Este texto vai ajudar você a entender a guerra no Oriente Médio
Fica mais fácil compreender o conflito envolvendo Israel, Irã, Estados Unidos e diversos países árabes se colocarmos em perspectiva a política da região nos últimos 20 anos
Dissuadir: fazer alguém ou alguma coisa mudar de ideia, abandonar uma decisão. Esse verbo, e o substantivo derivado dele – dissuasão –, foram muito utilizados na Guerra Fria para descrever as ações de Estados Unidos e União Soviética no que dizia respeito à utilização de armas nucleares. Por meio da renovação e da ampliação de seus arsenais, as potências buscavam desencorajar ataques por parte do adversário.
Hoje, a mesma lógica é adequada para explicar a dinâmica da guerra em curso no Oriente Médio. É dissuasão – não apenas nuclear – que Israel, Irã e outros atores da região procuram nos últimos meses. E é essa busca que torna a região um barril de pólvora prestes a explodir.
Em outros textos, expus minha tese a respeito do quadro geopolítico do Oriente Médio, mas é conveniente repeti-la neste momento em que a situação parece se agravar. A ideia é que este texto sirva para ajudar os leitores a entenderem o contexto dos confrontos atuais.
“Eixo do Mal” x “Eixo da Resistência”
Até 2003, o cenário regional do Oriente Médio podia ser, a grosso modo, separado em dois blocos diferentes: no Golfo, Arábia Saudita, Irã e Iraque rivalizavam pela primazia local. A Guerra Irã-Iraque (1980-1988) e a Guerra do Golfo (1990-1991) foram eventos marcantes neste aspecto.
Na região conhecida no Ocidente como Levante, Egito, Israel, Jordânia, Líbano, os palestinos e a Síria estavam absortos em uma dinâmica de segurança centrada no conflito árabe-israelense e, depois, entre israelenses e palestinos. Havia conexões entre Golfo e Levante, mas, em larga medida, essas subregiões tinham lógicas separadas.
Desde 1979, quando o Irã deixou de ser um dos pilares da política dos EUA no Oriente Médio, o país se tornou seu principal antagonista. Ainda assim, em 2001, quando Washington decidiu invadir o Afeganistão no pós-11 de Setembro, o regime iraniano não apenas não se opôs à ideia como apoiou a missão com informações preciosas sobre o Talibã – o grupo afegão também era um inimigo do Irã.
Em 29 de janeiro de 2002, um bombástico discurso feito pelo então presidente dos EUA, George W. Bush, acendeu muitos sinais de alerta no Irã. O país fora incluído, ao lado de Iraque e Coreia do Norte, no “Eixo do Mal”.
A ocupação do Iraque a partir de março de 2003 e os planos dos EUA de fazer do país uma plataforma para reorganizar o Oriente Médio à sua feição transformaram em certeza a impressão que a elite política iraniana cultivava desde o discurso de Bush: Washington planejava derrubar o regime do Irã.
A partir dali, Teerã passou a buscar alternativas para impedir isso. Duas décadas depois, avançou muito: montou um programa de mísseis impressionante e agregou a suas forças regulares uma série de grupos armados estrangeiros instalados em países da região.
Esses movimentos têm seus próprios interesses e, na maior parte do tempo, eles são coincidentes com os do Irã. Assim, suas armas estão viradas para os ativos dos Estados Unidos no Oriente Médio (tropas e bases militares) e para seus aliados (principalmente Israel e Arábia Saudita). Eles servem como uma primeira linha de defesa para Teerã. São, portanto, a dissuasão contra uma aventura norte-americana.
Apesar de muitos comentaristas retratarem “os aiatolás” como bárbaros sanguinários irracionais, a política de defesa iraniana é perfeitamente compreensível do ponto de vista racional para qualquer um que tenha o mínimo de discernimento. O epíteto “Eixo da Resistência” não é aleatório. É uma contraposição à figura de linguagem criada por George W. Bush em 2002.
Iraque, Síria e Iêmen destruídos
Um dos vários problemas da estratégia iraniana é que sua primeira linha de defesa são as terras árabes. Desde antes da invasão do Iraque, lideranças políticas de países como Arábia Saudita, Bahrein, Egito, Emirados Árabes Unidos e Jordânia alertaram o governo dos EUA a respeito da ameaça estratégica que a destruição do Estado iraquiano representaria.
