O que a crise na Rússia significa para o Oriente Médio
A tentativa de golpe coloca em suspenso a relação entre Moscou e os países da região
O resumo do texto, em três pontos:
O levante do Grupo Wagner é um indicativo da vulnerabilidade do regime Putin
Há dúvidas sobre a relação futura entre Prigozhin e Putin, o que pode impactar a política externa russa como um todo
No Oriente Médio, o cenário na Síria seria o mais afetado por uma eventual redução do papel de Moscou
A tentativa de golpe promovida por Yevgeny Prigozhin na Rússia não é um evento sem repercussões para o Oriente Médio. Apesar de revertido rapidamente, o episódio acrescenta um novo fator nos cálculos dos tomadores de decisão na região: a instabilidade do regime russo. Isso importa porque, na última década, Moscou se estabeleceu como ator político e militar essencial em muitos cenários regionais.
Apesar de a crise ter levantado até aqui mais perguntas do que respostas, a sequência de eventos foi clara, exposta nas ações tanto do Kremlin quanto de Prigozhin.
Entre 23 e 24 de junho, o líder mercenário ordenou uma marcha em direção a Moscou, com o objetivo declarado de derrubar o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e o chefe do Estado-maior, Valery Gerasimov, a quem vinha fazendo críticas há meses por conta da falta de munição na guerra da Ucrânia.
Sem resistência, e com algum apoio popular, o Grupo Wagner tomou o controle de Rostov-on-Don – cidade com mais de 1 milhão de habitantes que sedia o quartel-general da guerra – e chegou ao menos até a Voronezh, já na metade do caminho para Moscou.
Enquanto a capital era fechada e Vladimir Putin denunciava seu ex-aliado como traidor, o motim foi parado após um acordo costurado pelo ditador de Belarus, Aleksander Lukashenko. O acerto envolveria o estabelecimento da organização paramilitar no país e uma anistia a Prigozhin e a seus homens em troca do fim da marcha.
Essas significativas concessões feitas por Putin a um traidor que criou uma ameaça urgente e real colocaram dúvidas sobre a força do regime russo e também sobre sua manutenção nos próximos meses ou anos.
Tal diagnóstico foi exposto não apenas pelos principais adversários de Putin, como as lideranças em Washington e Kiev, mas também pela imprensa russa, que destacou a demonstração de vulnerabilidade.
No Oriente Médio, a direção da análise foi semelhante. O jornal saudita publicado na Europa Asharq Al-Awsat sublinhou a opinião de analistas norte-americanos de que o episódio expôs a fraqueza do regime Putin, opinião semelhante à deste comentarista na versão árabe da Al-Jazeera e deste outro no The National, dos Emirados Árabes Unidos. Este último artigo ecoa, além disso, um outro ponto, compartilhado nesta análise do libanês An-Nahar, de que o motim demonstrou também a incapacidade das forças regulares russas para conter uma ameaça direta à capital.
A imprensa conectada ao regime do Irã adotou tom divergente. O Kayhan, principal jornal linha-dura iraniano, usou a cartada antissemita ao destacar a ascendência judaica do pai de Prigozhin e atribuiu o levante a uma suposta influência da Otan, enquanto no Tehran Times este colunista argumentou que o caso teria revelado a solidez do apoio a Putin.
Os esforços do governo iraniano de demonstrar apoio ao “Estado de direito” na Rússia, e o destaque dado a isso pelo próprio Kremlin, revelam, porém, que a situação está longe de ser tranquila. Para o Irã, a crise é motivo de apreensão.
Prigozhin é a extensão da política externa de Putin
O grau de incerteza que a tentativa de golpe na Rússia cria para as lideranças políticas no Oriente Médio se manifesta porque a firmeza dos compromissos assumidos por Moscou está diretamente ligada à durabilidade e às capacidades do regime.
Nos últimos anos, a Rússia se firmou como um ator relevante no Oriente Médio pois Putin encontrou ali uma região na qual poderia contrapor os EUA e, deste modo, avançar seu programa externo de devolver à Rússia o status de potência mundial.
A missão foi facilitada pois seus custos eram relativamente moderados. Em primeiro lugar, porque desde a administração de Barack Obama os EUA estão em um processo de “retirada” da região, uma diminuição de engajamento que abriu espaço para Moscou (e Pequim).
