Futebol, nacionalismo e política externa na Arábia Saudita
O regime liderado por Mohammad bin Salman quer muito mais do que apenas limpar sua imagem
O início da janela de transferências europeia está demonstrando que a intenção do regime da Arábia Saudita em transformar sua liga de futebol em uma das principais do mundo é real. Muitos jogadores e treinadores estão nas listas de contratação dos clubes locais e alguns deles devem se juntar a Cristiano Ronaldo (Al-Nassr) e Karim Benzema (Al-Ittihad) na próxima temporada. É um projeto com implicações políticas e esportivas importantes, tanto domésticas quanto internacionais.
O ator central nesta empreitada é o PIF, o fundo soberano saudita. Com bens estimados em US$ 700 bilhões, é a ferramenta por meio da qual Mohammad bin Salman, o príncipe-herdeiro e principal figura política do reino, busca refazer a economia local. O fundo tem uma estrutura de governança, mas, na prática, é responsivo apenas a MBS (como é conhecido o príncipe). Em 2022, por exemplo, o conselho presidido por ele desprezou recomendações de especialistas e aportou US$ 2 bilhões numa firma recém-aberta por Jared Kushner, genro de Donald Trump e facilitador da relação MBS-Trump.
Nos últimos anos, o príncipe-herdeiro vem preparando o terreno para a eventual morte de seu pai, o rei Salman. Quando isso ocorrer, a Casa de Saud passará por sua primeira mudança geracional em décadas, cenário potencialmente desestabilizador. Para garantir sua continuidade como futuro rei, Mohammad bin Salman vem promovendo uma série de transformações.
Com o objetivo de consolidar seu poder, MBS desmontou o arranjo interno do regime saudita que dividia blocos do estado entre ramos diferentes da família. Aglutinou em torno de si as três forças de segurança efetivas da Arábia Saudita e preencheu muitos cargos na alta cúpula com homens de confiança de sua geração.
Este processo vem acompanhado de uma tentativa de reduzir a dependência da economia saudita do petróleo. A diversificação envolve investimentos em múltiplos setores, como construção civil, aviação, farmacêutico e esportes. No último caso, golfe, automobilismo e turfe receberam grandes aportes recentemente, o futebol se juntou a eles e o tênis pode ser o próximo.
Ao mesmo tempo, a consolidação de poder envolve uma atualização do contrato social saudita, concedendo determinadas liberdades sociais em troca de um ajuste no papel dos cidadãos, convocados a começar a carregar o fardo da sustentação econômica do reino. Aqui, a atração de grandes esportistas (e, em paralelo, de artistas internacionais) tem um papel importante para contemplar uma sociedade majoritariamente jovem e insatisfeita com as restrições sociais existentes.
Este novo acordo não envolve, porém, a concessão de liberdades políticas: a ascensão de MBS é marcada por uma campanha de supressão de setores da sociedade que faziam ou poderiam fazer oposição às mudanças promovidas no reino – clérigos, intelectuais e ativistas de diversas causas estão no alvo. A despeito da abertura para uma série de atividades antes proibidas no reino, a Arábia Saudita ainda adota um modelo autoritário, com um perfil de direitos humanos problemático, em que as mulheres são cidadãs de segunda classe e a comunidade LGBT é criminalizada.
O PIF e o futebol saudita
Tradicionalmente, os clubes de futebol no Oriente Médio têm ligações com os governos, uma tentativa de manter sob algum controle essa importante força social. Este é o caso da Arábia Saudita, cujos maiores times seguirão atrelados ao governo, mas de uma forma diferente.
No início de junho, o Ministério do Esporte saudita anunciou que quatro dos principais clubes do país serão transformados em empresas controladas pelo PIF (75%) em parceria com entidades sem fins lucrativos a serem criadas (25%).
Foram escolhidos dois clubes da capital Riad – o Al-Hilal, maior do país e que recentemente derrotou o Flamengo no mundial de clubes, e o Al-Nassr de Cristiano Ronaldo – e dois de Jedá – o Al-Ittihad, que enfrentou o São Paulo no mundial de 2005, e o Al-Ahli, que acabou de vencer a segunda divisão saudita após um rebaixamento surpreendente na temporada anterior.
É o dinheiro do PIF que explica o apetite desses clubes na atual janela de transferência por atletas que atuam na Europa. Um dos objetivos do regime é que esses quatro times sirvam como vanguarda num processo de profissionalização da liga, eventualmente atraindo investimentos privados e tornando o campeonato de futebol um outro polo de geração de dinheiro e empregos que não dependa da indústria petrolífera.
