Gaza, Beirute e a destruição da vida civil árabe por Israel
No último ano, referências à "Doutrina Dahiya" se tornaram comuns, mas, na realidade, as lideranças israelenses miram a sociedade civil árabe desde 1948
No último dia 6 de outubro, Yoav Gallant, o ministro da Defesa de Israel, esteve na base aérea de Nevatim, no deserto do Negev, e respondeu algumas perguntas sobre as hostilidades com o Irã. Gallant relatou que nenhum caça israelense foi destruído pelo ataque iraniano e renovou as ameaças a Teerã. “Quem pensa que uma mera tentativa de nos prejudicar nos impedirá de agir deveria dar uma olhada nas [campanhas] em Gaza e Beirute”, afirmou.
Quem seguir o conselho de Gallant, encontrará um rastro de destruição. Na Faixa de Gaza, há 96 mil feridos e 41 mil mortos. Sessenta por cento dos identificados são mulheres, crianças e idosos. Cerca de 291 mil unidades residenciais (62% das existentes em Gaza) foram afetadas pelos bombardeios, sendo que 221 mil foram completamente destruídas.
Além disso, 84% das instalações de saúde foram destruídas ou danificadas, assim como 80% dos estabelecimentos de comércio, indústria e serviços; 62% das ruas e estradas e 57% da infraestrutura de água encanada. Os sistemas de energia elétrica e de educação colapsaram. Estimativas da ONU apontam que só a retirada dos destroços poderia levar 15 anos. A reconstrução de todas as residências da Faixa de Gaza levaria 80 anos.
No Líbano, a fase mais pesada dos ataques israelenses teve início em 30 de setembro, então os números são menores. Desde outubro de 2023, são 1974 mortos no país, incluindo 261 mulheres e 127 crianças. A infraestrutura dos subúrbios no sul de Beirute, porém, está sendo arrasada, a exemplo do que ocorre em Gaza.
A recomendação de Gallant aos líderes iranianos era, portanto, uma celebração da devastação provocada por Israel. Uma indicação de que, caso haja uma escalada na guerra, as forças israelenses vão tentar aniquilar as cidades iranianas como estão fazendo com Gaza e Beirute.
Essa declaração poderia ser interpretada como um rompante de uma figura particularmente problemática. Gallant utilizou o termo “animais humanos” no início da guerra e é alvo de um pedido de investigação por extermínio e uso da fome como arma de guerra. Poderia, também, ser interpretada como derivada do trauma ao qual a sociedade israelense foi submetida pelos ataques do Hamas no 7 de Outubro.
O problema é, no entanto, muito mais profundo. Atacar árabes não-combatentes e destruir a vida civil nas cidades árabes é uma prática arraigada na doutrina militar e no discurso político israelenses desde a fundação do país.
A Doutrina Dahiya
A palavra árabe ضاحية, transliterada para Dahiyeh ou Dahiya, significa subúrbio. No noticiário, muitas vezes ela é usada para designar o que seria um bairro de Beirute. Na realidade, a referência é a uma área mais ampla, os subúrbios do sul (الضاحية الجنوبية) da capital libanesa. É uma região composta por diversas municipalidades e vilas, onde se concentram a população xiita da capital libanesa e também o Hezbollah.
Esta área se tornou conhecida por batizar a chamada “Doutrina Dahiya”, um termo integrado ao discurso militar israelense em 2008. Dois anos antes, durante uma guerra entre Israel e o Hezbollah, essa região foi arrasada pela força aérea israelense. Em outubro de 2008, ao refletir sobre a possibilidade de uma repetição daquele conflito, o então chefe da divisão norte do exército israelense, Gadi Eisenkot, traçou as linhas principais da “doutrina”.
"O que aconteceu em Dahiya em 2006 acontecerá em cada vila de onde Israel for alvejado. Aplicaremos força desproporcional nela (a vila) e causaremos grandes danos e destruição lá. Do nosso ponto de vista, essas não são vilas civis, são bases militares. Isso não é uma recomendação. Isso é um plano. E foi aprovado”, disse.
Na mesma época, um outro general, Gabriel Siboni, escreveu um relatório no qual expunha ideias semelhantes. Siboni defendia que um ataque contra Israel deveria ser retaliado de forma imediata e desproporcional, não necessariamente mirando os pontos de onde os foguetes foram lançados.
