O Filtro do Oriente Médio (26/1/24) - Massacre de Israel a Gaza supera Iraque, Síria e Ucrânia
Os relatos da situação calamitosa na Faixa de Gaza se acumulam, assim como os indícios de que as forças israelenses estão cometendo crimes de guerra
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Aqui estão as edições anteriores.
Esta edição contém diversos relatos de sofrimento humano, violência e perversidade. Lamento por isso, mas é a realidade.
Uma análise a respeito das decisões provisórias tomadas pela Corte Internacional de Justiça nesta sexta-feira 26 será publicada em Tarkiz nos próximos dias.
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A carnificina vista em perspectiva
Na segunda-feira 22, o jornal espanhol El País publicou um apanhado geral do número de mortes provocadas até 19 de janeiro pela ação de Israel na Faixa de Gaza e a comparou com outras guerras recentes. Colocada em perspectiva, a estatística é chocante.
Em seu mês mais violento, a guerra da Ucrânia teve 38 mortes por dia. Na Síria, a média diária de mortes foi de 45. Na Faixa de Gaza, a média no primeiro mês do conflito foi de 330. Ela cai para 239 se computados os primeiros 105 dias da guerra. Mesmo neste segundo caso, a média é maior que a registrada no mês mais violento da guerra no Iraque, em que o número de mortes diárias foi de 238.
Dos 25 mil palestinos mortos até aqui (além de 62 mil feridos e outros milhares desaparecidos, a maioria provavelmente embaixo dos escombros), 80% são mulheres e crianças (7 e 12 mil, respectivamente).
Gaza é o inferno
Relatos de funcionários de agências humanitárias e médicos que estiveram na Faixa de Gaza nos últimos dias e deixaram a região recentemente compõe um quadro estarrecedor dos efeitos da campanha militar israelense.
Ted Chaiban, número 2 da Unicef, disse na quinta-feira 18 que a situação foi de catastrófica para um quase colapso. Ele destacou que 1,9 milhão de pessoas, 85% da população da Faixa de Gaza, foram deslocadas. A água limpa é escassa e o saneamento, precário, deixando milhares de crianças desnutridas e doentes. “Se este declínio persistir, poderemos ver as mortes [provocadas pelo conflito] agravadas por mortes devido a doenças e fome.”
O diretor da Unicef repetiu o que a entidade já afirmou antes: esta é uma guerra contra as crianças, e relatou o caso de Sama, uma garota de 11 anos que teve de remover o baço após ser atingida em um bombardeio, e de Ibrahim, 13 anos, cujo braço foi amputado sem anestesia.
Dois médicos britânicos e uma americana ouvidos pelo canal britânico ITV corroboram os relatos de Chaiban. Em reportagem que foi ao ar em 23 de janeiro, eles descrevem cenas apocalípticas, com médicos atuando sem suprimentos básicos, escolhendo pacientes que têm mais chances de sobreviver e testemunhando a agonia de mortes lentas.
Os tratamentos são realizados, segundo eles, em meio a um enorme fluxo de chegada de pacientes, pois o bombardeio não para. Os três são médicos com experiência em áreas conflagradas e descreveram espanto tanto com o caos encontrado quanto com a gravidade dos ferimentos.
Khaled Dawas, cirurgião geral britânico, resumiu a situação dizendo que é “nada menos que um inferno”. “Aqueles que foram mortos tiveram mais misericórdia concedida a eles do que aqueles que sobreviveram”, afirmou.
Na quarta-feira 24, a Organização Mundial da Saúde relatou que apenas 14 dos 36 hospitais da Faixa de Gaza estão abertos, mas todos funcionam apenas parcialmente.
Para as mulheres e as meninas, o sofrimento vem em dobro
Tess Ingram, especialista em comunicação da Unicef, relatou ao site da entidade e a alguns veículos de comunicação o suplício das mulheres grávidas. À Sky News, disse ela, muitas estão sendo obrigadas a realizar cesarianas sem anestesia.
Webda, uma enfermeira com quem Ingram conversou, relatou ter feito, em oito semanas, seis cesarianas em mulheres mortas. “Também há mais abortos espontâneos por causa do ar insalubre e da fumaça causada pelos bombardeios. Isso aconteceu mais vezes do que posso contar”, disse ela.
Mashael, uma mulher com quem Ingram conversou, aguarda cuidados médicos pois seu bebê não se mexe desde que a casa onde ela estava foi destruída. Resignada, ela disse a Ingram que é melhor “um bebê não nascer neste pesadelo”. “Tornar-se mãe deve ser um momento de celebração. Em Gaza, é mais uma criança entregue ao inferno”, disse Ingram.
Na mesma reportagem em que ouviu a funcionária da Unicef, a Sky News relatou que a dificuldade de obter suprimentos básicos envolve absorventes higiênicos e pílulas anticoncepcionais que podem interromper ou atrasar a menstruação. Diante disso, muitas mulheres estão usando pedaços de toalhas ou de tenda como absorventes, o que pode ensejar infecções graves.
“Imagine ter que administrar sua menstruação sem produtos menstruais, papel higiênico ou sabonete, e sem chance de poder se lavar. Esta é a realidade para centenas de milhares de mulheres e meninas em Gaza neste momento”, afirmou Riham Jafari, da Action Aid.
Um outro depoimento de Ingram, em inglês, pode ser visto abaixo, em entrevista para a France 24:
Mais acusações de crimes de guerra: cemitérios profanados e execuções
Na sexta-feira 19, uma reportagem da CNN trouxe evidências de mais um conjunto de ações israelenses que consiste em crime de guerra.