As implicações esportivas podem ser grandes. No momento, o Al-Hilal está no topo do futebol asiático. O time tem a base da seleção saudita que venceu a Argentina na Copa do Mundo e, além disso, chegou em quatro das últimas seis finais da Liga dos Campeões da AFC (a federação continental), ganhando duas delas. O Al-Nassr, por sua vez, esteve nas semifinais de 2020 e 2021.
Se o investimento robusto que se anuncia se sustentar e a liga saudita de fato atrair profissionais de alto gabarito dentro e fora de campo, a tendência é que os clubes do país reforcem esse domínio e, inclusive, se firmem em um patamar superior ao do futebol sul-americano.
Um desafio será manter a lisura da liga. Além de ser dono de quatro clubes, o PIF é dono da empreiteira Roshn, que dá nome ao Campeonato Saudita. E a Roshn, por sua vez, patrocina o Al-Ittihad. Garantir que a disputa seja feita dentro do campo será determinante para a internacionalização do torneio.
O futebol, o “novo nacionalismo” e os outros quatro escolhidos
Como ocorre em muitos cantos do mundo, o futebol é um mobilizador social de alto impacto na Arábia Saudita. O regime saudita está ciente e deixou isso claro durante a Copa do Mundo de 2022, quando decretou feriado nacional após a vitória sobre a Argentina, paralisando o país para que a euforia atingisse o maior número de pessoas possível.
Os novos investimentos também denotam a intenção de usar o futebol como promotor do projeto político de MBS. Internamente, esta empreitada vem acompanhada de uma tentativa de reconstruir a identidade nacional saudita, abrandando o caráter religioso e promovendo um nacionalismo secular inédito na história do país.
Aqui, duas estratégias se destacam. Em primeiro lugar, há uma tentativa de reafirmar a legitimidade da família Saud, destacando, por exemplo, sua presença na Península Arábica 200 anos antes do surgimento do Islã. Em segundo lugar, o regime vem enfatizando as raízes pré-islâmicas da península, por meio de um resgate histórico de civilizações antigas e também pré-islâmicas.
Dois projetos de grande monta sublinham este programa. Um é o Portão de Diriyah, que pretende erguer um complexo comercial-cultural nesta cidade, vizinha de Riad. Diriyah foi a primeira capital saudita, onde os antepassados de MBS começaram a dar os contornos à Arábia Saudita atual, mas passou décadas abandonada. Outro é a construção, na região de Al-Ula (no oeste do país), de uma reserva natural e de um luxuoso complexo turístico. A grande atração aqui será o sítio arqueológico de Hegra, onde estão construções do Reino Nabateu, cuja capital era Petra, principal ponto turístico da vizinha Jordânia.
Os novos investimentos no futebol estão intrinsecamente ligados a esta campanha do regime. Além de Al-Hilal, Al-Ahli, Al-Ittihad e Al-Nassr, outros quatro clubes foram selecionados para ficar sob o guarda-chuva do governo central, mas não diretamente por meio do PIF.
O Al-Ula FC será controlado pela Comissão Real para Al-Ula, encarregada de erguer o complexo turístico na cidade. Já o Al-Diriyah Club ficará com a Autoridade de Desenvolvimento do Portão de Diriyah. Ambas as entidades são presididas pelo próprio MBS.
O mesmo modelo abarcou o Al-Suqoor FC, que será controlado pela NEOM, responsável por construir a partir do zero uma cidade futurista na região de Tabuk, noroeste da Arábia Saudita. Por fim, o tradicional Al-Qadsiah FC foi assumido pela Aramco, a gigante petrolífera saudita. O clube se encaixa no projeto por ser sediado em Khobar, uma das principais cidades da Província Oriental do reino. Tradicionalmente negligenciada por concentrar a minoria xiita, a região terá seu principal clube contemplado pelo novo programa.
Em comum, esses quatro clubes têm o fato de não estarem na primeira divisão do futebol saudita. O Al-Qadsiah está na segunda, o Al-Diriyah e o Al-Suqoor na terceira e o Al-Ula, na quarta divisão. Trata-se de um forte indicativo de que o investimento no futebol local é de longo prazo e busca reconfigurar o campeonato nacional por meio da colocação de times estratégicos na primeira prateleira.
Sportswashing?
