O Filtro do Oriente Médio (19/1/24) - Só o que falta é um conflito direto entre Irã, Israel e os EUA
A guerra regional está posta no Oriente Médio, mas suas principais frentes ainda não foram iniciadas. Postura do governo israelense é obstáculo para mudança de rumo
Este é o O Filtro do Oriente Médio, boletim semanal de Tarkiz com materiais que ajudam a refletir sobre a política da região. Você pode conferir as edições anteriores neste link. Boa leitura e, se possível, compartilhe com quem pode se interessar.
O básico do quadro geopolítico
A regionalização da guerra no Oriente Médio chegou a um novo patamar nesta semana. Muitas das frentes possíveis já foram abertas, mas as principais – Irã-Israel e EUA-Irã – continuam desativadas. Confrontos diretos entre as tropas desses países muito provavelmente colocariam a região além de um ponto de retorno, incendiando o cenário e abrindo as portas para consequências catastróficas e imprevisíveis.
O quadro geral que trouxe o Oriente Médio à atual conjuntura já foi pormenorizado em Tarkiz, mas cabe retomar o raciocínio. Há pouco mais de 20 anos, os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque, os dois principais vizinhos do Irã, e criaram uma situação de severa ameaça ao regime em Teerã, que reagiu. Temendo por sua segurança, este regime traçou como objetivo a remoção da presença norte-americana no Oriente Médio.
A estratégia é desenvolver capacidade de retaliação contra os aliados e os interesses dos EUA na região (tropas, bases, embarcações etc) e a tática é bifurcada: envolve um sistema de ataque com mísseis e drones e a criação de uma rede de alianças em diversos países, o autoproclamado “Eixo da Resistência”.
As ações iranianas ao longo das duas últimas décadas geraram situações ameaçadoras nos aliados de Washington – Israel e países árabes como Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Jordânia. Este bloco tem, portanto, dois pontos em comum: temem o Irã e precisam da proteção norte-americana, necessária porque Washington acuou o Irã.
Há, porém, uma importante clivagem neste bloco, a questão palestina. A divisão não é exatamente entre os governos. As lideranças árabes, em geral, pouco se importam com a população palestina, mas precisam demonstrar preocupação porque suas populações são firmemente pró-Palestina e anti-Israel. Trata-se de um obstáculo intransponível, portanto, ainda mais em um momento de violência nos territórios ocupados.
Irã mostra força com ataques
Nesta semana, a novidade foi a demonstração de força por parte do Irã, que atacou alvos no Iraque, na Síria e no Paquistão. No último caso, não ficou clara a motivação iraniana, que alegou ter atingido o grupo Jaish al-Adl, baseado na província paquitanesa do Baluquistão.
Na quinta-feira 18, o governo paquistanês reagiu atacando supostos separatistas no Irã. Houve mobilização de tropas de lado a lado, mas a tendência é que a situação arrefeça, uma vez que o Paquistão está fora das dinâmicas securitárias do Oriente Médio. Os ataques no Iraque e na Síria, porém, estão interligados com o cenário do Oriente Médio.
No Iraque, o Irã atingiu alvo nas cercanias de Erbil, cidade na região curda do país. O alvo, supostamente, seriam interesses do Mossad, o serviço secreto israelense. Foi um ataque, segundo o regime iraniano, em retaliação aos assassinatos de comandantes iranianos por Israel nas últimas semanas.
Na Síria, os alvos teriam sido militantes do Estado Islâmico na cidade de Harem, em resposta ao ataque terrorista realizado na cidade iraniana de Kerman, no início do ano.
Neste caso, o mais importante foi a arma utilizada na ação, um míssil Kheibar Shekan, com alcance para atingir alvos em Israel. Foi o ataque mais longo já realizado pelo Irã, o que indica novas capacidades adquiridas pelo regime. Segundo o New York Times, a utilização e a precisão do míssil acenderam um sinal da alerta nos EUA.
