Sde Teiman, o campo de tortura no centro da campanha de Israel contra os palestinos
Em uma base militar, forças israelenses submetem pessoas presas na Faixa de Gaza a humilhações, maus-tratos e violência física
O local fica no Negev, região Sul de Israel, a 30 quilômetros da Faixa de Gaza;
Prisões indiscriminadas levam grandes contingentes de palestinos para um submundo repleto de violações aos direitos humanos;
Na ala médica de Sde Teiman, profissionais de saúde são forçados a realizar ações abusivas, mas anonimato os protege.
Em 18 de dezembro de 2023, o médico palestino Mohammed al-Ran foi preso por forças israelenses nas cercanias do hospital Al-Ahli, na cidade de Gaza. Localizado no distrito de Zeitoun, o Al-Ahli é o único hospital cristão da Faixa de Gaza e se tornou mundialmente conhecido em 17 de outubro, após centenas de pessoas serem mortas por conta de uma explosão, de autoria nunca confirmada.
No dia da prisão de Al-Ran, o hospital batista estava sitiado por Israel, uma ação responsável por provocar a morte de pelo menos quatro pacientes por falta de tratamento e a transferência de outros 150. O médico estava em seu terceiro dia de trabalho no local, para onde tinha se transferido após o Hospital Indonésio, onde era o cirurgião-chefe, ser deixado em ruínas por Israel.
Ao ser preso, Al-Ran foi sugado para um submundo no qual as forças israelenses cometem abusos sistemáticos, inclusive tortura, contra prisioneiros palestinos capturados na Faixa de Gaza.
No coração deste submundo está um campo de prisioneiros montado na base militar de Sde Teiman, na região desértica do Negev, a cerca de 30 quilômetros da Faixa de Gaza: “Nossos dias foram repletos de oração, lágrimas e súplicas. Isso aliviava nossa agonia”, disse Al-Ran à CNN.
Humilhações e tortura são parte da rotina
A reportagem à qual o cirurgião palestino falou foi publicada em 10 de maio. É a mais recente peça em um quebra-cabeças montado por jornalistas, ONGs e agências humanitárias a respeito do tratamento dispensado por Israel a seus prisioneiros na guerra. O resultado até aqui mostra uma estrutura estatal – montada e operada pelas forças de segurança, referendada pelo parlamento e protegida pelo Judiciário – cuja atuação é marcada por muitas violações de direitos humanos.
As primeiras evidências significativas a indicar abusos de prisioneiros começaram a aparecer entre 7 e 9 dezembro de 2023. Naqueles dias, foram divulgadas imagens de grupos de palestinos despidos, vendados e algemados sendo levados por soldados israelenses. Ao mesmo tempo, surgiram relatos de que as prisões estavam sendo realizadas de modo indiscriminado, e abarcavam civis, incluindo menores, mulheres e idosos.
As autoridades de Israel alegaram ter detido apenas “suspeitos de integrar o Hamas”, mas ao menos uma pessoa naquele grupo foi reconhecida de imediato: o jornalista Diaa Al-Kahlout, chefe da sucursal de Gaza do jornal Al-Araby Al-Jadeed. Ele ficou 33 dias preso, sofreu humilhações e foi torturado, como contou ao site do Comitê para a Proteção de Jornalistas.
Um levantamento realizado pela UNRWA com as pessoas libertadas por Israel e publicado em 4 de abril mostra que Al-Kahlout era apenas um em meio a centenas de inocentes. No relatório, a UNRWA informou que, até ali, 1.506 palestinos presos na Faixa de Gaza tinham sido libertados, incluindo 84 mulheres, 43 crianças, 23 funcionários da própria agência e 326 trabalhadores palestinos atuando Israel.
Neste contexto, Mohammed al-Ran acabou preso. O cirurgião foi rapidamente liberado de qualquer conexão com o Hamas, mas permaneceu detido em Sde Teiman por 44 dias, nos quais foi obrigado a atuar como intérprete (ele fala hebraico, ao contrário da maioria dos presos). Seus benefícios eram não ser torturado e poder circular sem a venda obrigatória. Na prática, afirmou ele à CNN, isso também se tornou um abuso.