Segundo a emissora norte-americana, ao menos 16 cemitérios foram profanados e deixados com lápides destruídas, solo revolvido e corpos desenterrados. Alguns deles foram transformados em postos militares avançados. A investigação da CNN foi realizada por meio de imagens de satélite e de visitas feitas por seus jornalistas à região acompanhados de militares israelenses.
A resposta oficial de Israel é de que a prática é derivada da utilização dos locais pelo Hamas e das tentativas de encontrar os corpos dos reféns. A CNN notou, porém, que dois cemitérios onde estão enterrados soldados mortos na Primeira e Segunda Guerra Mundiais, incluindo cristãos e alguns judeus, estavam intactos apesar de seus entornos terem sido destruídos.
A reportagem pode ser vista em inglês (abaixo) e lida em português aqui.
Também na sexta-feira 19, a Al-Jazeera levou ao ar uma reportagem com depoimentos e imagens que são fortes indícios de execuções ilegais cometidas por forças israelenses. Trata-se de um episódio ocorrido em 19 de dezembro, na cidade de Gaza.
Segundo os depoimentos de uma mãe e uma filha que estavam em um prédio residencial na cidade, o local foi cercado e bombardeado. Na sequência, soldados invadiram os apartamentos e separaram os homens das mulheres. Elas foram agredidas e ameaçadas, enquanto os homens eram executados.
As imagens exibidas na reportagem mostram corpos de homens deitados com os rostos no chão, com buracos de bala nas costas. Uma outra imagem mostra o corpo de uma menina de três anos. Segundo as testemunhas, mãe e irmã da garota, ela foi morta em uma nova rodada de bombardeios realizada após as execuções.
Na quarta-feira 24, o canal britânico ITV levou ao ar cenas chocantes que mostram a execução de Ramzi Abu Sahloul, um comerciante de 51 anos, em Khan Younis, cidade no Sul da Faixa de Gaza, atualmente sob cerco israelense.
A vítima estava em um grupo de homens que acenava com uma bandeira branca para a região controlada por Israel. O cinegrafista da ITV se aproximou e entrevistou Abu Sahloul. Ele estava no local para tentar resgatar a mãe e o irmão, que seguiam em um prédio nas cercanias.
Após o fim da entrevista, o cinegrafista se afastou do grupo, mas retomou a filmagem. Uma salva de tiros foi ouvida e Abu Sahloul caiu, com um tiro no peito. Ele foi levado pelos outros homens, mas morreu aparentemente de forma imediata. O governo israelense disse que a acusação era “extensão da propaganda do Hamas”.
Israel segue insulado enquanto soldados zombam dos palestinos
Enquanto se acumulam os relatos do sofrimento contínuo de palestinos, a sociedade israelense permanece isolada desses acontecimentos, em larga medida por conta da atuação da imprensa local, que majoritariamente aderiu à campanha de guerra do governo.
Ao mesmo tempo, o país segue envolto nas histórias terríveis do 7/10 e na situação dos reféns. Na terça-feira 23, uma ex-refém contou ter testemunhado estupros dos túneis onde o Hamas mantém os israelenses sequestrados.
Enquanto isso, vídeos de militares israelenses debochando da destruição que causam se tornaram comuns.
Nos vídeos, os soldados queimam comida, saqueiam casas, vandalizam lojas, dedicam explosões a parentes, entre outros atos condenáveis. Recentemente, um militar vestiu uma fantasia de dinossauro enquanto carregava munições em um tanque de guerra, que em seguida as disparava.
No compilado abaixo, levado ao ar pela Al-Jazeera em 18 de janeiro, soldados israelenses brincam com brinquedos de crianças em casas inabitáveis, jogam basquete em uma quadra bombardeada e até celebram uma “formatura” em frente a uma das várias universidades que foram destruídas.
Tropas dos EUA podem deixar o Iraque e a Síria
Nesta semana, o noticiário indicou que a conjuntura atual, demarcada pela guerra na Faixa de Gaza, pode provocar uma mudança de grandes proporções na presença dos Estados Unidos no Oriente Médio.
Na quinta-feira 25, foi divulgado que os governos dos EUA e do Iraque vão iniciar as conversas para modificar a parceria entre as duas partes, o que pode implicar na retirada dos cerca de 2,5 mil soldados americanos do país.
As negociações a respeito disso estavam paradas, mas serão retomadas agora, em meio às hostilidades entre tropas americanas e milícias iraquianas. A violência aumentou a pressão de setores iraquianos alinhados ao Irã para que os soldados dos EUA deixem o país. Comentei sobre esta situação nesta reportagem que o Nexo publicou na semana passada.
Na segunda-feira 22, o Al-Monitor informou que o Pentágono cogita uma parceria entre as Forças de Defesa da Síria, grupo majoritariamente curdo apoiado pelos EUA, e o regime de Bashar al-Assad. Assim como no caso do Iraque, as tropas americanas estão no país sob a justificativa de combater o Estado Islâmico.
A ideia, segundo o site, seria transferir o enfrentamento ao ISIS para esses atores locais. Na Foreign Policy, o analista Charles Lister confirmou que setores do governo norte-americano estão, de fato, inclinados a tomar este caminho, e listou uma série de problemas que esta decisão pode ter.
A saída dos EUA do Iraque e da Síria, além de implicar em um enfraquecimento das possibilidades de conter o Estado Islâmico, consistiria em uma enorme vitória para o regime iraniano.