Resumo rápido: Retórica com perfil genocida contra palestinos é avanço alarmante
O discurso de lideranças israelenses e ocidentais antes da incursão por terra em Gaza indica que atos de limpeza étnica são um risco real
A invasão terrestre da Faixa de Gaza por parte de Israel parece estar mais próxima. Na noite de quinta-feira 12, o governo israelense enviou às lideranças das Nações Unidas em Gaza um aviso de que os civis da porção norte da faixa deveriam evacuar a região em 24 horas, um indicativo de que a incursão está se aproximando.
Segundo a ONU, o ultimato feito por Israel envolve o deslocamento de 1,1 milhão de pessoas. Uma vez que a Faixa de Gaza encontra-se, há 16 anos, isolada por Israel e Egito, a única alternativa para essas pessoas seria se deslocar para a porção sul da faixa. Ocorre que a área está sendo intensamente bombardeada e não tem água ou eletricidade, a que faz com que a ONU considere “impossível que tal movimento ocorra sem consequências humanitárias devastadoras”, que transformariam uma “tragédia em uma calamidade”.
Agrava a situação o fato de que o Hamas ordenou à população de Gaza que ignore a determinação israelense, outra evidência de que este grupo também despreza a segurança dos civis palestinos.
O requerimento de Israel pode ser equivalente a um crime de guerra, constatação que desperta ainda mais inquietação diante da retórica com contornos genocidas que vem sendo direcionada a palestinos, tanto por parte da liderança israelense quanto de importantes aliados, desde os ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro.
Como mostra a história humana, ações genocidas e de limpeza étnica são, sempre, precedidas por uma oratória que justifique tais ações.
“Animais humanos”
No caso israelense, essas falas são especialmente preocupantes por terem partido da liderança militar do país. Como em todas as guerras, os oficiais são os responsáveis por manter a ordem e a disciplina da forças armadas, o que inclui a manutenção de sua ação dentro da 'legalidade da guerra’. Neste caso específico, o desafio é ainda maior diante da selvageria perpetrada pelos homens do Hamas contra civis israelenses.
No dia 9 de outubro, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, justificou o cerco a Gaza e o corte de suprimentos básicos afirmando que “estamos lutando contra animais humanos e agindo em conformidade.”
No dia seguinte, um subordinado de Gallant, o major general Ghassan Alian, responsável pelo órgão do governo que fornece serviços civis nos territórios palestinos ocupados, utilizou o mesmo termo, mas em um comentário no qual criticava toda a população de Gaza – 2 milhões de pessoas, 50% das quais têm menos de 15 anos – e não apenas os integrantes do Hamas.
“Sequestrar, abusar e assassinar crianças, mulheres e idosos não é humano. Não há justificativa para isso. O Hamas transformou-se no ISIS e os residentes de Gaza, em vez de ficarem horrorizados, estão celebrando”, afirmou. “Animais humanos precisam ser tratados como tal. Não haverá eletricidade ou água [em Gaza], só haverá destruição. Vocês queriam o inferno, vão ter o inferno.”
O desprezo à condição dos civis palestinos em Gaza foi exposto, também, por Naftali Bennett, um político de extrema-direita que foi primeiro-ministro de Israel entre 2021 e 2022. Questionado em uma entrevista a respeito dos efeitos do corte de eletricidade em Gaza, como por exemplo o desligamento de incubadoras com bebês, Bennett reagiu com indignação. “Você está falando sério e vai continuar me perguntando sobre civis palestinos? Você não viu o que aconteceu? Estamos lutando contra nazistas.”
Durante a semana, Bennett se juntou aos reservistas convocados após os atentados, em um ato que gerou admiração em Israel e fora dele. O que chama atenção é isso ter ocorrido apesar de, dez anos atrás, Bennett, então ministro da Economia de Israel, ter admitido em uma reunião de gabinete ter cometidos atos ilegais durante o serviço militar. Após defender a morte de inimigos capturados e ser avisado por um colega que tal prática é criminosa, Bennett informou: “Eu já matei muitos árabes e não há problema nenhum nisso”.