“Parte da minha tortura foi poder ver como as pessoas estavam sendo torturadas”, disse ele. (…) “Quando me tiraram a venda, pude ver a extensão da humilhação e do rebaixamento… pude ver até que ponto eles nos viam não como seres humanos, mas como animais.”
Segundo Al-Ran, os presos, vendados e algemados, são deixados na mesma posição por horas; submetidos a ataques de cães durante o breve período de sono; expostos ao frio e ao calor do deserto; proibidos de falar e espancados se violam essa regra. Todo este relato foi corroborado pela CNN por meio de entrevistas realizadas com três delatores israelenses – envolvidos nesses atos ou observadores.
“Eles despojaram [os prisioneiros palestinos] de qualquer coisa que se parecesse com seres humanos”, afirmou um dos delatores. “Quando tiraram a venda, pude ver a extensão da humilhação e do rebaixamento… pude ver até que ponto eles nos viam não como seres humanos, mas como animais”, disse Al-Ran.
O relatório da UNRWA traz mais detalhes. Ali, os presos descrevem espancamentos de diversas formas, uso de choques elétricos, ameaças de bombardeio a suas casas, humilhações como ser obrigado a agir como animais, beber água de vasos sanitários, soldados urinando em cima dos presos, uso de música alta e barulho, privação de água, comida, sono e banheiros. Uma mulher também relatou ter sido abusada sexualmente.
Pediram aos soldados que cuspissem em mim, dizendo ‘ela é uma vadia, ela é de Gaza’. Eles nos batiam enquanto nos movíamos e diziam que iriam colocar pimenta nas nossas partes sensíveis [genitais]. Eles nos puxaram, nos espancaram, nos levaram de ônibus para a prisão de Damon depois de cinco dias. Um soldado tirou nossos hijabs e eles nos beliscaram e tocaram nossos corpos, inclusive nossos seios. Estávamos vendadas e sentíamos eles nos tocando, empurrando nossas cabeças para o ônibus. Começamos a nos apertar para tentar nos proteger do toque. Eles disseram ‘vadia, vadia’. Disseram aos soldados para tirarem os sapatos e baterem na nossa cara com eles.
Abusos na ala médica de Sde Teiman
Um dos aspectos mais perturbadores dos relatos diz respeito ao tratamento recebido pelos presos na ala médica de Sde Teiman. Trata-se de um “hospital de campanha” montado após o Ministério da Saúde de Israel se recusar a tratar as pessoas presas na Faixa de Gaza no sistema público israelense – uma decisão apoiada de forma maciça pelas direções dos hospitais públicos.
Em 18 de abril, o braço israelense da ONG Médicos pelos Direitos Humanos publicou um relatório de 20 páginas sobre Sde Teiman. A ONG compara o local a Guantánamo e Abu Ghraib, equipara o tratamento dos presos a tortura e pede ao governo de Israel seu fechamento imediato.
De acordo com a entidade, o Ministério da Saúde criou uma série de diretivas para o funcionamento da ala médica na base, mas na prática elas “permitem as violações [de direitos humanos], ao mesmo tempo que protegem os funcionários de repercussões legais e queixas de má conduta ética, incluindo o envolvimento em práticas equivalentes a tratamento desumano ou tortura”. A base do relatório são informações tornadas públicas a respeito deste local.
Como destacado n’O Filtro do Oriente Médio, em 4 de abril o jornal Haaretz publicou trechos de uma carta enviada por um médico israelense ao governo de Israel, detalhando os abusos aos quais são submetidos os detidos no “hospital” de Sde Teiman. Segundo ele, as algemas de plástico são mantidas tão apertadas a ponto de provocar ferimentos graves, o que tornou a amputação de membros um “acontecimento rotineiro.”
No dia 15 de abril, a agência Reuters também publicou uma reportagem na qual os entrevistados fizeram denúncias de tortura. Ela corrobora a afirmação do delator ouvido pelo Haaretz. Morador de Abassan, cidade próxima a Khan Younis, Sufian Abu Salah, de 42 anos e pai de quatro filhos, disse ter sido preso em uma escola onde sua família buscou refúgio. Ele afirmou não saber se estava em Sde Teiman, mas comparou o local a uma instalação militar. Lá, sua perna foi amputada.
