Os significados do ataque de Israel aos pagers e walkie-talkies do Hezbollah
A ofensiva contra o grupo libanês deixa o Oriente Médio mais perto do precipício – e mostra, mais uma vez, como a violência perpetrada por Israel é legitimada
Em 17 e 18 de setembro, integrantes do Hezbollah foram atacados no Líbano e na Síria pelo Mossad, agência de inteligência de Israel, por meio da explosão de pagers e walkie-talkies que carregavam. A onda de detonações deixou pelo menos 37 mortos, incluindo quatro crianças, e milhares de feridos, a maior parte integrantes do grupo libanês, mas também muitos civis.
Observado no contexto da guerra na Faixa de Gaza, este episódio reafirma a postura temerária do governo de Israel diante do risco de um conflito regional de grandes proporções e também sua disposição de cometer atrocidades sob a guarida dos Estados Unidos.
Ao longo de sua história, Israel desenvolveu uma doutrina de defesa conhecida pelas respostas duras contra as ameaças em seu entorno. Como escreveu Zeev Maoz, a reação militar inicial a qualquer tipo de desafio de segurança “é ofensiva, e a ênfase está no uso desproporcional (e até mesmo indiscriminado) da força”. Por trás desta prática, estão as ideias de que Israel sempre terá de “viver pela espada” e subjugar seus inimigos para que aceitem sua presença.
Tradicionalmente, a diplomacia israelense é empregada apenas para justificar o uso da força, e não como substituta à guerra. Uma de suas estratégias retóricas nos debates políticos sobre o papel de Israel no Oriente Médio é reivindicar para o país um patamar mais alto de moralidade em relação a seus vizinhos árabes.
A violência empregada por Israel é comumente apresentada como justa e inevitável, enquanto a de seus inimigos é tratada como vil e selvagem. A base desta prática é uma concepção racista do Oriente Médio, encapsulada na expressão de que Israel é “uma vila no meio da selva”, como gostava de dizer o ex-premiê Ehud Barak.
As reações de governos como os de Estados Unidos e Alemanha às práticas israelenses na Faixa de Gaza demonstram que essa estratégia continua a dar a Israel uma ampla capacidade de ação.
O ataque ao Hezbollah
A ação envolvendo as comunicações do Hezbollah alcançou seus objetivos porque a inteligência israelense se infiltrou na cadeia de suprimentos do grupo libanês. Ciente de que o Hezbollah buscava equipamentos de baixa tecnologia para evitar espionagem, os agentes israelenses criaram empresas de fachada para produzi-los e exportar para o Líbano.
Segundo apuração do jornal The New York Times, a B.A.C. Consulting, sediada em Budapeste, por exemplo, produzia pagers sob uma licença da taiwanesa Gold Apollo. A companhia tinha diversos clientes, mas o único realmente importante era o Hezbollah. Para o Líbano, a B.A.C. exportou pagers adulterados com a inclusão de alguns gramas de tetranitrato de pentaeritrina, um explosivo poderoso conhecido pela sigla PETN.
Pelo que consta, o plano foi elaborado para ser um golpe inicial em uma guerra total contra o Hezbollah, mas a desconfiança de integrantes do grupo libanês diante de problemas técnicos fez o governo israelense deflagrá-lo mais cedo, para não perder a oportunidade de atingir seu inimigo.
A opção de Israel foi por um ataque indiscriminado. Os equipamentos foram detonados não em alvos militares, mas em quaisquer lugares onde seus portadores estavam: residências, supermercados, funerais, dirigindo.
As explosões provocaram caos em várias localidades libanesas, sobrecarregando serviços de saúde, nos quais ambulâncias aguardavam em longas filas enquanto médicos e enfermeiros lidavam com ferimentos graves, como amputações e estilhaços alojados nos olhos e na cabeça dos pacientes.
O Hezbollah tem muitos inimigos dentro do Líbano, mas o ataque atingiu toda a sociedade libanesa. Além do temor de uma guerra mais ampla, os libaneses agora convivem com o temor de que outros equipamentos básicos de comunicação, como celulares, também tenham sido adulterados ou de que pagers e walkie-talkies inicialmente comprados pelo Hezbollah estejam circulando fora do grupo.
A investida foi mais uma a revelar a pouca importância que as lideranças israelenses dão aos efeitos colaterais de suas ações. Transformar objetos civis em bombas e detoná-los aleatoriamente sem saber onde ou com quem seus portadores estavam é uma tática que certamente seria endossada pela Al-Qaeda ou pelo Estado Islâmico.
Para não falar do próprio Hezbollah, que no ano passado teria tentado matar o ex-ministro da Defesa de Israel Moshe Yaalon com a instalação de uma mina terrestre em um parque de Tel Aviv e que, ao longo de sua história, realizou atentados contra civis.
Para quem acompanha as práticas israelenses na Faixa de Gaza desde o 7 de Outubro, a natureza da ação envolvendo as comunicações do Hezbollah não é uma surpresa. Desde o início de sua retaliação, Israel mirou não apenas o Hamas, mas a sociedade palestina como um todo. Trata-se de um projeto pensado na alta cúpula do poder político e militar de Israel e transferido para os campos de batalha através das cadeias de comando.
