Quais mudanças Masoud Pezeshkian pode trazer à política externa do Irã?
O presidente eleito deve buscar renovar a diplomacia com os Estados Unidos e o Ocidente, mas terá diante de si muitos obstáculos
Quando Ebrahim Raisi morreu, em maio de 2024, poucos observadores do Irã imaginavam que um reformista seria seu sucessor. Os reformistas, uma das facções que estrutura o sistema político iraniano, se tornaram párias nos últimos anos, desde que lideraram as acusações de fraudes eleitorais contra o regime, em 2009.
Na campanha de expurgo que se seguiu, jornais, entidades e movimentos ligados aos reformistas foram banidos ou fechados e muitos de seus integrantes, presos. Apenas as figuras menos proeminentes continuaram ativas. É surpreendente, portanto, que uma dessas personalidades, o deputado e ex-ministro da Saúde Masoud Pezeshkian, tenha sido eleito presidente nas eleições de 5 de julho.
A própria candidatura de Pezeshkian foi uma surpresa. No Irã, uma das principais funções do Conselho Guardião – um órgão de tutela do regime sobre o sistema político – é autorizar as candidaturas para cargos públicos. Neste pleito, apenas seis nomes foram chancelados e Pezeshkian era o único reformista.
As decisões do conselho não são justificadas de forma clara, mas aparentemente o nome de Pezeshkian foi autorizado com o objetivo de ampliar a legitimidade do processo eleitoral – por meio da inclusão de um integrante de uma facção quase proscrita e como uma tentativa de atrair mais eleitores para o pleito.
Ao longo das últimas décadas, o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, se referiu múltiplas vezes ao comparecimento eleitoral como uma fonte de legitimidade para o regime. Nas eleições deste ano, não foi diferente. Khamenei atrelou um alto comparecimento à força, à dignidade, à honra e, principalmente, à continuidade do sistema que governa.
Os apelos não foram ouvidos pela população, porém. No primeiro turno, em 28 de junho, o comparecimento foi de 39%, o pior da história da República Islâmica. No segundo turno houve uma alta expressiva para 49%, mas ainda assim esta é a terceira pior marca desde 1979.
Reportagens publicadas ao longo das últimas semanas indicaram que o eleitorado iraniano que se opõe ao regime se encontrava dividido entre votar ou boicotar o pleito.
Por um lado, muitos acreditavam que pouco ou nada irá mudar, independentemente de quem seja o presidente. Ao mesmo tempo, havia um temor de que a vitória do linha-dura Saeed Jalili, que foi ao segundo turno, poderia deteriorar a situação dos direitos individuais ainda mais e também a economia. Votar em Pezeshkian, assim, seria uma tentativa de evitar um desastre.
Qual é a capacidade da Presidência do Irã?
As dúvidas do eleitorado e dos analistas giram em torno da discussão a respeito do escopo de atuação da Presidência iraniana. Essa incerteza deriva do fato de que os cargos de presidente da República e de líder da revolução foram construídos com prerrogativas conflitantes na Constituição do Irã.
O mesmo vale para as instituições que reproduzem o modelo político Ocidental – como o Legislativo e o Judiciário – que convivem com instituições revolucionárias, como o Conselho Guardião e a Assembleia de Peritos.
Meu argumento, detalhado em tese de doutorado defendida em 2022, é que o que conta na disputa política iraniana é a conjuntura em que ela ocorre. O elemento mais importante é a força relativa das facções políticas dentro do regime, que vão reger o jogo de poder entre o presidente e o líder supremo.
Quais são as facções políticas do Irã?
A grosso modo, podemos dizer que o Irã tem quatro grandes facções políticas. O espectro político do país não é convencional, trazendo apenas partidos de esquerda, direita e centro. Ele envolve um outro eixo, teocrático-republicano, que exprime como as diferentes facções entendem a natureza da ordem política.
O esquema abaixo é a tradução da representação elaborada por Payam Mohseni para o livro Power and Change in Iran - Politics of Contention and Conciliation, editado em 2016 por Daniel Brumberg e Farideh Farhi. A divisão em dois eixos cria quatro quadrantes, mas é preciso ter em conta que se trata apenas de um elemento didático: na prática, as posições dos políticos não são necessariamente fixas: há fluidez conforme os interesses individuais e de determinados grupos mudam ao longo do tempo.