Em vez de o país se tornar uma plataforma para a política externa dos EUA, poderia ser um trampolim para o Irã. Foi exatamente isso o que ocorreu.
A partir de 2003 e, principalmente, depois da Primavera Árabe, iniciada em 2011, a ascensão regional do Irã, ladeado principalmente pelo Hezbollah, causou pânico em muitas capitais árabes.
Rapidamente, essa tensão foi traduzida em linhas sectárias e a região foi engolfada por conflitos armados. Assim, Iraque, Síria e Iêmen foram devastados, em confrontos que deixaram milhões de mortos, feridos, amputados, órfãos, traumatizados e obrigaram outros muitos milhões a se tornarem refugiados ou deslocados internos.
O famigerado Estado Islâmico, que tomou territórios da Síria e do Iraque a partir de 2014, é resultado desta perversa disputa geopolítica - e o combate aos extremistas foi outro momento que favoreceu a expansão do alcance do Irã nas terras árabes.
Muitas vezes, os conflitos eram retratados na mídia apenas como guerras religiosas entre xiitas e sunitas ou como “combate ao terrorismo”, mas no pano de fundo sempre esteve a disputa geopolítica gerada pela penetração dos Estados Unidos, pela afirmação do poder iraniano e o consequente temor de seus adversários.
A questão palestina e Israel
Em paralelo, a questão palestina perdeu espaço na geopolítica regional. O fracasso do processo de paz (definitivamente em 2007), o ocaso da esquerda pró-paz em Israel (a partir de 2003) e a redução da violência em Israel após a Segunda Intifada (2000-2005) deixaram a injustiça contra os palestinos em segundo plano. Para diversos regimes árabes, que na realidade jamais se importaram com os palestinos, muito mais preocupante era a ameaça representada pelo Irã.
Benjamin Netanyahu, principal líder israelense nas duas últimas décadas, não contava com a ascensão do Irã. Em 2002, ele era um entusiasta da invasão do Iraque. Pessoalmente, testemunhou no Congresso dos EUA a favor dela. “Se você tirar Saddam, o regime de Saddam, eu garanto que isso terá enormes repercussões positivas na região”, disse.
Netanyahu era um péssimo analista, porém é um político incrivelmente perspicaz. Ainda que o desfecho da invasão do Iraque tenha sido diferente do que almejou, ele conseguiu adaptar a nova realidade a seus anseios.
Netanyahu é o principal herdeiro de um movimento político conhecido como “sionismo revisionista”, cujos primórdios antecedem a fundação de Israel. Seus adeptos pregam a ideia da “Grande Israel”, segundo a qual a segurança do país está diretamente relacionada a seu tamanho.
Na perspectiva revisionista, o Oriente Médio é uma região perenemente hostil e todas as ameaças que surgem são existenciais. O “maximalismo territorial” exige, portanto, superioridade militar ante os adversários e retaliações sempre contumazes. A paz, assim, deve ser imposta por meio da força e não obtida via negociações.
Evidentemente, para quem adere a esta ideologia, a ideia de um Estado palestino não tem cabimento algum e deve ser combatida de todas as formas. Este é o caso de Netanyahu, um homem que dedicou sua vida (até aqui com sucesso) justamente a impedir o surgimento de um país chamado Palestina.
Israel e os regimes árabes
Para as lideranças israelenses, Netanyahu à frente, a ascensão iraniana no pós-2003 é tão horrenda quanto o é para os regimes árabes em Riad, Abu Dhabi, Manamá e Amã. O Irã não tem condições de destruir Israel e não tem nem mesmo um projeto para isso, mas as ações e discursos vitriólicos de suas lideranças, recheadas de antissemitismo, e que pregam exatamente a destruição de Israel, são um presente para Netanyahu.
Elas facilitam muito o trabalho de convencimento da sociedade israelense de que o regime em Teerã representa uma ameaça à existência de Israel. Não é nada desprezível o fato de que a narrativa social em Israel é, por óbvio, delineada pelo Holocausto e pela ideia de que os judeus estão sozinhos no mundo, em um ambiente externo não confiável.
Assim, Netanyahu passou os últimos 20 anos pregando duas ideias complementares. A primeira é de que a situação na Palestina já está resolvida – no mínimo pela manutenção do status quo atual e, no melhor dos cenários em sua perspectiva, pela ampliação do território de Israel. A segunda é a ideia de que o Irã é a maior e mais importante ameaça que seu país enfrenta.