Nos bombardeios contra a Faixa de Gaza, famílias palestinas inteiras foram dizimadas porque o governo israelense decidiu atacar as residências dos integrantes do Hamas e estendeu amplamente o número “aceitável” de vítimas por efeito colateral para cada ataque.
Anonimamente, um oficial israelense envolvido nos bombardeios manifestou choque com a estratégia que estava ajudando a levar a cabo. “Lembro-me de pensar que era como se [os militantes palestinos] bombardeassem todas as residências privadas das nossas famílias quando [os soldados israelenses] voltassem a dormir em casa no fim de semana”, disse a fonte à revista +972 Magazine em novembro.
Pode-se imaginar a onda de indignação internacional que ocorreria se o Hezbollah tivesse sucesso ao atacar as casas e as famílias de integrantes do governo ou das forças armadas israelenses. A ação de Israel, porém, apesar de ter matado civis e crianças, quase não enfrenta constrangimento. De antemão, ela é interpretada como legítima.
Em Israel, o ataque contra o Hezbollah é saudado por apologistas do governo como uma “operação impecável”, mas mesmo setores críticos de Benjamin Netanyahu têm dificuldade em esconder a admiração por uma ação considerada “monumental”, “genial” e um “sucesso”.
A ideia de que os mortos e feridos do outro lado são selvagens não-humanos não é uma exclusividade de Ehud Barak – e nem dos inimigos de Israel.
O quadro regional
Quando este episódio é colocado contra o pano de fundo da política regional, a pergunta que emerge é: porque Israel realizou este ataque agora? A questão da oportunidade mencionada acima pode mesmo ser um fator, mas a autorização para o ataque tem relação com a estratégia do governo Netanyahu.
Como se sabe desde o início, o interesse do primeiro-ministro é fazer a guerra avançar. Ainda que essa posição não seja unanimidade em seu entorno, muitas lideranças parecem dispostas a aceitar o risco de um conflito ainda maior.
Desde o 7 de Outubro, há uma expectativa de que o Oriente Médio será engolfado por uma guerra regional envolvendo diversos atores. Pode-se argumentar, com razão, que um conflito deste tipo já está em curso, mas sua ampliação teria um efeito desastroso.
Todos os envolvidos sabem disso. O regime no Irã e seu aliados do “Eixo da Resistência”, no qual o Hezbollah tem papel proeminente, não desejam um conflito mais amplo. Suas lideranças têm claro que o aprofundamento da guerra provocaria uma destruição enorme, retirando-lhes apoio doméstico. Poderia provocar, também, uma ação dos Estados Unidos em defesa de Israel, o que as ameaçaria diretamente.
O ataque coreografado contra Israel, realizado pelo Irã em abril, é evidência cabal disso. Assim como o fato de que o regime iraniano ainda não respondeu ao assassinato de Ismail Haniyeh, líder do Hamas, ocorrido em julho, em Teerã.
O governo em Washington também não tem apetite para um guerra regional de amplas proporções. A diplomacia norte-americana se concentra em tentar encerrar os conflitos tanto em Gaza quanto na fronteira entre o norte de Israel e o sul do Líbano (onde se concentra o Hezbollah). Além disso, desde o início do ano se engajou em pelo menos duas rodadas de negociações indiretas com o Irã em nome de uma redução das tensões.
Menos interesse ainda por uma guerra têm os governos árabes. Na ofensiva iraniana de abril, países como Jordânia e Arábia Saudita auxiliaram na derrubada dos mísseis e drones iranianos não porque proteger Israel faz parte de sua estratégia, mas porque grandes danos a alvos israelenses deixariam mais próxima uma guerra de amplas proporções.
O governo de Israel, por sua vez, parece não ver tantos problemas no agravamento do cenário. Ciente da proteção política e militar que recebe dos EUA, as lideranças israelenses estão estendendo ao máximo o escopo do que podem fazer no âmbito regional. O incontáveis abusos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia são demonstrações óbvias disso, mas também o comportamento temerário diante do quadro regional.
Horas antes da explosão dos aparelhos de comunicação do grupo libanês, o governo de Israel anunciou a ampliação de seus objetivos na guerra para incluir o retorno de seus cidadãos a suas casas na região norte (há cerca de 100 mil deslocados em cada lado da fronteira), o que só poderia ser feito “via ação militar”, segundo o ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Dois dias depois do ataque aos pagers e walkie-talkies, Israel lançou mísseis contra um prédio em Beirute para matar um comandante do Hezbollah. Entre os mortos estavam três crianças e sete mulheres. O Hezbollah retaliou com mais barragens de foguetes, enquanto as lideranças de lado a lado renovaram a hostilidade retórica.
A resposta à pergunta inicial é, portanto, simples: Israel realizou este ataque agora porque pode. Pode realizá-lo sem sofrer qualquer tipo de represália política e porque estaria (ou estará?) protegido pelos Estados Unidos caso a guerra se amplie.
A cada dia que passa, fica mais intensa a impressão de que o projeto do governo israelense é atrair o Hezbollah para um confronto mais amplo. Sob os auspícios do Ocidente, em especial dos EUA, Netanyahu coloca o Oriente Médio mais perto do abismo.