No Ocidente, reportagens e comentários a respeito dos investimentos esportivos sauditas geralmente são acompanhados de uma discussão sobre sportswashing. A ideia é que o regime em Riad estaria injetando capital no esporte para limpar sua imagem internacional. Sem dúvida, MBS prefere que lembremos de Cristiano Ronaldo e não de Jamal Khashoggi, o jornalista esquartejado por seu serviço secreto, quando pensemos em Arábia Saudita, mas este argumento parece limitado para explicar as decisões tomadas em Riad.
Em primeiro lugar, temos os motivos expostos nos parágrafos acima. Com a atenção dada ao esportes, particularmente o futebol, o governo espera desdobramentos políticos e econômicos significativos no âmbito doméstico. A prioridade do regime saudita sempre foi e continua a ser sua própria segurança, que tem como principal ameaça sua própria população. Manter a economia funcionando e a legitimidade da monarquia são, portanto, prioridades reais, e não meras “desculpas” para contemplar a opinião pública ocidental.
Em segundo lugar, é preciso refletir a respeito de quão necessária seria uma estratégia de sportswashing por parte do regime saudita. Há oito anos e três meses, a Arábia Saudita mantém uma intervenção militar no Iêmen que agravou o conflito civil do país vizinho e o engolfou em uma crise humanitária que já deixou centenas de milhares de mortos.
Apesar de alguns pequenos protestos, a guerra afetou muito pouco o relacionamento de Riad com potências como Estados Unidos e Reino Unido, que inclusive são coparticipes como vendedores de armas e munição. Por quê, então, o regime saudita estaria usando o esporte para melhorar relações que nem mesmo foram abaladas diante descalabro no Iêmen?
Isso não quer dizer que a empreitada esportiva saudita não tenha uma função nas relações internacionais do reino. Tem e seu objetivo também é reforçar a segurança do regime, mas por meio da política externa.
A exemplo do Catar e dos Emirados Árabes Unidos, o que o regime saudita deseja é aumentar sua importância, se cacifando como um ator não apenas relevante como necessário para as grandes potências e para a geopolítica mundial. Atrair investidores, atrações internacionais e se imbricar às economias das grandes potências é parte desta estratégia, em que o futebol é só mais um elemento.
Os EAU são um hub da aviação mundial, o maior polo de investimentos externos do Oriente Médio e a monarquia controla o campeão europeu Manchester City. O Catar tem bases norte-americanas, também é um hub de aviação, tem grandes fatias de companhias europeias e seu fundo soberano é dono do Paris Saint-Germain.
Todos esses componentes não devem ser observados de modo isolado. São parte de uma estratégia das monarquias do Golfo que a Arábia Saudita também adotou, tardiamente, mas com um ímpeto considerável. Em 2022, o PIF comprou o Newcastle United, da Inglaterra, e em 2023 se tornou o maior acionista estrangeiro da japonesa Nintendo.
Também a exemplo do Catar, a Arábia Saudita quer coroar sua política externa festejando o esporte mais popular do mundo. No fim de 2023, vai sediar o mundial de clubes, mas seu objetivo parece ser a Copa do Mundo de 2030 ou de 2034. Segundo esta reportagem, MBS teria se oferecido para bancar as construções de estádios em cidades-sede da Grécia e do Egito, que seriam sócios minoritários em uma candidatura conjunta de uma Copa do Mundo jogada em três continentes pela primeira vez na história.
O esporte para o governo saudita é parte de uma estratégia complexa e multifacetada, que tem sim o intuito de fazer relações públicas, mas cujo objetivo primordial é tornar o regime indispensável, tanto para sua população quanto para as grandes potências, e, portanto, mais seguro.
📕 Para ler
O artigo “Saudi Arabian strategy reassessment since 2003: The emergence of a regional leadership via Neoclassical Realist lenses”, publicado pela pesquisadora brasileira Luiza Cerioli na International Area Studies Review. No artigo, ela conclui que, em larga medida, a política externa da Arábia Saudita após a ascensão de Muhammad bin Salman tem muitas semelhanças com a da fase anterior do reino. Concordo muito com essa reflexão, que vai ao encontro do que escrevi em minha tese de doutorado.
A reportagem Dreaming of a New Iran, assinada por Farnaz Fassihi na The New York Times Magazine, que traz recortes dos diários de três mulheres iranianas de diferentes perfis. Seus depoimentos mostram que o regime em Teerã teve sucesso em reprimir a onda mais intensa dos protestos liderados pelas mulheres no país, iniciados em setembro de 2022, mas viu sua legitimidade ruir ainda mais. Ao mesmo tempo, a pauta da libertação feminina chegou a um novo patamar na sociedade iraniana.
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