é ouvir os relatos. No podcast 1A, na NPR, emissora pública dos EUA, Tanya Haj-Hassan, pediatra do Médicos sem Fronteira, deu depoimento forte. Esta é uma guerra contra crianças, afirmou ela.
Na conversa com a apresentadora Jenn White, Haj-Hassan, que não está em Gaza, mas que mantém contato com médicos que estão lá, detalhou as circunstâncias nas quais seus colegas estão trabalhando e como as crianças são atingidas de forma desproporcional pelos bombardeiros israelenses.
Até aqui, segundo as autoridades em Gaza, as crianças são cerca de 40% das vítimas, o que significa que 4 mil crianças foram mortas desde 7 de outubro.
Em uma declaração no dia 6, o secretário-geral da ONU também salientou o número de inocentes mortos no conflito. O português enfatizou que a Faixa de Gaza está se tornando “um cemitério para crianças”.
Perigo sem precedentes para jornalistas e trabalhadores da ONU
Nos dois terços finais do podcast da NPR, o tema são os desafios para os jornalistas que cobrem a situação na Faixa de Gaza. Joyce Karam, editora do Al-Monitor, Deborah Amos, professora de Jornalismo em Princeton, e Tehilla Shwartz Altshuler, do Israel Democracy Institute, discutem a situação.
Karam e Amos afirmam que este se trata de um conflito sem precedentes para o jornalismo em termos de violência, enquanto Altshuler destaca que a cobertura em Israel é frágil por dois motivos principais: o governo Netanyahu é opaco e tem relação ruim com a imprensa e os veículos locais não têm jornalistas em Gaza. Elas também discutem as armadilhas da desinformação durante a guerra.
O Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ) atualizou no dia 9 de novembro a lista de profissionais da imprensa mortos pelo bombardeio. São 39 jornalistas assassinados, o que faz deste período o mais mortal para a profissão desde 1992, quando a entidade começou a coletar informações.
Também é recorde o número de integrantes da ONU mortos. Foram 89 assassinados na Faixa de Gaza entre 7 de outubro e 6 de novembro, número que supera todos os outros em períodos equivalentes.
É determinante estar atento às percepções dos israelenses
Não haverá paz ou acordo sem o envolvimento da sociedade israelense. Por isso, é fundamental que os interessados em atenuar o conflito estejam atentos a isso. O massacre provocado pelo Hamas atingiu o âmago dos israelenses e dos judeus na diáspora de uma forma intensa, e foi majoritariamente interpretado como uma reedição de seu pior medo: ser morto simplesmente por ser judeu.
O texto “We Will Defend Ourselves”, do historiador Gadi Taub, da Universidade Hebraica de Jerusalém, ajuda a ver isso. Publicado na Tablet Magazine, é um diagnóstico pessimista sobre o futuro, que avança uma análise da situação sob o ponto de vista sionista. Incomoda a ausência dos palestinos do quadro traçado por Taub, mas este é mais um elemento a ser observado na lógica estabelecida por ele, e que reflete o pensamento, e os instintos, de muitos em Israel.
Qual será o desfecho político da guerra?
No dia 2 de novembro, o analista norte-americano Aaron David Miller recebeu, em uma live do Carnegie Endowment for International Peace, o cientista político palestino Khalil Shikaki. A conversa entre ambos é bastante cristalina a respeito do tamanho da dificuldade para se vislumbrar um desfecho para a guerra na Faixa da Gaza.
Miller é um veterano do Departamento de Estado dos Estados Unidos e foi ex-negociador da questão Israel-Palestina. Seu ponto principal no debate é simples: tanto a sociedade israelense quanto a palestina deixarão este conflito altamente traumatizadas. Para completar, ambas não têm lideranças capazes de canalizar positivamente tais sentimentos.
