A pior derrota de Erdogan
Vitória surpreendente da oposição nas eleições municipais pode ser o início de uma mudança de curso na história da Turquia, o que impacta toda a região
O sistema político da Turquia deu uma prova de resiliência no domingo 31, ao erguer o que pode vir a ser um importante obstáculo contra o ímpeto autoritário do presidente Recep Tayyip Erdoğan. O seu Partido Justiça e Desenvolvimento, o AKP, sofreu a mais dura derrota desde que chegou ao poder pela primeira vez, em 2003, e ficou em segundo lugar nas eleições municipais, com 35,49% dos votos.
A sigla mais votada nacionalmente foi o Partido Republicano da Turquia (CHP), que obteve seu melhor resultado desde os anos 1970 e amealhou 37,77% dos votos. O CHP confirmou seu controle sobre as cinco maiores cidades da Turquia (Istambul, Ankara, Izmir, Bursa e Antalya) e obteve vitórias também em diversas províncias antes dominadas pelo AKP.
O triunfo da oposição é uma surpresa significativa pois, nos últimos anos, Erdoğan vem transformando a Turquia em uma autocracia eleitoral. Em especial desde a tentativa de golpe de Estado de 2016, o presidente e seus aliados passaram a ampliar sua influência sobre as instituições estatais e a sociedade civil, criando um cenário de disputa injusto para seus adversários, principalmente os alinhados aos movimentos curdos.
As eleições continuaram a ocorrer neste período, mas Erdoğan esteve decidido a tensionar o sistema a seu favor. Em 2015, decidiu ignorar o resultado das eleições parlamentares e forçou um novo pleito que favoreceu o AKP. Em 2019, após o CHP vencer a eleição municipal em Istambul, seus aliados também forçaram a repetição do pleito, desta vez por meios judiciais, mas o partido republicano voltou a vencer.
A vitória da oposição em 31 de março tende a dificultar os planos de Erdoğan de mudar a Constituição da Turquia mais uma vez. Em 2017, ele conseguiu apoio popular para uma alteração de grande monta, que substituiu o sistema parlamentarista por um presidencialista em condições que lhe permitiram se perpetuar no poder. Eleito em 2018 e reeleito em 2023, Erdoğan tem mandato até 2028, mas a revisão constitucional poderia facilitar sua busca por um quarto mandato consecutivo.
Ekrem İmamoğlu, o desafiante
Dentro do CHP, o grande vencedor das eleições foi Ekrem İmamoğlu, reeleito prefeito de Istambul com 51,14% dos votos. Ele se tornou um importante adversário de Erdoğan em 2019, quando chegou ao cargo pela primeira vez após a repetição daquele pleito, o que ocorreu sob grande pressão do presidente.
Em 2022, em um caso que refletiu o cenário político restrito para a oposição, İmamoğlu foi condenado a dois anos e sete meses de prisão por insultar os membros do órgão que supervisiona as eleições, o YSK, mas conseguiu, por meio de recursos, se manter no cargo.
Com a vitória, İmamoğlu se posiciona como o principal concorrente de Erdoğan para as eleições presidenciais de 2028. Istambul é um colosso, uma cidade de 16 milhões de habitantes, maior que diversos países europeus, responsável por cerca de um quarto do PIB da Turquia e centro industrial e tecnológico do país.
Reempossado no cargo, İmamoğlu terá a influência, as conexões e o prestígio para desafiar Erdoğan caso o presidente encontre caminhos para tentar se reeleger. O CHP é um partido firmemente secular, mas İmamoğlu é um muçulmano praticante, o que faz com que atraia votos de diversos setores.
O AKP de Erdoğan, por sua vez, é um partido islamista, que enfatiza seu caráter religioso e que utilizou essa identidade para avançar seus projetos nos últimos vinte anos, primeiramente com um verniz democrático, mas, depois, de forma autoritária.
A eleição municipal, porém, não foi marcada apenas pela dicotomia entre seculares e religiosos, mas também pela problemática situação econômica da Turquia. Após ser reeleito em maio de 2023, Erdoğan decidiu aplicar o receituário ortodoxo de arrocho e controle de gastos, mas fez isso de forma fragmentada.
A Turquia chegou às eleições com uma inflação anualizada de 67% e juros cada vez mais altos, um cenário que minou as condições de vida no país, em especial dos aposentados. A taxa de comparecimento caiu de 87% para 78,5%, um sinal de que muitos eleitores tradicionais do AKP decidiram punir Erdoğan ao não sair de casa para votar.
Mesmo no campo religioso, Erdoğan viu seu domínio sobre o sistema político turco ser abalado. O terceiro partido mais votado, com 6,19%, foi o YRP, também islamista.
Apesar de ser uma novidade na política turca (foi fundado em 2018), o YRP conseguiu vitórias expressivas ao apostar em um discurso também conservador e crítico de Israel. Ao longo do período eleitoral, a hipocrisia do AKP sobre a guerra na Faixa de Gaza foi exposta pelo jornalista Metin Cihan, que demonstrou como empresas ligadas ao partido seguem comercializando com Israel ao mesmo tempo que integrantes do partido criticam a devastação imposta aos palestinos.
Ainda no domingo 31, Erdoğan fez um discurso no qual aceitou os resultados. Segundo ele, a eleição foi uma vitória da democracia e o AKP deve fazer uma autocrítica pensando em 2028. Aos 70 anos, comandando a política da Turquia há 21, Erdoğan tem destino incerto. Já disse que não tentará a reeleição, mas muitos suspeitam da sinceridade de suas palavras.
İmamoğlu, por sua vez, afirmou que o pleito municipal representava o “nascimento de uma nova era”, e que a partir de agora haverá uma nova Turquia, com democracia, igualdade e liberdade. O prefeito de Istambul também indicou que sua vitória deveria ser interpretada como uma vitória de todos que lutam contra o autoritarismo, tanto no âmbito regional quando global.
Pelos próximos quatro anos, a Turquia estará diante de um embate ainda mais aberto entre Erdoğan e İmamoğlu, o que deve definir o futuro do país no médio prazo e que pode alterar a política externa da Turquia e influenciar o Oriente Médio como um todo.