Juntas, essas ideias ajudaram a tirar da cena geopolítica a questão palestina e a colocar no cenário a rivalidade contra o “Eixo da Resistência” – não por acaso chamado por Netanyahu de “Eixo do Mal”.
Também não por acaso, a política israelense nas últimas duas décadas aproximou Israel ainda mais de países como a Jordânia, com a qual tem um acordo de paz desde 1994, Bahrein e Emirados Árabes Unidos, que assinaram uma normalização com Israel em 2020, e a Arábia Saudita, que estava se aproximando deste acordo quando o Hamas atacou Israel em 7 de Outubro de 2023.
Os eventos tenebrosos daquele dia são uma resposta a 20 anos de mudança na lógica securitária do Oriente Médio: a dinâmica geopolítica do Golfo (a rivalidade Irã x Arábia Saudita, Bahrein e EAU) se fundiu à dinâmica geopolítica do Levante (a questão palestina) consolidando dois blocos antagônicos, um alinhado sob a liderança do Irã e outro sob os auspícios dos Estados Unidos.
Para Israel, a penetração do Hamas em suas fronteiras foi um enorme abalo em seu poder de dissuasão. O mais forte dos exércitos do Oriente Médio foi incapaz de impedir que os grupos palestinos invadissem o país. Desde o 7 de Outubro, portanto, o que Israel busca é renovar sua capacidade de desencorajar ataques por parte do “Eixo da Resistência”.
A proposta, no entanto, é ir além do status quo anterior. Ao menos em um primeiro momento, o governo Netanyahu parece engajado em uma tentativa de reduzir a Faixa de Gaza à metade de seu tamanho original e reocupar porções da região sul do Líbano. A ideia por trás disso é afastar o Hamas e o Hezbollah de suas fronteiras e enfraquecê-los, reduzindo o poder de dissuasão do Irã.
O papel da Arábia Saudita e a dissuasão no Oriente Médio
O quadro atual só não é pior graças à intervenção da China, que no início de 2023 conseguiu restabelecer as relações diplomáticas entre o Irã e a Arábia Saudita após sete anos. Este acerto ainda é frágil, mas, não fosse ele, além da frente Israel-Irã, estaria aberto também um front de guerra entre o Irã e a Arábia Saudita.
Esta frente está desativada justamente por conta da questão da dissuasão. Em meio à Primavera Árabe, o regime saudita sentiu-se abandonado pelos EUA, que via como garantidor de sua segurança. A partir daí, Riad passou a exercer uma política externa assertiva e a antagonizar o Irã cada vez mais.
A estratégia chegou ao limite em 2019, quando as instalações petrolíferas sauditas em Abqaiq foram atacadas pelo Irã e por seus aliados, sem que a Arábia Saudita pudesse fazer nada. O regime percebeu que não podia, militarmente, dissuadir o Irã de atacá-lo, e decidiu aceitar o caminho da diplomacia.
O recuo tático não significa exatamente uma mudança de paradigma: a liderança saudita continua a negociar com os Estados Unidos a normalização de suas relações com Israel, desde que em troca receba garantias de que Washington irá proteger o regime em caso de um ataque iraniano.
O regime do Irã, por sua vez, preferiu o engajamento com a Arábia Saudita por entender que não seria capaz de, na eventualidade de uma guerra, travá-la em duas frentes. Seu poder dissuasório seria mais efetivo se voltado apenas contra Israel e não contra múltiplos adversários.
Desde o 7 de Outubro, cada avanço de Israel contra o Hamas e o Hezbollah é entendido como uma redução da força do “Eixo da Resistência” e, por consequência, da força iraniana. O temor é que, encorajado pelo avanço contra o “Eixo da Resistência”, o governo israelense decida atacar o Irã diretamente com sua força aérea.
Os ataques diretos contra Israel em abril e outubro de 2024 são, assim, uma tentativa de renovar a capacidade de dissuasão iraniana. A intenção é, sem deflagrar uma guerra total, evidenciar que Teerã pode tornar extremamente custosa qualquer aventura contra si.
O grande problema da lógica geopolítica do Oriente Médio é que a cada tentativa de proteger ou ampliar seu poder de dissuasão, as lideranças locais se aproximam de um ponto de não retorno. No fogo cruzado, estão as populações locais. Se, ou quando, a guerra sair de controle, serão elas as primeiras vítimas.