Shikaki, do Palestinian Center for Policy and Survey Research, complementa destacando que, para Israel cumprir seu objetivo militar – desmontar o aparato militar do Hamas – será preciso reocupar a Faixa de Gaza e, eventualmente, entregar a tarefa de policiar e controlar a região ou para a Autoridade Palestina ou para um grupo de países árabes. A AP ou os países árabes, porém, só podem aceitar algo assim caso exista um projeto concreto a longo prazo para a Faixa de Gaza.
Ocorre que a única forma de montar tal projeto seria o reinício das negociações para o estabelecimento de um Estado palestino, no qual os dois lados teriam de discutir os temas que ficaram em suspenso nos Acordos de Oslo: o status de Jerusalém, os refugiados, a segurança de Israel e as fronteiras entre os dois lados.
Agrava este quadro o fato de que a retomada do processo de paz é justamente o que a elite política israelense menos deseja. Benjamin Netanyahu, em particular, dedicou sua carreira a impedir o estabelecimento de um Estado palestino. Assim, podemos estar diante de um cenário de reocupação de longo prazo por parte de Israel, o que continuaria a endurecer as posições de ambos os lados.
Este debate está na parte final desta excelente troca de ideias:
Outras opiniões importantes
Em entrevista ao The Drift, Rashidi Khalidi, professor de Columbia e editor do Journal of Palestine Studies, ajuda a dar perspectiva à questão palestina. Khalidi subscreve a perspectiva segundo qual este é um conflito de matriz colonial, mas destaca aos que compartilham sua opinião: batalhas deste tipo foram historicamente vencidas em debates na metrópole e não apenas pela violência.
Na Al-Majalla, Michael A. Horowitz analisa a tomada de decisão por parte do Hamas e avalia que a liderança do grupo julgou mal as repercussões de seu ataque contra Israel, tanto em Israel quanto no Irã e nos Estados Unidos.
No blog Diwan, o pesquisador Nathan J. Brown traz cinco perguntas determinantes para se compreender o futuro da Faixa de Gaza. A mais saliente delas é a primeira: Israel está criando “Faixas de Gazas” menores e mais densas dentro da Faixa de Gaza intencionalmente ou por descuido?
Reportagens de destaque
Apuração do New York Times de 5 de novembro confirmou o que era óbvio, como muitos escreveram, inclusive eu neste texto: Israel vem tentando forçar o Egito a receber centenas de milhares de palestinos da Faixa de Gaza.
Também no NYT, perfil de Ron Dermer, um dos integrantes do gabinete de guerra de Netanyahu e seu confidente e aliado de primeira ordem.
Reportagem do Washington Post em 5 de novembro diz que as regras do engajamento militar de Israel na Faixa de Gaza são mantidas em sigilo, mas que elas claramente envolvem a aceitação de um enorme número de civis mortos para cada alvo militar supostamente atingido.
O The Guardian traz mais detalhes do massacre cometido pelo Hamas. O jornal mostrou em 7 de novembro que a ordem de mobilização para o ataque foi passada oralmente para impedir interceptações e traça parte do perfil de Yahya Sinwar, líder do Hamas em Gaza. Segundo o jornal, Sinwar é contumaz defensor da soltura de prisioneiros palestinos e avalia que fazer reféns é a única forma de conseguir isso.
Novidade na Turquia
O CHP, principal partido de oposição na Turquia, tem um novo líder. Após 13 anos, Kemal Kılıçdaroğlu foi destronado por Özgür Özel nas eleições internas do partido. Kılıçdaroğlu teve sua posição abalada pelas derrotas nas eleições gerais de maio deste ano, quando a oposição parecia ter uma chance real de abalar o regime autoritário que Recep Tayyip Erdoğan vem construindo nos últimos anos. Özel terá a missão de liderar a oposição nas eleições municipais de março de 2024, nas quais tentarão manter o controle de grandes cidades como Istanbul, Ankara e Izmir. Elas podem continuar a funcionar como um contrapeso ao poder de Erdogan.