É possível que todas essas ações sejam resultado da pressão exercida por setores linha-dura do regime diante das variadas perdas sofridas pelo Irã desde o 7/10, mas elas também servem para demonstrar que não apenas os proxies do Irã estão atuando. Podem ser, também, um recado para fortalecer seus aliados.
Como bem notou o analista Charles Lister em texto para o Crisis Response Center, esta é a primeira vez que o “Eixo da Resistência” está ativado e atuando em conjunto. O Hamas e o Hezbollah atacam Israel, milícias iraquianas e sírias atingiram alvos norte-americanos e os Houthis estão ativos no Mar Vermelho.
Em contrapartida, desde o 7/10, forças israelenses atacaram, além da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, o território do Líbano e da Síria. Os EUA, por sua vez, atingiram os territórios do Iraque, da Síria e, com auxílio do Reino Unido, do Iêmen.
Estamos, assim, diante de uma regionalização ampla. A escala dos ataques é, porém, muito menor do que pode vir a ser. Se novas frentes forem abertas ou o quadro em outras (como por exemplo entre Israel e o Hezbollah) se agravarem, toda a região pode ser engolfada pelo caos.
Governo de Israel rechaça paz e Estado palestino
Na quinta-feira 18, Tel Aviv registrou o maior ato a favor da paz desde o início da guerra, mas os setores que defendem esta posição ainda são significativamente minoritários em Israel. As principais autoridades do país continuam a se mostrar incapazes de ouvir até mesmo seus aliados.
Tudo indica que o governo isralense tem, ou terá em breve, diante de si uma proposta tentadora, compartilhada pela Casa Branca de Joe Biden, pela oposição nos Estados Unidos e pela Arábia Saudita. A ideia é avançar em direção a um acordo de normalização entre a Arábia Saudita e Israel, o que poderia ampliar o quadro securitário para os israelenses a longo prazo.
Em troca, os sauditas querem um tratado formal de defesa com os EUA, o que o establishment em Washington estaria disposto a aprovar, e a criação de um caminho realista para um Estado palestino. O objetivo deste segundo ponto é eliminar a clivagem entre Israel e os árabes (leia acima), que é explorada pelo Irã e pelo “Eixo da Resistência”. O problema é que a liderança israelense não se mostra disposta a caminhar nesta direção.
Na quarta-feira 17, em Davos, o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, disse que Israel não pode obter “segurança genuína” sem um caminho para um Estado palestino. Na quinta-feira 18, uma reportagem da NBC News detalhou o esforço diplomático feito na direção deste acordo. No mesmo dia, o Financial Times publicou declarações de um diplomata árabe envolvido no diálogo. Segundo ele, “dado o corpo político israelense hoje, a normalização é talvez o que pode tirar os israelenses do abismo.”
No mesmo dia, veio a reação. Isaac Herzog, o presidente de Israel, disse em Davos que ‘nenhum israelense em sã consciência’ está pensando no processo de paz neste momento. Benjamin Netanyahu, o premiê, denunciou as conversas sobre o futuro da Faixa de Gaza, afirmando que esses diálogos preveem a criação de um Estado palestino, o que ele jamais permitirá.
Mais que isso, Netanyahu afirmou que, em qualquer situação, Israel não cederá a soberania do território que controla aos palestinos. “Esclareço que em qualquer arranjo no futuro previsível, com ou sem acordo, o Estado de Israel deve ter controle da segurança de todo o território a oeste do rio Jordão”, afirmou ele segundo a Reuters.
Na sexta-feira 19, o porta-voz do Departamento de Estado do EUA reagiu afirmando que a criação de um Estado palestino é “a única maneira” de garantir a segurança de palestinos e israelenses.
No mesmo dia, o chefe de política externa da União Europeia, o espanhol Josep Borrell, também manifestou a insatisfação com a postura de Netanyahu. E deu uma sugestão inédita. “Os atores [envolvidos] opõem-se demasiado para conseguirem chegar a um acordo de forma autônoma”, disse Borrell. “Se todos forem a favor desta solução, a comunidade internacional terá de a impor.” O espanhol não desenvolveu, porém, como isso poderia ocorrer.