Os reformistas, grupo de Pezeshkian, estão na esquerda republicana. Na última década, muitos de seus representantes mudaram suas posições econômicas, se juntando à direita republicana, que esposa uma perspectiva liberal e neoliberal da economia. Neste quadrante estão os chamados “conservadores pragmáticos”, que tiveram como principal figura recente o ex-presidente Hassan Rouhani (2013-2021).
O líder supremo, Ali Khamenei, cujo poder deriva de uma visão específica do xiismo, se apoia nas duas facções de matriz teocrática. A esquerda teocrática – também conhecida como o grupo dos neoconservadores ou “linha-dura” – é o grupo do ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad (2005-2013) e de Saeed Jalili, derrotado por Pezeshkian. Os militares da poderosa Guarda Revolucionária aparecem com destaque neste meio.
A direita teocrática, também conhecida como “conservadores tradicionais”, é o grupo mais poderoso. A ele pertencia o ex-presidente Ebrahim Raisi (2021-2024). Seus principais representantes dominam o Judiciário e as instituições revolucionárias, como a Assembleia de Peritos e o Conselho Guardião, sendo um dos principais bastiões de sustentação do regime.
Nos últimos anos, este bloco teocrático vem afirmando seu poder com base em um controle rígido da política e da economia do Irã, bem como de severas ondas de repressão. É este processo que tem feito uma parcela significativa da população enxergar o regime como ilegítimo, o que se revela nos protestos sequenciais desde 2017 e nas baixas taxas de comparecimento eleitoral.
Como Pezeshkian pode influenciar a política externa
A importância da Presidência e a distribuição de poder entre as facções políticas são temas que se conectam na discussão sobre a política externa do Irã. Neste ponto, é importante dividir a análise em duas partes: uma referente ao entorno próximo do Irã e a outra na relação com o Ocidente, em especial os Estados Unidos.
No que tange a política regional do Irã – sua sustentação ao chamado “Eixo da Resistência” e a pressão contra Israel e interesses dos Estados Unidos e de seus aliados no Golfo – a capacidade de intervenção do presidente Masoud Pezeshkian é próxima de zero.
Esta seara é controlada de forma exclusiva por Ali Khamenei e por seus apoiadores, em especial na Guarda Revolucionária. Como a principal ameaça securitária ao regime é a presença de tropas dos EUA no Oriente Médio e o eventual interesse de Washington em agir para derrubar o regime, a tomada de decisões neste âmbito é feita em um grupo pequeno e baseada na ideia de que o regime está diante de um risco existencial que não pode ser minimizado.
As relações com o Ocidente, em particular a respeito do programa nuclear, são tratadas de outra forma. Aqui, múltiplos atores interferem na formulação da política externa. Uma presidência controlada por um reformista, assim, tem um peso importante nas discussões, pois as visões de mundo dos diferentes atores precisam ser levadas em conta.
Saeed Jalili defendia que qualquer aproximação com os Estados Unidos era uma perda de tempo, uma vez que Washington não era confiável. Já Pezeshkian argumentou ao longo do processo eleitoral que reduzir o peso das sanções ocidentais sobre a economia do Irã era uma de suas prioridades se eleito. A tendência, portanto, é que Pezeshkian busque este caminho e faça sua voz ser ouvida nos debates internos do regime.
Um ponto importante é que o presidente vai se deparar com um sistema no qual sua perspectiva é minoritária. O JCPOA, um “acordo nuclear” com os EUA, foi assinado em 2015, na gestões de Barack Obama nos EUA e Hassan Rouhani no Irã, mas foi abandonado por Donald Trump em 2018.
Após a eleição de Joe Biden, em 2020, Rouhani e a nova administração norte-americana começaram a negociar uma retomada do acordo, mas a iniciativa foi dinamitada, entre outros fatores, pela aprovação de uma lei pelo Parlamento do Irã que reduzia a margem de negociação da Presidência da República.
São obstáculos como este que Pezeshkian vai enfrentar internamente. A eles podem se juntar outros desafios internos – como eventuais novas ondas de protestos socioeconômicos – e externos, como o eventual retorno de Trump à Casa Branca, e o acirramento das tensões no Oriente Médio.
Além de competência, o presidente eleito do Irã precisará de uma boa dose de sorte para cumprir suas promessas de melhorar a vida dos cidadãos e devolver ao Irã seu lugar na diplomacia global.