Limpeza étnica no norte de Gaza: a implementação do "Plano dos Generais"
Debatido abertamente em Israel, o projeto de deslocamento forçado de palestinos continua avançando, em meio a muitas denúncias de atrocidades
Na semana passada, o leitor de Tarkiz ficou sabendo que as forças armadas de Israel começaram a aplicar em 1º de outubro o chamado “Plano dos Generais”. Concebido por Giora Eiland, um general da reserva conhecido por seu discurso genocida, o projeto envolve o corte total de água, comida e ajuda humanitária em uma determinada área, associado a ordens de evacuação. A ideia é obrigar os civis palestinos a fugir para não serem considerados inimigos e, consequentemente, mortos. Isso daria aos integrantes do Hamas, argumentam os defensores do plano, duas únicas opções: render-se ou morrer de fome.
Este plano é um conjunto de crimes de guerra e contra a humanidade. A julgar pelas movimentações militares e políticas do governo israelense, o objetivo é a promoção de uma limpeza étnica na Faixa de Gaza e a posterior tomada do território – em parte ou integralmente. Por enquanto, o plano está sendo aplicado na região norte do enclave (veja o mapa abaixo), mas ao que tudo indica será expandido no futuro – o próprio Eiland concebeu o plano para chegar ao menos até a cidade de Gaza.
Este propósito não é confirmado abertamente pelo governo de Benjamin Netanyahu. O primeiro-ministro aguarda a eleição nos Estados Unidos para saber qual ritmo o projeto terá. Se Kamala Harris vencer, deve avançar de forma paulatina, como vem ocorrendo nas últimas três semanas. Caso Donald Trump seja eleito, pode-se esperar uma aceleração de seu andamento.
O diagnóstico exposto aqui não é um exagero retórico ou uma teoria conspiratória, mas sim uma análise com base no transcurso da guerra, nas declarações e ações da liderança israelense. Ele é compartilhado, por exemplo, por Amit Segal, principal comentarista político do Canal 12, um dos maiores de Israel, e figura muito próxima de Netanyahu.
Na segunda-feira 21, Segal foi questionado sobre a possibilidade de partes da Faixa de Gaza serem recolonizadas. Ele tergiversou sobre o assunto, mas afirmou que, se Trump for eleito, deve haver uma “mudança de fronteiras”. Em outras palavras, mais território palestino será tomado por Israel.
Na sequência, o analista comentou a operação militar realizada desde 1º de outubro. “O que está ocorrendo no norte de Gaza é um acontecimento diferente de tudo o que vimos até agora”, disse. “Você pode negar até amanhã que a história não é a implementação do Plano dos Generais, esvaziando a Faixa de Gaza, matando de fome os terroristas, eliminando-os, capturando-os, mas isso é o que eu acho que está acontecendo lá e na minha opinião é apenas um piloto ou uma promoção [do que virá em seguida]”.
Nesta terça-feira 22, o diplomata Eran Etzion, que já ocupou o cargo de número dois no Conselho de Segurança Nacional de Israel, demonstrou ter chegado à mesma conclusão de Segal. Etzion disse que o Plano dos Generais está sendo colocado em prática, mas de forma “escondida do público”. Ao contrário de Segal, porém, Etzion retratou a ação no norte de Gaza como um crime de guerra.
Ele destacou – provavelmente de forma exagerada – que, a depender das condições, o avanço do plano poderia culminar em um embargo de armas por parte dos Estados Unidos. Por isso, afirmou ele – de forma tardia diante do que se viu no último ano – os soldados israelenses deveriam “se recusar a participar de qualquer ação que constitua um crime de guerra.”
Como o Plano dos Generais está sendo aplicado
Nos últimos meses, algumas reportagens contaram as histórias de soldados israelenses que se recusaram a servir diante dos abusos cometidos na Faixa de Gaza. O número de militares com a postura defendida por Etzion não é, no entanto, significativo a ponto de interromper a campanha. O próprio avanço da operação no norte de Gaza deixa isso claro.
Entre os dias 1 e 14 de outubro, a região não recebeu nenhum tipo de suprimento, segundo informou o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (Ocha, na sigla em inglês). Desde então, disse o órgão nesta terça-feira 22, apenas uma quantidade “simbólica” de itens chegou até lá.
O cenário, portanto, é de uma nova crise de fome, como a registrada no fim de 2023, disse à CNN na segunda-feira 21 o britânico Sam Rose, diretor da UNRWA, a agência da ONU para refugiados palestinos. No dia seguinte, o suíço Philippe Lazzarini, comissário-geral da entidade, afirmou que os funcionários da UNRWA estavam com dificuldades para “encontrar comida, água ou cuidados médicos.”