Em segundo lugar, porque mesmo mobilizando poucas tropas, a Rússia conseguiu exercer uma vasta influência, por exemplo na Síria, onde foi determinante para impedir a queda do regime de Bashar al-Assad, e na Líbia, onde apoia os militantes ligados ao general renegado Khalifa Haftar.
Um detalhe de enorme importância é que, em ambos os casos, boa parte do investimento militar feito por Moscou se deu justamente por meio da organização de Prigozhin, que se utiliza da logística militar das forças regulares russas para avançar e acumula múltiplas denúncias de abusos e crimes de guerra por onde passa.
O Grupo Wagner é responsável por atividades de policiamento, segurança, recrutamento, treinamento, combate e exploração de petróleo entre a Síria e a Líbia, além de utilizar essa rota como forma de alcançar países africanos como Burkina Faso, Mali e República Centro-Africana – na África, a exemplo do que ocorre no Oriente Médio, Moscou busca ampliar sua influência utilizando-se de espaços desocupados por países ocidentais e o Grupo Wagner é a ponta-de-lança desta faceta de sua política externa.
Uma vez estabelecida a presença militar russa, tanto estatal quanto ‘particular’, Prigozhin passa a explorar os recursos minerais na região enquanto o governo em Moscou pode buscar seus próprios interesses políticos e econômicos e/ou mediar entre outras potências regionais, como faz na Síria, articulando as exigências da Turquia e do Irã.
Daqui pra frente, não se sabe qual será a relação entre Putin e Prigozhin nem o impacto que a tentativa de golpe terá nos fronts de guerra russos. Um conflito aberto entre as duas partes, por exemplo, colocaria em xeque toda a política externa e de defesa da Rússia, a começar pela Ucrânia, mas afetando também a Síria e a Líbia. Com as informações disponíveis hoje, muitos cenários discrepantes parecem plausíveis: tanto a manutenção da pareceria atual, com algum arranjo capaz de deixar este episódio para trás, como um conflito aberto que engolfe o regime russo numa “guerra civil” entre algumas de suas figuras mais poderosas.
A atual disposição do regime iraniano (e de jornais ligados a ele) de vender a imagem de uma Rússia estável mesmo após a tentativa de golpe tem relação direta com os interesses de Teerã. A intervenção de Putin na Síria, em 2015, salvou o regime Assad, cuja queda era considerada um risco existencial pela liderança iraniana.
Apesar da tensão existente entre os regimes russo e iraniano na Síria, uma eventual saída de cena da Rússia da região seria negativa para o Irã. Por um lado, a presença russa continua a ser determinante para sustentar Assad no poder em Damasco. Por outro, a influência de Moscou é entendida como um fator de dissuasão para qualquer movimento norte-americano no Oriente Médio.
Assim, ainda que a política externa iraniana seja pautada por uma busca incessante por autonomia, a relação estratégica com a Rússia tem sido um elemento importante para o qual o Irã não tem substituto.
Ao mesmo tempo, regimes antagonistas ao do Irã, como os de Arábia Saudita e EAU, também observam a situação na Rússia com atenção. Apesar de terem relações pouco profundas com Moscou para além da questão do petróleo, nos últimos anos Riad e Abu Dhabi utilizaram a influência russa no Oriente Médio para tentar limitar suas perdas em uma relação cada vez mais tensa com os EUA.
Proteger seus próprios governos de levantes armados domésticos é a principal atividade da maior parte dos regimes no Oriente Médio. Após a Primavera Árabe, ficou claro que rachaduras como a promovida por Prigozhin podem indicar a falência do sistema. Em toda a região, os próximos passos que envolverem a Rússia terão o último fim de semana de junho como um marco importante.
📺 Para ver
O minidocumentário Inside Prigozhin’s Wagner, Russia’s Secret War Company, produzido pelo Wall Street Journal e lançado no início de junho. A atuação da milícia na Síria, onde se tornou determinante na indústria petrolífera, é apresentada como exemplo do que grupo faz na África.
📕 Para ler
O livro Para Começar a Entender o Estado Islâmico, organizado por Augusto Veloso Leão e Danilo Guiral Bassi e lançado em maio de 2023 pela Editora da UFRJ. O primeiro capítulo do livro, escrito por mim, trata das origens do EI, mais precisamente do período entre 2003 e 2013.