“Fui para a prisão com duas pernas e voltei com uma perna”, disse Sufian Abu Salah, por telefone do hospital, acrescentando que não tinha histórico médico de doenças crônicas. "Tive inflamações na perna e eles (os israelenses) recusaram-se a me levar ao hospital, uma semana depois as inflamações se espalharam e se tornaram gangrena. Me levaram ao hospital onde fiz a cirurgia", disse Abu Salah, acrescentando que tinha foi espancado pelos seus captores israelenses.
A mais escandalosa revelação sobre a ala médica de Sde Teiman foi feita por um dos delatores ouvido pela CNN. À emissora norte-americana, o homem disse ter recebido ordens de realizar procedimentos médicos nos detidos palestinos para os quais não estava qualificado.
“Pediram-me para aprender como fazer coisas nos pacientes, realizando pequenos procedimentos médicos que estão totalmente fora da minha especialidade”, disse ele, acrescentando que isso era frequentemente feito sem anestesia. “Se reclamassem de dor, receberiam paracetamol” (…). “Só estar lá dava a sensação de ser cúmplice de abuso.”
Anonimato e impunidade
A base das reportagens da CNN e da Reuters e dos relatórios da UNRWA e da Médicos pelos Direitos Humanos são depoimentos de palestinos soltos por Israel após a prisão. Essas pessoas retornaram à Faixa de Gaza por meio do posto de Kerem Shalom, um dos pontos de entrada na região controlado por Israel.
A soltura de prisioneiros após sessões de tortura chama atenção por ser um indicativo de que as autoridades israelenses responsáveis por Sde Teiman trabalham sem qualquer temor de uma eventual punição. Isso não é exatamente uma surpresa, tendo em vista o clima militante na sociedade israelense desde os ataques do Hamas em 7/10. A perspectiva de impunidade não está calcada apenas nisso, porém.
As prisões indiscriminadas encontram-se protegidas pela Lei de Detenção de Combatentes Ilegais, uma legislação aprovada em 2002 pelo Knesset, o parlamento israelense, e que vem sendo atualizada desde então. Em dezembro de 2023, após o início da incursão terrestre, a lei foi novamente emendada, com ampliação dos prazos legais para detenção e redução da patente dos oficiais do Exército e do Shin Bet (serviço de inteligência) para determinarem as prisões.
Essa mesma lei traz as diretrizes sobre os presos na ala médica. Tanto o médico cuja carta foi publicada pelo Haaretz quanto a ONG Médicos pelos Direitos Humanos afirmam que o cenário em Sde Teiman é uma violação dessas regras. O funcionamento do hospital de campanha, porém, se dá sem possibilidade de responsabilizar os agentes militares, de inteligência ou de saúde empregados ali. “Você não assina nada e não há verificação de autoridade”, disse um delator à CNN.
O funcionamento de Sde Teiman é protegido, também, pelo Judiciário israelense. De acordo com a CNN, a Suprema Corte rejeitou uma série de pedidos de habeas corpus apresentados em nome de palestinos desaparecidos.
Pode-se dizer, também, que este submundo de tortura montado e operado pelo Estado de Israel é referendado pela sociedade. No início de abril, diversas ONGs israelenses protestaram em frente à Sde Teiman. Ao menos uma pessoa criticou os ativistas, dizendo que ali só havia terroristas – como se isso justificasse as arbitrariedades.
Por enquanto, o número presos e de mortes nas prisões israelenses após detenções na Faixa de Gaza é desconhecido, mas não é improvável que a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional, cedo ou tarde, se debrucem sobre os porões de Sde Teiman.
Para os palestinos, a prisão é mais um episódio a demonstrar a intenção israelense de destruir sua sociedade. À CNN, Mohammed al-Ran disse que, pouco antes de ser libertado, um interno de Sde Teiman pediu a ele que encontrasse a sua esposa e filhos em Gaza. “Ele me pediu para lhes dizer que é melhor que sejam mártires”, disse al-Ran. “É melhor para eles morrerem do que serem capturados e mantidos aqui.”