O caso mais grave de culpabilização coletiva dos palestinos pelos crimes do Hamas foi exposto pelo presidente de Israel. Em uma entrevista coletiva na quinta-feira 12, Herzog reconheceu a existência de “muitos, muitos palestinos inocentes que não concordam com isso [a ideologia do Hamas”, mas ao mesmo tempo afirmou que a Faixa de Gaza consiste um “Estado” que funciona como uma “máquina do mal” na vizinhança de Israel, dizendo que “é uma nação inteira que é responsável”. Em seguida, emendou: “Não é verdade essa retórica sobre civis não cientes, não envolvidos, não é verdade. Eles poderiam ter se insurgido, poderiam ter lutado contra esse regime do mal.”
Punição coletiva e a lei internacional
Igualmente preocupante é o fato de que os países ocidentais, aliados e com maior poder de influência sobre a liderança israelense, não estão criando nenhum tipo de pressão pública para conter seus piores instintos neste momento de profundo abalo.
O presidente dos EUA, Joe Biden, se limitou a dizer que destacou ao premiê israelense, Benjamin Netanyahu, que democracias são mais fortes quando tomam ações embasadas na lei internacional, mas não foi além disso.
Do Congresso dos EUA, onde Israel tem apoio decisivo, o senador Lindsey Graham, republicano da Carolina do Sul, enviou um recado na direção contrária e incentivou uma destruição completa da Faixa da Gaza. “Estamos em uma guerra religiosa aqui. Faça o que diabos quiser, você tem que se defender. Nivele o local.”
No caso da Europa, o quadro é também problemático. Algumas lideranças europeias têm tomados decisões e feito declarações que igualam a causa palestina ao Hamas, um perigoso desdobramento que pode ser interpretado como anuência a atos de punição coletiva aos palestinos.
O húngaro Oliver Varhelyi, comissário da UE para alargamento da entidade, anunciou em 9 de outubro a suspensão de toda a ajuda financeira para o desenvolvimento dos territórios palestinos, uma medida que mais tarde acabou revertida. O governo da França, por sua vez, baniu protestos favoráveis à causa Palestina enquanto a secretária do Interior do Reino Unido sugeriu à polícia local que exibir uma bandeira palestina poderia configurar crime - o que foi rechaçado posteriormente pela polícia.
Mais grave é a inconsistência da Europa a respeito da necessidade de a resposta israelense permanecer dentro da lei internacional.
Enquanto o espanhol Joseph Borrell, representante da UE para Assuntos Externos, foi claro ao dizer que algumas das ações de Israel, como cortar comida, água e eletricidade de toda a Faixa de Gaza viola as leis internacionais, a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, ainda não condenou tais medidas.
O silêncio contrasta com o que ela fez, menos de um ano atrás, quando práticas semelhantes se concretizaram na ofensiva da Rússia contra a Ucrânia. Em outubro de 2022, Von der Leyen afirmou que “os ataques contra infraestrutura civil, especialmente eletricidade, são crimes de guerra” e que cortar água e eletricidade são “atos de puro terror”.
Também é eloquente o silêncio do governo da Alemanha a respeito do tema. Na quarta-feira 11, uma das porta-vozes do chanceler Olaf Scholz foi questionada repetidamente a respeito do bloqueio imposto por Israel e das declarações de Borrell sobre essa prática ser crime de guerra.
Sua resposta demonstrou que o chefe do governo alemão não tem como prioridade incentivar o governo de Israel a manter suas ações dentro da lei internacional.
“Para o chanceler federal, o foco é a solidariedade com Israel. Foi o que ele próprio disse. E é evidente que Israel tem o direito de se defender ao abrigo do direito internacional, contra esses ataques do Hamas. Não gostaria de avaliar medidas individuais neste contexto. [Após a repetição da pergunta]. Como eu disse, para nós, neste momento em que Israel está sendo brutalmente atacado pelo Hamas, a solidariedade com Israel está em primeiro plano. E sublinhamos que Israel tem esse direito para tomar medidas contra este ataque e para se defender.”