Sem mencionar áreas civis de forma explícita, Siboni indicou que Israel deveria priorizar ataques nos ativos do inimigo, “em vez de perseguir locais de lançamento”. Tal resposta, escreveu o general, “será lembrada pelos tomadores de decisão na Síria e no Líbano por muitos anos, aprofundando assim a dissuasão.”
Apesar de ter sido elaborada diante dos desafios impostos pelo Hezbollah, a Doutrina Dahiya foi aplicada prioritariamente contra o Hamas. O grupo palestino assumiu o controle da Faixa de Gaza entre 2006 e 2007 e, desde então, se envolveu em diversas rodadas de conflito com Israel. Em 2008, 2012, 2014 e 2021 houve muita destruição na região, mas o que está acontecendo em 2023-2024 não tem precedentes.
Nesse conflitos contra o Hamas, Israel criou o conceito de power targets ou “alvos de poder”. Entre eles estariam edifícios altos nos centros das cidades, além de outras instalações como universidades, bancos e prédios governamentais. Em dezembro de 2023, a existência deste conceito ganhou alguma notoriedade por conta de uma reportagem do jornalista Yuval Abraham na +972 Magazine.
Abraham mostrou como Israel estava usando inteligência artificial para produzir e, depois, destruir, os “alvos de poder” de forma rápida. Bombardear esses locais, disseram fontes de inteligência ao jornalista “tem como principal objetivo prejudicar a sociedade civil palestina” e “‘criar um choque’ que, entre outras coisas, repercutirá poderosamente e ‘levará os civis a pressionar o Hamas’”.
Nos primeiros dias da campanha aérea, autoridades israelenses fizeram declarações que corroboram as informações obtidas pelo jornalista. “Neste momento estamos focados no que causa o máximo de dano”, disse Daniel Hagari, porta-voz das forças armadas israelenses em 10 de outubro. “Sempre há um alvo militar, mas não estamos sendo cirúrgicos”, afirmou, no dia seguinte, o chefe da força aérea, Omer Tishler.
Ecos de 1948
A Doutrina Dahiya não é, porém, o ponto de partida deste comportamento por parte de Israel. Não é a experiência de lutar contra grupos como o Hamas e o Hezbollah que fez a liderança israelense apelar à prática de atacar a vida civil árabe. Os ataques deliberados contra a infraestrutura civil e não-combatentes não são uma novidade ou um defeito da política israelense, mas uma característica presente desde sempre, como mostram diversos historiadores israelenses.
No livro Dear Palestine: A Social History of the 1948 War (em tradução livre, “Querida Palestina: Uma História Social da Guerra de 1948”), Shay Hazkani analisa as motivações dos soldados judeus e árabes na guerra que deu origem a Israel e que culminou no Nakba, a catástrofe palestina (o deslocamento de mais de 700 mil pessoas).
Aquele conflito foi resultado de pelo menos cinco décadas de deterioração na relação entre as duas comunidades e teve um grau significativo de perversidade. Se olharmos para o lado israelense, podemos ver como o episódio foi decisivo para moldar a mentalidade de sua liderança.
Em dezembro de 1947, conta Shay Hazkani, David Ben-Gurion, então líder político dos sionistas, ordenou que suas forças armadas adotassem uma postura “agressiva defensiva” na qual deveriam dar “golpes decisivos”, o que incluía “destruir o local a partir de onde o ataque teve origem ou perseguir os árabes e tomar seu lugar”.
No livro A State at Any Cost: The Life of David Ben-Gurion (em tradução livre “Um Estado a Qualquer Custo: A Vida de David Ben-Gurion”), Tom Segev discute o mesmo episódio. O autor confirma que, em meio ao conflito, Ben-Gurion endossou a política de um conselheiro que defendia, inclusive, o ataque às famílias dos árabes responsáveis pelas mortes de judeus.
“É necessária uma resposta brutal e forte. Se a família for conhecida, ataque-a sem piedade, mulheres e crianças incluídas. Caso contrário, a resposta não é eficaz. No local da ação não há necessidade de distinguir entre culpados e inocentes”, afirmou o conselheiro de Ben-Gurion.
Já no primeiro semestre de 1948, Ben-Gurion liderava uma campanha militar que tinha o objetivo de destruir ou despovoar vilas árabes encaradas como uma ameaça. Quem conta isso é Benny Morris no livro The Birth of the Palestinian Refugee Problem, 1947-1949 (em tradução livre “O Nascimento do Problema dos Refugiados Palestinos”).