Além de cortar a ajuda humanitária, Israel segue bombardeando a região, que é uma zona ativa de combate com o Hamas e outros grupos armados. Ao menos três grandes ataques foram registrados nos últimos dias. O primeiro se deu em 17 de outubro e mirou um escola da UNRWA transformada em abrigo.
No dia 18, houve um grande bombardeio contra o campo de refugiados de Jabalia, que deixou dezenas de mortos. No mesmo dia, o Ocha da ONU solicitou ao governo israelense a permissão para entrar na região e resgatar as dezenas de pessoas presas sob os escombros. Na terça-feira 22, o órgão informou que Israel ainda não havia concedido a permissão.
O vídeo abaixo, publicado pelo Ocha no dia 20, mostra Shamekh Adeeb Ad Dibes, um sobrevivente deste ataque, dizendo que embaixo dos escombros havia inclusive mulheres e crianças.
Em 19 de outubro, um bloco residencial em Beit Lahia, localidade também no norte da Faixa de Gaza, foi destruído por um ataque israelense, deixando quase 90 mortos. A reportagem abaixo, do britânico Channel 4, mostra a devastação deixada pelo ataque e diversas crianças feridas.
Deslocamento forçado, limpeza étnica
Em todos esses casos de bombardeios, o governo de Israel afirma que entre os mortos estavam diversos integrantes do Hamas. As imagens e os relatos disponíveis indicam que, caso isso seja verdade, muitos civis foram mortos como “efeito colateral”.
Os eventos no último ano mostraram que a regra das operações israelenses é a ocorrência de muitas mortes deste tipo, o que fez o número de vítimas fatais passar de 40 mil pessoas. Mostraram, também, que as informações fornecidas pelas forças armadas de Israel são bem pouco confiáveis. Uma análise sobre como ocorre a limpeza étnica no norte da Faixa de Gaza – o núcleo do Plano dos Generais – é reveladora sobre isso.
Na segunda-feira 21, um porta-voz do exército israelense divulgou a imagem abaixo, argumentando que ela mostraria “a evacuação segura por meio de rotas organizadas”. Reportagens sobre como esse processo está sendo realizado revelam, porém, um quadro de atrocidades.
Mais uma vez, no epicentro da violência estão os hospitais. No norte de Gaza, apenas três estão parcialmente funcionando, entre eles o Kamal Adwan e o Indonésio. Em 18 de outubro, eles foram atacados por Israel, segundo informou o Ocha. Muhannad Hadi, coordenador humanitário da ONU para os territórios palestinos, reforçou que Israel “ampliou a pressão para esses hospitais serem evacuados, mas os pacientes não têm para onde ir”.
Em 19 de outubro, Anna Halford, coordenadora da ONG Médicos Sem Fronteiras para Gaza, condenou os ataques aos hospitais e disse que o quadro no norte da região “é pura e simplesmente uma punição coletiva imposta aos palestinos em Gaza, que devem escolher entre serem deslocados à força do norte ou mortos”.
No mesmo dia, a chefe humanitária interina da ONU, Joyce Msuya, destacou as “notícias assustadoras do norte de Gaza, onde os palestinos continuam a suportar horrores indizíveis sob cerco das forças israelenses”. Ela denunciou a recusa de Israel em liberar o resgate das pessoas sob os escombros e também o deslocamento à força de milhares de palestinos.
No domingo 20, o Escritório de Direitos Humanos da ONU indicou que “a maneira como os militares israelenses estão conduzindo as hostilidades no norte de Gaza, juntamente com a interferência ilegal na assistência humanitária” da população “podem estar causando a destruição da população palestina” naquela área.
Na terça-feira 22, Tedros Ghebreyesus, chefe da OMS, revelou que uma missão para levar bolsas de sangue, combustível e outros materiais essenciais ao hospital Kamal Adwan foi cancelada por Israel após inicialmente ter sido autorizada.
Nos dias 21 e 22, o jornal The National, dos Emirados Árabes Unidos, a agência Reuters e as redes BBC e Al-Jazeera ajudaram a ilustrar os “horrores indizíveis” no norte da Faixa de Gaza. Os dois primeiros veículos publicaram depoimentos segundo os quais soldados israelenses queimaram edificações nas cercanias do Hospital Indonésio para impedir que os desabrigados permaneçam nesses locais.