A essência do plano vigente naquele momento, explica Morris, “era a limpeza de forças hostis e potencialmente hostis do interior do território do futuro Estado judeu, estabelecendo continuidade territorial entre as principais concentrações de população judaica e protegendo as fronteiras do futuro Estado antes e em antecipação à invasão”.
Quase todas as vilas eram consideradas como ativamente ou potencialmente hostis e, no livro, Morris descreve como esse plano culminou em uma política organizada de demolições de casas, de modo a impedir a permanência e o retorno de seus moradores.
A mesma mentalidade e as mesmas práticas, 75 anos depois
Uma estimativa de 2021 apontava que Israel demoliu 52 mil residências em 1948 em áreas que hoje são parte do território israelense. Na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, tomadas em 1967, foram outras 60 mil demolições. Até hoje, Israel tem como prática demolir as casas de palestinos envolvidos em atos de violência contra judeus.
Essa pequena coletânea de fatos e declarações demonstra que o que está ocorrendo nos territórios palestinos ocupados e no Líbano não é uma novidade, mas sim a continuação de um processo iniciado há mais de 75 anos.
Os eventos de 1948 e a “verdade” do que ocorreu ali ainda estão no cerne da disputa entre israelenses e palestinos. Para serem compreendidas – o que não significa justificá-las – as decisões tomadas naquele conflito por Ben-Gurion e seu entorno devem ser colocadas em seu devido contexto.
A liderança judaica era em larga medida composta por judeus europeus, cujas famílias haviam sido perseguidas em seus países de origem. A comunidade que lideravam era também vítima do antissemitismo europeu e de seu ponto culminante, o Holocausto. O estabelecimento de um Estado judeu era, portanto, uma empreitada encarada como existencial, cujo eventual fracasso era entendido como capaz de finalizar o extermínio dos judeus.
Na atualidade, um problema central do conflito no Oriente Médio é que essa mentalidade continua a delinear a tomada de decisões em Israel. Hoje o país tem as principais forças armadas da região, o apoio indefectível dos Estados Unidos e uma economia pujante. Mas sua liderança continua a pensar e a agir como em 1948.
As atrocidades do Hamas no 7 de Outubro serviram como um salvo-conduto para esse tipo de comportamento. Desde então, os líderes de Israel fizeram do extermínio de árabes e da devastação de sua vida civil uma atividade corriqueira, quase banal. E também uma arma de guerra. Não foi apenas o ministro da Defesa que usou a destruição neste sentido.
No último dia 8, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, gravou, em inglês e com legendas em árabe, uma mensagem aos libaneses. No vídeo, ele invocou os cidadãos do país a se levantarem contra o Hezbollah – uma entidade mais bem armada que o exército do Líbano – e indicou que essa é a única alternativa à aniquilação do país. “Vocês têm a oportunidade de salvar o Líbano antes que ele caia no abismo de uma longa guerra que levará à destruição e ao sofrimento como vemos em Gaza”, disse.
As declarações e práticas do governo israelense seriam suficientes para tornar o país um Estado pária, não fosse o fato de Israel ser um aliado de primeira ordem do Ocidente. Fosse um adversário dos EUA e da Europa, Israel seria classificado como um Estado criminoso, estaria sob sanções e, possivelmente, sob ameaça de uma intervenção externa, a exemplo da Sérvia nos anos 1990.
Como não é, Israel age livremente, diuturnamente massacrando árabes, cujas vidas são pouco valorizadas no mundo ocidental. “Se um avião de papel voasse sobre Israel, causaria um tumulto sem fim. Mas para nós, todos estão deslocados e o mundo inteiro está em silêncio sobre isso, as Nações Unidas e todos estão em silêncio, como se não fôssemos seres humanos."
Essa frase é de uma mulher libanesa chamada Dalal Daher e foi registrada pela agência Reuters. No último dia 27 de setembro, Dalal dormiu na rua em Beirute, com medo de seu prédio ser derrubado por um ataque israelense. Assim como ela, nas últimas duas semanas, muitos libaneses de Beirute que não puderam deixar o país estão morando de forma improvisada nas ruas e praias da capital para tentar evitar a morte.
A cada dia que passa, em nome da alegada defesa da segurança do país, a liderança israelense escava um pouco mais o buraco do ódio e da aversão a Israel no mundo árabe. É a garantia da perpetuação do conflito.