Iman Wadi, uma mulher de 31 anos, descreveu ao jornal o procedimento dos soldados israelenses no abrigo em que estava. “Eles chegaram ao amanhecer no sábado (19). Duas horas depois, ordenaram que todos os homens jovens e meninos com mais de 10 anos descessem dos quartos para o pátio. Eles os levaram para locais desconhecidos sob a mira de armas, espancando-os e abusando deles”, afirmou. Um vídeo divulgado por uma emissora israelense mostrou dezenas de prisioneiros palestinos algemados e vendados sendo transportados em caminhões militares. Seu destino era desconhecido.
Depois, disse Wadi, as mulheres e crianças menores foram ameaçadas antes de serem liberadas. “Eles queimaram os abrigos perto do Hospital Indonésio e nos avisaram para não olhar para a direita ou para a esquerda, ou nossas vidas estariam em risco.”
Também ao The National, Rami Youssef, um homem de 26 anos sitiado no campo de Jabalia, afirmou que o local está completamente cercado. “Qualquer um que tenta entrar ou sair por qualquer rota que não seja a designada pelo exército é morto na hora”. Segundo ele, muitas pessoas estão com medo de deixar o local pois não sabem qual será seu destino.
“Vários dos nossos vizinhos partiram nos últimos dias, mas perdemos contato com eles. Eles não chegaram à cidade de Gaza nem voltaram para casa. É provável que o exército [israelense] os tenha matado ao longo do caminho. Ninguém sabe o destino deles.”
A Al-Jazeera publicou uma reportagem (abaixo) na qual exibiu cenas registradas logo depois do que teria sido um ataque de artilharia contra civis que, antes de deixar Jabalia, procuravam água para a sua viagem a pé. A BBC, por sua vez, entrevistou algumas pessoas que conseguiram deixar o campo e chegar à cidade de Gaza.
Elas relataram um cenário caótico, com quadricópteros israelenses ordenando a evacuação em meio aos ataques, pessoas fugindo desesperadas, algumas deixando até mesmo crianças para trás, e muitos corpos no meio do caminho. Uma paramédica identificada como Nevin al-Dawasah relatou ter visto um ataque repentino em meio à saída das pessoas. “Havia mortos e feridos e não havia passagem segura para as ambulâncias chegarem”, disse.
O blecaute na imprensa
O acúmulo de crimes de guerra por parte de Israel não é o único aspecto desta situação que causa perplexidade. O mesmo efeito tem o blecaute no noticiário a respeito desses crimes. Em parte, isso se deve a uma manobra das lideranças israelenses, que desde o início se esforçaram tanto para impedir o acesso da imprensa internacional à Faixa de Gaza quanto para exterminar os jornalistas palestinos.
Nesta semana, inclusive, a falta de acesso à imprensa estrangeira foi objeto de uma moção assinada por 64 deputados dos Estados Unidos, todos eles democratas. A Casa Branca, é claro, não fará nenhum esforço neste sentido, pois a entrada de jornalistas mostraria os crimes israelenses e também a cumplicidade norte-americana.
O bloqueio imposto por Israel, porém, não é, ou não deveria ser, uma desculpa para a não existência de uma cobertura em larga escala do que está acontecendo no norte de Gaza. As reportagens citadas neste texto e no da semana passada são apenas elementos isolados sobre o tema e não parte de uma cobertura sistemática, que este tema certamente mereceria. No Brasil, por exemplo, não há menção recente a Giora Eiland em nenhum dos três principais jornais do país.
A perplexidade se dá porque, mesmo com o bloqueio israelense, há muitas informações públicas. Inúmeras ONGs e órgãos ligados à ONU estão emitindo alertas diários. Governos como os da Irlanda e da Indónesia, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e o espanhol Joseph Borrell, alto-representante da União Europeia para Assuntos Externos, também se manifestaram nesta semana.
Além disso, o debate sobre o Plano dos Generais se dá de modo aberto em Israel. Giora Eiland postou no Youtube um vídeo sobre seu projeto criminoso. Amit Segal falou em um canal de TV aberta. Eran Etzion publicou seu pedido de desobediência aos militares israelenses no Twitter/X.
A cobertura esporádica da grande imprensa corporativa ocidental não é aceitável. É uma mancha na história do jornalismo. As lideranças políticas e os militares israelenses estão devastando o passado, o presente e o futuro dos palestinos da Faixa de Gaza. A cada dia que se passa, a não-cobertura sobre o tema, seja ela culposa ou dolosa, se configura um acobertamento de crimes inomináveis.